Caso TRT-SP

Veja a sentença que absolve o ex-senador Luiz Estevão

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1 de julho de 2002, 19h46

“O processo penal é regido pelo princípio da verdade real, não admitindo condenação com base em meras suspeitas, presunções ou suposições” (TRF/3, ACR 97.03.060412-9, Rel. Des. Fed. Ramza Tartuce, j.5.12.2000).

Negar esse entendimento significaria assentir à institucionalização da barbárie jurídica a que se refere Salo de Carvalho (“Pena e Garantias”, ed. Lumen Juris, 2001), que caracterizou o sistema inquisitivo da Idade Média, sistema em que “O processo inquisitivo é infalível, pois o resultado é determinado previamente pelo próprio juiz-acusador…Dotado de uma hipótese, o inquisidor procede à busca incessante de sua afirmação, independentemente dos fatos que lhe são apresentados. A solidão na qual trabalham os inquisidores, nunca expostos ao contraditório, alheios à dialética, pode ser útil ao trabalho policialesco, mas desenvolve quadros mentais paranóicos. Poderíamos chamar ‘primado das hipóteses sobre os fatos'” (págs.30/31).

No ano de 1764 já alertava Cesare Beccaria, na obra que revolucionou o Direito Penal e o Direito Processual Penal (“Dos Delitos e Das Penas”), sobre a inadmissibilidade das quase-provas ou semi-provas como base para a condenação. Assim, “delitos de difícil prova são aqueles que, segundo os princípios admitidos, acolhem as presunções tirânicas, as quase-provas, as semi-provas (como se se pudesse ser semi-inocente ou semi-culpado, isto é, semi-absolvível ou semi-punível)” (pág.105).

No estágio atual do Direito, para a condenação de alguém, as provas devem ser cabais, seguras e incontestáveis, de modo a não deixar qualquer resquício de dúvidas na mente do julgador, seja sobre a existência do fato, seja no que diz respeito à autoria, não sendo tolerável a cômoda adoção do primado das hipóteses sobre os fatos.

Outra premissa que merece destaque é a da observância do princípio da legalidade das provas, porquanto “as regras probatórias devem ser vistas como normas de tutela da esfera pessoal de liberdade: seu valor é um valor de garantia” (Ada P. Grinover…, “As Nulidades no Processo Penal”, 2ª ed., p.106).

Nos termos do disposto no art.232, § único, do Código de Processo Penal, a prova documental somente é admissível quando se tratar de documento original ou fotocópia devidamente autenticada. Cópias não autenticadas não possuem nenhum valor probatório, na medida em que, conforme o referido dispositivo legal, somente “à fotografia do documento, devidamente autenticada, se dará o mesmo valor do original”.

A jurisprudência é terminante a respeito:

“Carecem de valor probatório as cópias reprográficas sem a devida autenticação” (TRF/3, HC 9709, j.5.6.2001, rel. Des. Fed. Aricê Amaral).

“As fotocópias e outras reproduções mecânicas, quando não autenticadas (art.365, III, do CPC, e 232, parágrafo único, do CPP), não são documentos, por sua inaptidão probatória.” (STJ, RHC 3446, rel. Min. Assis Toledo, DJ 30.5.94, p.13.493)

Por fim, os documentos grafados em língua estrangeira, para terem eficácia probatória, devem estar vertidos para o idioma português, nos termos do art.236 do CPP.

Consoante observação de Julio F. Mirabete,

“Embora a lei determine que a tradução será realizada ‘quando necessário’, se requerida a juntada de documento em língua estrangeira, deve ser ele traduzido para o português (art.140 do CC). Dispensa-se a tradução apenas quando, visível e patentemente, o documento for inócuo para a prova” (“Cód. de Proc. Penal Interpr.”, p.530, 7ª ed.).

