Caso TRT-SP

Veja a sentença que absolve o ex-senador Luiz Estevão

Autor

1 de julho de 2002, 19h44

A partir da Lei 9.127, de 16.11.95, passou a ter a redação com o seguinte teor:

Art.332. Solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influir em ato praticado por funcionário no exercício da função.

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Verifica-se que a denúncia, na realidade, descreveu a prática do referido tipo penal. A denúncia diz expressamente que:

– NICOLAU conseguiu colocar-se como “Presidente da Comissão de Obras”, para poder continuar à frente da obra e influenciar de maneira imperativa as decisões sobre ela tomadas (item 28 da denúncia).

– o acusado NICOLAU, como presidente da Comissão de Obras, sugeriu em 16.03.1993 ao Presidente do TRT-SP… (item 29 da denúncia).

– Foi levada a proposta da INCAL ao Presidente do TRT-SP DÉLVIO BUFFULIN, sob forte influência e aquiescência do acusado NICOLAU (item 50 da denúncia).

– a influência danosa na transferência de verbas públicas para as contas particulares e das empresas dos co-réus (item 43 do segundo aditamento).

Ora, não se conhece nenhum cargo público que, dentre os atos de ofício, existam as condutas de influenciar, sugerir, exercer forte influência. O comportamento consistente em influir está, na realidade, previsto na tipificação do crime de tráfico de influência, no qual o agente obtém vantagem a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função (art.332 do Código Penal).

E, não somente a denúncia descreve esse comportamento, mas também as provas produzidas assim o demonstram. Cite-se o depoimento do Juiz Ney Edison Prado, cujo testemunho foi prestado perante o TRF/3: “que (o acusado) procurava aumentar o seu poder de influência tanto interna como externamente; que procurava e conseguia influir na indicação e nomeação de juízes classistas e na composição de listas para o Tribunal; …que o Dr. Nicolau gostava de mostrar a todos que tinha poder de influência tanto interna quanto externamente” (fls.1185). No mesmo sentido o testemunho de Marco Aurélio Gil: “que NICOLAU DOS SANTOS NETO viajava semanalmente a Brasília durante o período em que ocupou o cargo de Presidente da Comissão de Obras…dizendo que ia tratar, na Capital Federal, da liberação de verbas para o Fórum Trabalhista…; que NICOLAU dizia que os demais Presidentes do TRT o tinham como a única pessoa com relacionamentos que facilitariam as liberações dos recursos” (fls.9518). E é certo que não o fazia de graça. Mais adiante, será melhor expendida a questão das provas.

A análise desse tema requer um parênteses para destacar que o crime de tráfico de influência é passível de ser praticado por funcionário público (v. STF, RTJ 117/566).

Portanto, considerando que o réu defende-se dos fatos expostos na denúncia e não da classificação jurídica, procedo à emendatio libelli para o fim de considerar NICOLAU DOS SANTOS NETO como incurso no art.332, “caput”, do Código Penal (tráfico de influência) e não no art.317 (corrupção passiva) como erroneamente classificado na denúncia.

Procedida, então, a emendatio libelli, nos termos do art.383 do Código de Processo Penal, tem-se como incurso o acusado NICOLAU DOS SANTOS NETO no art. 92 da Lei 8.666/93 (dar causa a modificação e vantagem em execução de contrato com o Poder Público), e arts. 288 (quadrilha ou bando), 332, “caput” (tráfico de influência), do Código Penal. Quanto aos acusados LUIZ ESTEVÃO, FÁBIO MONTEIRO e JOSÉ EDUARDO, ficam incursos, em face da emendatio, no art.92 da 8.666/93 e arts.288 (quadrilha ou bando), 299 (falsidade ideológica), c.c. 304 (uso de documento falso) e 333, “caput” (corrupção ativa), do Código Penal.

Feitas essas correções, passo ao exame das provas, iniciando-o pelas acusações que pesam contra NICOLAU DOS SANTOS NETO.

É necessário, por primeiro, expender os fundamentos acerca do crime que restou corroborado, qual seja, o delito do art.332 do Código Penal (tráfico de influência).

A prova produzida no presente processo mostrou-se segura e terminante, para este juízo, de que a fortuna auferida por NICOLAU decorreu da prática do delito de tráfico de influência. É cediço que, neste País, este ilícito é uma das pragas mais disseminadas que circundam a atividade da administração pública. Se alguém é credor da administração, seja em qualquer de suas esferas, federal, estadual ou municipal, sempre haverá atrasos para receber o seu crédito e sempre haverá a pessoa influente (“a única pessoa com relacionamentos que facilitariam as liberações dos recursos” – fls. 9518) capaz de resolver a situação, logicamente mediante a cobrança de remuneração, em regra em determinado percentual. Tornou-se pública e notória a proliferação de escritórios de lobby (no seu sentido mais pejorativo) que se encarregavam de conseguir, mediante a cobrança de percentual, a liberação de recursos para contratantes com o poder público e até para Prefeituras ou outros entes públicos, que também tinham que se submeter a tanto.