No presente processo, o Ministério Público Federal juntou 2.190 ‘documentos’ em cópias não autenticadas (fls.38/556, 737/748, 946/958, 961/1071, 1087/1097, 1384/1641, 1644/2481, 5271/5626, 9163/9175 e 11646/11716). A defesa de Fábio e de José Eduardo juntou 862 ‘documentos’ nessas condições (fls.3896/3912, 4042/4119, 4150/4161, 4229/4302, 4305/4578, 4583/4815, 4819/4956 e 10107/10156), além das apresentadas na oportunidade das alegações finais, enquanto que a defesa de Luiz Estevão juntou 278 peças em cópias sem autenticação (fls.5857/6135). Os drs. defensores de Nicolau juntaram 15 peças nessas condições (fls.10074/10089).

Consignadas tais premissas, passo à análise do mérito.

Impende, a priori, gizar os limites dos fatos cuja apreciação compete a este juízo criminal, tendo em vista que as partes abordaram aspectos cuja análise interessa tão-somente ao julgamento dos fatos no juízo cível, na ação em trâmite na 12ª Vara Federal Civil desta Seção Judiciária.

A denúncia faz preambulações acerca de circunstâncias que antecederam a suposta prática dos delitos imputados, como a questão da inexistência de previsão da modalidade de contrato de compra e venda nos moldes realizados; a da falta de garantia prevista no art.46 do Decreto-lei 2.300/86; a suposta infringência do disposto no art.40, in fine, bem como a lavratura extemporânea da escritura de transferência do imóvel ao TRT, entre outros aspectos, que, na realidade, não são penalmente relevantes, na medida em que acarretariam no máximo as conseqüências extrapenais previstas no art.67 e seguintes do Decreto-lei 2.300/86.


No entanto, mostram-se necessárias algumas considerações, porém breves, porquanto tais preâmbulos tiveram o intuito de convencer que, antes da realização do contrato, teria havido intenção preordenada ou orquestrada para a prática dos delitos referidos na denúncia, o que poderia ser relevante penalmente para a aferição da intensidade do dolo.

Primeiramente, no que concerne à afirmação de que o edital foi propositadamente mal redigido, não há absolutamente nenhuma prova desse alegado elemento subjetivo. Outrossim, o fato de oito das trinta empresas que retiraram o edital terem recebido cheques do Grupo Monteiro de Barros não significa, por si só, qualquer ilicitude (mesmo porque a denúncia sequer apontou alguma), restando a assertiva figurada apenas no campo abstrato da sugestão.

De qualquer forma, eventual afastamento de licitantes ou fraude em licitação (de que não há qualquer prova, diga-se de passagem), constituiriam o crime previsto no revogado art.335 do Código Penal, cuja pena máxima cominada era de 2 anos de reclusão, concluindo-se daí que tal delito, se existiu, teve sua punibilidade extinta pela prescrição. Assim,

“A Lei de Licitações substituiu o art. 335 do Código Penal na tipificação da fraude, sendo que a adequação da conduta a um ou outro tipo depende do momento em que aquela foi cometida, antes ou depois da vigência da Lei n.º 8.666/93, em 21/06/1993.” (STJ, HC, rel. Min. Gilson Dipp,DJ 22.10.2001,p.336).

De outro lado, tendo a empresa vencedora da licitação, “Incal Ind. e Com. de Alumínios Ltda.”, constituído com a empresa “Monteiro de Barros Investimentos S/A” sociedade para a formação da empresa “Incal Incorporações S.A.”, tal acontecimento não configura prática delituosa, conforme definição utilizada pelo MPF, pois nenhuma lei tipifica como delito esse fato, não obstante a vedação do art.40 do Decreto-lei nº 2.300/86 e, também, muito embora seja discutível a qualificação da nova empresa como estranha ao processo licitatório, na medida em que a sua constituição estava prevista na proposta apresentada na licitação. Todavia, não é esta a sede própria para o deslinde de tal questão.

Quanto à reiterada menção ao suposto superfaturamento do preço, não cabe aqui fixar os pressupostos para a conceituação do que deva ser reputada obra superfaturada e o que seja obra cara, devendo essa definição ser deslindada na esfera cível. Cabem, entretanto, algumas considerações a respeito, neste âmbito criminal, porquanto um dos fundamentos para a prisão preventiva decretada neste processo foi a magnitude do dano, além do que tal circunstância poderia, eventualmente, ter relevância para a dosagem da pena em hipótese de condenação.

Antes da Lei 8.666/93, que criminalizou, em seu art.96, I, o superfaturamento do preço, esta irregularidade não era tipificada como crime, mas tão-somente reputada ilícito administrativo, cuja sanção era a prevista no art.38, II, do Decreto-lei 2.300/86, ou seja, a desclassificação da proposta. Nem mesmo a anulação do contrato era prevista, mas unicamente a desclassificação da proposta, nos termos daquele dispositivo então em vigor.

A denúncia narra, no item 8, que o empreendimento foi contratado na forma de preço fechado no montante equivalente a US$139.000.000 (cento e trinta e nove milhões de dólares), montante este referente a março de 1992. Vê-se desde logo que, em virtude das várias mudanças de moedas e das constantes oscilações do valor da moeda estrangeira desde então, em face principalmente da corrosão, pela inflação, do valor do dinheiro nacional, torna-se inviável pretender definir a obra como superfaturada somente pela menção ao equivalente em dólares de seu preço. Basta atentar que o valor de um imóvel, em dólares, poderá não ser considerado excessivo no período em que houve paridade entre aquela moeda e a moeda nacional, podendo sê-lo, porém, quando a moeda estrangeira referida chegou a valer quase três vezes mais do que a nacional. Um imóvel poderia ser adquirido, v.g., por R$100 mil, que, numa determinada ocasião, era igual a US$100 mil, enquanto que, em ocasião de disparidade entre as moedas, esse mesmo imóvel jamais lograria ser vendido por R$280 mil, embora este valor pudesse corresponder aos mesmos US$100 mil. Analisando-se pelo lado inverso, na época da paridade das moedas, quem possuía US$100 mil compraria um apartamento relativamente modesto. Todavia, se dispusesse desse dinheiro na ocasião em que o dólar passou a valer próximo de R$3,00, na certa teria condições de comprar um imóvel de padrão bastante superior.

Não se pode deixar de observar, portanto, que os US$139 milhões, que seriam o valor de 1992 do empreendimento, em 1994, por exemplo, equivaleram a R$139 milhões. Porém, aquele mesmo montante em dólares, se calculado seu valor na data atual redunda em cerca de R$390 milhões, considerando que a moeda estrangeira alcançou, nos dias atuais, o valor aproximado de R$2,80. Portanto, vê-se claramente que o dólar não é parâmetro adequado para aferir o valor do terreno ou do empreendimento, na ocasião.


Ainda, relativamente ao item superfaturamento, vale notar que o Tribunal de Contas da União, consoante deixou consignado o MPF na própria denúncia (itens 22 a 24), quando da auditoria realizada em 1992, bem como na decisão (nº231/96) proferida em maio de 1996, entre as várias irregularidades apontadas, não fez nenhuma menção a superfaturamento.

Considerando que os documentos relativos ao processo licitatório foram juntados em cópias não autenticadas, o que não permite que sirvam de fundamento para a presente sentença, deve esta arrimar-se na prova oral que, à falta de elemento em contrário, demonstra ter a empresa Incal vencido a licitação pelo critério de menor preço, consoante o testemunho de fls.8397/8400.

O analista do TCU, engenheiro Wagner José Gonçalves, que elaborou a perícia na obra juntamente com a arquiteta Ivone Carneiro Rafael, que, por sua vez, atuou em face de requisição do MPF, com vistas a apurar suposto superfaturamento, acabou admitindo, em depoimento prestado a este juízo, que “Na visão do depoente nenhum daqueles orçamentos era confiável, pois havia variações entre eles que complicavam a análise. Diante disso, o depoente não pode afirmar que suas conclusões constantes do laudo possam ser terminantes” (fls.7644/9). No mesmo sentido revelou-se o depoimento de Ivone (fls.6442/7).