No caso de NICOLAU não foi diferente.

Vale reiterar o depoimento do Juiz Ney Edison Prado:

“que (o acusado) procurava aumentar o seu poder de influência tanto interna como externamente; que procurava e conseguia influir na indicação e nomeação de juízes classistas e na composição de listas para o Tribunal; …que o Dr. Nicolau gostava de mostrar a todos que tinha poder de influência tanto interna quanto externamente” (fls.1185).

E da testemunha Marco Aurélio Gil: “que NICOLAU DOS SANTOS NETO viajava semanalmente a Brasília durante o período em que ocupou o cargo de Presidente da Comissão de Obras…dizendo que ia tratar, na Capital Federal, da liberação de verbas para o Fórum Trabalhista…; que NICOLAU dizia que os demais Presidentes do TRT o tinham como a única pessoa com relacionamentos que facilitariam as liberações dos recursos” (fls.9518).

Ou seja, Nicolau procurava demonstrar o poder de influência que efetivamente detinha, tanto interna (no TRT) como externamente (em Brasília). Assim, os representantes da construtora não poderiam deixar de submeter-se a alguém com tanta influência. Primeiro, para a própria colocação em prática do processo licitatório, que há anos vinha, em vão, sendo tentado. Depois, em face dos atrasos nos pagamentos, para que pudessem receber pela obra. Isto restou mais do que patente neste processo.

Não foi em vão ou gratuito o seu apego tenaz e obstinado à obra do TRT. Não foi à toa que, conforme a própria denúncia “o acusado NICOLAU conseguiu colocar-se como Presidente da Comissão de Obras”, para poder continuar à frente da obra e influenciar de maneira imperativa as decisões sobre ela tomadas” (item 28 da denúncia).

Além dos depoimentos acima citados, o testemunho de Jamil Zantut veio a somar-se a essa conclusão: “logo que terminou o mandato de NICOLAU na presidência do TRT, o seu sucessor, Juiz MORO, nomeou-o Presidente da Comissão de Obras, com instalação de gabinete para ele só para isso. A nomeação ocorreu por causa do empenho dele na realização da obra. ‘A obra era ele e ele era a obra'” (fls.8400).

Portanto, em face desses depoimentos e do próprio comportamento do acusado, que constitui elemento indiciário a juntar-se àquelas provas orais, não há dúvidas desse lobby exercido por ele, de maneira pertinaz, obcecada e comprovadamente lucrativa.

Porém, o tipo do art.332 do Código Penal exige, para sua configuração, não somente o exercício de influência, mas que isso acarrete obtenção de vantagem ao agente. Tal também restou comprovado.

Compete consignar que, no processo penal, como é consabido, não há hierarquia entre as provas, em consonância com o que estabelece o sistema do livre convencimento, adotado pela lei processual brasileira, de modo que provas periciais, testemunhais, confissões, documentos e indícios não possuem qualquer variação de valor entre si. Dependendo do caso, um indício pode se sobrepor à prova pericial ou uma prova testemunhal pode prevalecer sobre a documental.

A testemunha Marco Aurélio Gil, ex-genro do acusado, e que conviveu de forma familiar com este de maio de 1990 a setembro de 1997, foi categórico no sentido de demonstrar que “No início pode notar que NICOLAU não possuía muitos bens… As extravagâncias mesmo começaram após o início da obra do TRT…; começou a desconfiar de fato de que NICOLAU obtinha dinheiro ilicitamente a partir de 1994, pois a partir daí é que ele começou a gastar barbaridade, inclusive com a compra de carros no exterior” (6403/6412). A testemunha narrou minuciosamente o estilo de vida pomposo do acusado, com a compra de imóveis e automóveis luxuosos, o que procurou ele justificar, em juízo, como decorrente de dinheiro recebido de parente e de herança, o que não restou comprovado, conforme adiante se verá.

Não se nega que a testemunha Marco Aurélio Gil não foi movida por espírito patriótico ou outro motivo nobre para revelar tais fatos à CPI e em juízo. Restou patente que a vindita é que o motivou, por não ter recebido, após a separação, metade do valor da casa adquirida em nome da filha de Nicolau. Porém, isto não retira o valor probatório de seu depoimento, na medida em que não se mostrou conflitante com os demais elementos de prova produzidos, ao contrário, com eles se coadunou.

Outro elemento de prova indiciário relevante contra Nicolau é o recebimento de cerca de um milhão de dólares da suposta conta de LUIZ ESTEVÃO para sua conta no Banco Santander de Genebra, em 12 e 14 de abril de 1994 (fls.9583/9624 e 11723/11815). É certo que, com relação a este acusado, consoante se verá, não se sabe exatamente a que título transferiu-lhe os recursos. Porém não há como negar que esses recursos fazem parte de valores originariamente saídos na Incorporadora Incal, embora, conforme expendido no processo nº1999.61.81.000636-1, a falha na prova do superfaturamento ou de simulação na importação da empresa Contrec tenha impedido o reconhecimento do crime de evasão de divisas naquele processo.