Ademais, os itens 62 a 65 da denúncia, descritos sob a rubrica “O Superfaturamento da Obra”, não indicou, como seria mister fazê-lo, em qual elemento objetivo se baseou para caracterizá-la como tal, mas tão-só deixou consignado que apenas parte do dinheiro recebido foi aplicado na obra, fato que, por si só, não é demonstrativo de que a obra foi superfaturada. Não bastaria menção a conclusões de técnicos do TCU e da CEF sobre o montante aplicado na obra (que os depoimentos dos peritos não corroboraram), pois seria necessária a demonstração por parâmetros comparativos com preços de obras do gênero ou o método que a CEF, por exemplo, utilizou para as conclusões, o que não consta dos autos, pois o Juiz, como peritum peritorum, deve analisar o trabalho do perito para poder julgar a perícia.

De qualquer forma, tal questão deverá, ou poderá, ser objeto de apuração, mediante perícia, na esfera própria, qual seja, no processo cível.

No âmbito deste processo, compete analisar a eventual ocorrência dos tipos penais descritos na denúncia, bem como a autoria.

Acerca do desvio de recursos destinados à obra, classificados como estelionato e peculato, não passa despercebida uma conclusão lógica em face do teor da acusação exposta na inicial: se houve superfaturamento, não há que se falar em desvio (estelionato e peculato), pois o corolário inarredável daquele é a não utilização do excedido no objeto do contrato.

Com efeito, a sanção prevista pelo Decreto-lei 2300/86 para o superfaturamento era tão-somente a desclassificação da proposta (art.38, II). Foi apenas com a edição da Lei 8.666/93 que tal conduta foi criminalizada (art.96, I). Ora, tendo o fato (contrato) ocorrido antes desta lei, conclui-se que o superfaturamento constituía apenas ilícito administrativo, pois a lei penal não retroage. E o eventual lucro excessivo, que constituía o proveito lógico de um ilícito administrativo, não poderia ao mesmo tempo ser reputado posteriormente como produto de estelionato ou peculato.

Essa consideração não exclui, todavia, a necessidade de examinar cada um dos tipos penais expostos na denúncia.

Nesse sentido, compete, primeiramente, classificar consentaneamente os fatos narrados na denúncia, seja porque, equivocadamente, esta atribuiu pluralidade de tipos penais a condutas unitárias, seja por invocar tipos penais diversos dos subsumíveis à espécie, caso em que é cabível a emendatio libelli.

Se a meta optata narrada na denúncia era, em síntese, única, qual seja, a de “desvio” de dinheiro público que se destinava à obra contratada (ou compra efetuada) pelo Poder Público, houve excessiva atribuição de tipos penais (peculato, estelionato e corrupção) ao fato, daí a necessidade de proceder-se à emendatio libelli.

De plano, deve ser excluída a imputação do crime de peculato, visto que, para a sua configuração, exige-se o pressuposto essencial de que o valor estivesse na posse do agente.

“Como na apropriação indébita, o delito, na modalidade do artigo, tem como pressuposto material a posse da coisa pelo agente. Deve o dinheiro, o valor ou o bem móvel achar-se na posse do funcionário” (Magalhães Noronha, “Direito Penal”, v.4, p.206, 1988).

No caso presente, em nenhum momento a denúncia faz referência a esse pressuposto, mesmo porque tal não ocorreu. Consoante restou apurado, o dinheiro público era endereçado do Tesouro Nacional ao TST, deste ao TRT e, por fim, à Construtora Ikal. Nesse percurso, jamais houve desvio. Se houve superfaturamento, pagamento em desconformidade com o cronograma estabelecido ou outra irregularidade do gênero, poderá configurar-se outro tipo penal, mas jamais o delito de peculato, porquanto este pressupõe que o funcionário público tenha a posse (direta ou indireta) do dinheiro. Se, após recebidos os recursos pela construtora, a mesma não os aplicou na obra ou deu-lhes destinação diversa, tratar-se-ia de mero ilícito civil. Se recebeu os valores, ou seja, se passou a ter a posse e a propriedade dos mesmos, como efetivamente ocorreu, tendo depois praticado corrupção ativa ou se submetido a pagamento de tráfico de influência, somente poderá ser considerada penalmente relevante a eventual conduta praticada após o recebimento dos valores. Antes disso, o que veio a ser recebido pela construtora decorreu de mero direito assegurado por contrato.


É certo que a caracterização do peculato poderá ocorrer em face de posse indireta (disponibilidade jurídica), pois, consoante a doutrina:

“A expressão ‘posse’ deve ser tomada em sentido amplo, abrangendo a detenção. Assim, o texto penal é aplicável à posse indireta (disponibilidade jurídica sem apreensão material).” (Damásio, “Direito Penal”, v.4, p.122, Saraiva, 1997).

Todavia, no caso vertente, para tanto, teria o acusado NICOLAU DOS SANTOS NETO de ter procedido, a começar, como ordenador de despesas, o que ocorreu apenas de abril até 14 de setembro de 1992 em face de seu mandato como presidente do TRT haver expirado na referida data. E a conclusão é de que não se configurou o questionado tipo penal (peculato), na medida em que os pagamentos à Incal foram todos efetivados e, isto, em função de cumprimento de contrato. Enfim, o que Nicolau determinou que fosse pago, no curto período em que permaneceu como ordenador de despesas, na qualidade de presidente do TRT, decorreu de mero cumprimento da contraprestação estabelecida no contrato firmado com a construtora. Se Nicolau recebeu recursos posteriormente da Incal, quando esta já detinha a posse e a propriedade dos valores, não há que se falar em peculato (pois o dinheiro já não mais se encontrava na posse da administração), podendo configurar-se outro crime, como efetivamente configurou-se, conforme adiante se verá.

Consoante esclareceu a testemunha Rubens Tavares Aidar, que presidiu o TRT no biênio 94/96, os pagamentos à construtora eram realizados da seguinte forma: liberados pelo Tesouro, “era encaminhado para o TST. Em seguida, o TST encaminhava a verba ao TRT, o qual dela se apropriava ‘on line’ – a verba ia para a conta do TRT no Banco do Brasil – para só então efetuar nota de empenho em favor do Banco do Brasil, que por usa vez efetuava o pagamento” (fls.8214). Esse trajeto foi confirmado por Floriano Vaz (fls.6391).

E, pelos documentos oficiais (cópias autenticadas) constantes a fls.2649/2734, os recursos destinados pela União à obra foram todos depositados na conta da “Incal Incorporações S/A.”

Errônea, portanto, a classificação do fato em crime de peculato, pelo que procedo à emendatio libelli a fim de excluir o referido tipo.

Além do mais, não é admissível juridicamente a punição de alguém duas vezes pela mesma conduta, vale dizer, é defeso classificar uma conduta delituosa em mais de um tipo penal, salvo na eventualidade de concurso formal, sob pena de se incorrer no indevido e repudiado bis in idem, ou seja, dupla punição pelo mesmo comportamento humano.

Quanto à suposta configuração de crime de estelionato, a conduta que gerou este enquadramento está descrita, pelo que se dessume do teor da denúncia, nos itens 28 a 53, sob as rubricas OS RELATÓRIOS FRAUDULENTOS QUE POSSIBILITARAM A LIBERAÇÃO DE RECURSOS e CELEBRAÇÃO DE ADITIVO CONTRATUAL PARA O “REEQUILÍBRIO FINANCEIRO”, que teriam se configurado com a contratação, mediante licitação, do engenheiro ANTONIO CARLOS DA GAMA E SILVA, para que o mesmo realizasse, a partir de 31.5.93, vistorias e medições de acompanhamento da obra. Quanto à segunda rubrica, a denúncia classificou como estelionato a conduta de GILBERTO MORAND PAIXÃO, também engenheiro, contratado em 15.6.98 para dar continuidade ao trabalho de acompanhamento dos serviços, orçamentos, custos e medições do empreendimento, que estavam anteriormente a cargo de GAMA E SILVA, e principalmente pelo parecer favorável emitido por este ao pleiteado reequilíbrio financeiro do contrato da Incal com o TRT.

Vê-se, logo de início, que a classificação do ato consistente em, indevidamente, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, durante a execução do contrato, seja sob a rubrica de reequilíbrio econômico-financeiro, seja sob outro fundamento, não pode ser classificada como crime de estelionato, tendo o MPF se equivocado ao fazê-lo. E assim é porque tal conduta é enquadrável estritamente na lei de licitações, ou seja, na Lei 8.666/93, nomeadamente no seu art.92, que assim está redigido:

“Art.92. Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos celebrados com o Poder Público, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade, observado o disposto no art.121 desta Lei:

Pena – detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.”

Tendo o contrato original sido modificado mediante a efetivação de reequilíbrio econômico-financeiro ocorrido em 1998, se for reputada indevida esta modificação, não há que se falar em crime de estelionato, mas sim no aludido tipo penal. No mesmo sentido quanto aos relatórios supostamente fraudulentos de autoria do engenheiro Gama e Silva, contratado em maio de 1993, na forma dar causa a vantagem, salvo nos casos em que o fato foi praticado antes da nova lei de licitações. Todavia, quanto a isso, que poderia alcançar parte dos fatos supostamente praticados por Gama, a denúncia foi rejeitada em virtude de ausência de descrição adequada de sua conduta, pelo que ficam valendo os fundamentos utilizados na decisão então proferida.


Portanto, procedo à corrigenda da denúncia (emendatio libelli), nos termos do art.383 do CPP, para dar a definição correta aos fatos descritos nos itens 44 a 53 daquela peça inicial, de modo a classificar a conduta como subsumida no art.92 da Lei 8.666/93.

Outra correção que deve ser procedida refere-se à classificação da conduta de NICOLAU DOS SANTOS NETO em crime de corrupção passiva. Na realidade, o crime efetivamente praticado pelo mesmo e que lhe possibilitou auferir valores ilicitamente foi o crime de tráfico de influência. Disso não há a menor dúvida.

O delito de corrução passiva está assim tipificado no Código Penal Brasileiro:

“Art.317. Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa.

§ 1º A pena é aumentada de um terço, se, em conseqüência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.

§ 2º Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.”

De outro lado, o crime de corrupção ativa está assim delineado:

“Art.333. Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional.”

Denotam, de forma clara, os termos dessas tipificações legais que, para o aperfeiçoamento da corrupção passiva, não é exclusivamente o quantum satis a solicitação ou recebimento de vantagem, mas também que isso se dê em troca de ato funcional de atribuição do funcionário. Portanto, o ato de ofício, em troca da vantagem, constitui uma das elementares sine qua non para o aperfeiçoamento dos crimes de corrupção passiva e ativa.

Conforme a doutrina,

“São requisitos genéricos do crime a tipicidade e a antijuridicidade, como já se afirmou. São requisitos específicos do delito os elementos, elementares ou, como impropriamente a lei se refere no artigo 30 do CP, as circunstâncias elementares. Esses elementos são as várias formas que assumem os requisitos genéricos nos diversos tipos penais. São o verbo que descreve a conduta, o objeto material, os sujeitos ativo e passivo etc. inscritos na figura penal. Inexistente um elemento qualquer da descrição legal, não há crime. Exemplificando: no fato típico denominado furto, previsto no artigo 155 do CP, se a coisa tirada não for “alheia”, inexistirá tal delito, pois a descrição desse fato é “subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel” (Julio Fabbrini Mirabete, “Manual de Direito Penal”, v.1, 6ª ed., p.95).

No dizer de Basileu Garcia,

“Só os fatos típicos, isto é, meticulosamente ajustados ao modelo legal, se incriminam”. (in “Instituições de Direito Penal”,

v.1, T.I, p.214, 1980).

No caso da corrupção passiva, o Colendo Supremo Tribunal Federal, por seu plenário, tem reiteradamente se pronunciado no sentido de que, sem a indicação e comprovação do ato de ofício que deveria ser praticado, retardado ou omitido, em troca da vantagem, não há que se falar em crime de corrupção. Desta forma,

“CRIME DE CORRUPÇÃO PASSIVA. ART.317 DO CÓDIGO PENAL.

A denúncia é uma exposição narrativa do crime, na medida em que deve revelar o fato com todas as suas circunstâncias.

Orientação assentada pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de que o crime sob enfoque não está integralmente descrito se não há na denúncia a indicação de nexo de causalidade entre a conduta do funcionário e a realização de ato funcional de sua competência.

Caso em que a aludida peça se ressente de omissão quanto a essa elementar do tipo penal excogitado.

Acusação rejeitada” (STF, Inq. 785/DF, Tribunal Pleno, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 7.12.2000, p.6, RTJ 176/50)

“Improcedência da acusação. Relativamente ao primeiro episódio, em virtude não apenas da inexistência de prova de que a alegada ajuda eleitoral decorreu de solicitação que tenha sido feita direta ou indiretamente, pelo primeiro acusado, mas também por não haver sido apontado ato de ofício configurador de transação ou comércio” (STF, plenário, AP 307/DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 13.10.95, p34247).

No mesmo sentido,

“Ação penal. Justa causa. Falta. Corrupção passiva. Denúncia omissa acerca do ato funcional em troca da suposta vantagem indevida. Inadmissibilidade. Ordem concedida para trancar a ação penal” (JTJ 214/296).


No caso vertente, é certo que, conforme minudentemente será adiante expendido, restou provado que a fortuna de NICOLAU DOS SANTOS NETO originou-se de valores recebidos indevidamente dos construtores da obra do TRT. Todavia, em nenhum momento a acusação logrou demonstrar e comprovar o ato de ofício, ou seja, o ato de sua atribuição ou competência funcional em troca do qual recebeu os valores aludidos na inicial. Não competia a Nicolau julgar a concorrência, mas sim à comissão de licitação. A liberação de recursos à construtora, mesmo no curto período em que permaneceu como ordenador de despesas do Tribunal, como seu presidente, decorria da adjudicação da obra (ou compra e venda) à vencedora da licitação e não de ato discricionário do mesmo. Não era da sua alçada aprovar ou não o aditamento do contrato. Com referência aos adiantamentos, ou seja, aos pagamentos feitos pelo TRT antes da assinatura do contrato, verifica-se que a cópia juntada pelo MPF, a fls.105, além de não conter autenticação, omite as datas nos campos destinados para tal.

No entanto, vê-se que a denúncia descreve, mais do que implicitamente, crime diverso do classificado como corrupção passiva, sendo por isso cabível a emendatio libelli, nos termos do art.383 do Código de Processo Penal.

Impende primeiro ressaltar que a providência prevista no art.384, “caput”, do diploma processual, qual seja, que a defesa, no prazo de 8 (oito) dias, fale e, se quiser, produza prova, podendo ser ouvidas até três testemunhas, somente seria exigível se a prova da elementar não estivesse contida, explícita ou implicitamente na denúncia, consoante deixa claro o referido dispositivo. Cabível, portanto, a aplicação do art.383, e isso pelas razões que se passa a expor.

Na realidade, a denúncia descreveu, explicitamente, a ocorrência, de forma continuada, do crime de tráfico de influência, que recebeu este nomen juris, bem como teve a pena abstratamente agravada (reclusão, de 2 a 5 anos), em face da edição da Lei 9.127, de 16.11.95, que modificou o art.332 do Código Penal. Antes da alteração, tal crime tinha, como é sabido, a denominação legal de exploração de prestígio e a pena cominada era de 1 a 5 anos de reclusão.

Um parênteses é necessário para registrar que, relativamente a tal delito, o jus puniendi dos fatos praticados anteriormente a maio de 1994 encontram-se prescritos in abstracto, pois, nos termos do art.109, III, c.c. art.115 do CP (redução do prazo pela metade aos maiores de 70 anos), o prazo prescricional, in casu, é de 6 anos. Assim, considerando que a denúncia foi recebida em maio de 2000 (data da interrupção do prazo prescricional), os fatos (tráfico de influência) praticados até maio de 1994 encontram-se com a punibilidade extinta.

Saliente-se que a prescrição ocorreu antes mesmo de oferecida a denúncia pelo MPF.

Feitas estas considerações, impende explicitar o porquê do enquadramento da conduta de NICOLAU DOS SANTOS NETO em crime de tráfico de influência e não em corrupção passiva – mesmo porque este delito, consoante acima expendido, mostrou-se descaracterizado em face da ausência de demonstração do ato de ofício em troca da vantagem.

O tipo previsto no art.332 do Código Penal tinha a seguinte redação:

Art.332. Obter, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influir em funcionário público no exercício da função:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa.

(Continue a ler a sentença).

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