Diante desses elementos de provas orais, documentais e indiciários, competiria ao acusado Nicolau apresentar os adminículos que pudessem desconstituir aquelas ou, no mínimo, lançar dúvidas sobre as indicações a que elas conduziram. Entretanto, nenhuma prova sequer produziu nesse sentido.

Nicolau alegou, em seu interrogatório (fls.7715/9 e 7723/7730), que a sua fortuna originou-se de valores percebidos por volta de 1962 de seu tio José Cursio, bem como que, parte da mesma, decorreu de herança recebida de avós paternos e maternos, bem como de seu pai. Estas versões, principalmente a segunda, não seria difícil de ser comprovada, notadamente através de documentos. Disse que os valores provenientes de José Cursio eram depositados por este diretamente no exterior. Entretanto, nenhuma prova seja testemunhal, documental ou de outra espécie, desses depósitos, foi produzida nos autos. Em se tratando de depósitos bancários, seria extremamente simples a comprovação documental. Porém, não a fez o acusado.

A suposta herança recebida de seus avós também não foi demonstrada, nem documentalmente, nem de outro modo. A herança do genitor, da mesma forma, não restou comprovada, pois os documentos de fls.10080/7, que seriam do arrolamento de bens recebidos por herança de seu genitor, constituem-se em cópias não autenticadas, o que, conforme já consignado, não possuem nenhum valor probatório. Mesmo que possuíssem, vê-se que se trata de imóveis de valores insignificativos, se comparados à fortuna demonstrada por Nicolau a partir de 1992. O mesmo se diga sobre os veículos luxuosos ostentados pelo mesmo anteriormente, conforme o testemunho de fls.8772/8773, que não justificam a fortuna angariada a partir do ano referido.

O fato de o primeiro depósito na conta Nissan nº 20706, do Banco Santander em Genebra, na Suíça, de titularidade do acusado, aberta em 1/10/91, conforme comprovado no processo conexo, ter sido efetuado em 8/10/91, no valor de 140 mil dólares, sendo que antes do primeiro pagamento do TRT à Incal (10/4/92) teve depósitos no montante de 405 mil dólares, não constitui elemento desconstitutivo das provas acima mencionadas. Consoante consignado, restou comprovado que a atividade essencial de Nicolau era influir e, para tanto, não o fazia graciosamente. E a referida quantia mostra-se irrisória em relação ao montante depositado a partir de 1992. Ademais, a origem daqueles primeiros depósitos não foi diversa da que os sucederam, consoante se verifica pormenorizadamente no processo conexo.

Resta verificar se o tráfico de influência praticado de forma continuada teve a punibilidade extinta pela prescrição. Conforme referência feita acima, os fatos praticados antes de 5/5/94 encontram-se com a punibilidade extinta pela prescrição, pois, nos termos do art.109, III, do Código Penal, o lapso prescricional, no caso do crime em questão, ocorre em 12 anos que, reduzido de metade em face da causa prevista no art.115 do referido diploma legal, opera-se em 6 anos. Assim, tomando em apreço que a denúncia foi recebida em 4/5/2000, somente os fatos praticados nos seis anos anteriores, menos um dia, é que não se encontram atingidos pela prescrição, ou seja, a partir de 5/5/94.

Fixada essa premissa, denotam os autos conexos

nº2000.61.81.001248-1, a fls.1729/1730, que a conta Nissan recebeu recursos até 26/4/94. Frise-se que o tipo do art.332 do CP exigia a obtenção de vantagem ou promessa de vantagem, não sendo diversa a redação atual acerca dessa elementar. Portanto, as obtenções de vantagem antes de 5/5/94 encontram-se com a punibilidade extinta pela prescrição.

Todavia, verifica-se que o acusado NICOLAU obteve vantagem (em decorrência do tráfico de influência acima reconhecido) após a data referida. Foi quando a empresa de Fábio Monteiro pagou as despesas de comissão a Lauro Bezerra nos Estados Unidos, pela intermediação da aquisição do apartamento em Miami pela offshore Hillside, cujo controle, conforme demonstrado no processo conexo, era de Nicolau.

Embora as peças de fls.5096/5118 constituam-se em cópias não autenticadas e os documentos de fls.5120/3, em original, estejam grafados em inglês, não restam dúvidas, pelos elementos probatórios constantes dos autos que Lauro Bezerra recebeu, dos representantes da Incal, valores decorrentes de despesas com Nicolau, bem como a comissão pela intermediação do apartamento, em data posterior ao lapso prescricional.

Acerca desses pagamentos, nem Fábio Monteiro deu explicações adequadas (fls.3761/2) e muito menos José Eduardo (fls.3790/1), fato que, aliado ao depoimento de Marco Aurélio Gil (fls.6397/6400 e 6403/6412), fornece a certeza acerca da vantagem aludida.

Esta última testemunha esclareceu que o apartamento”foi adquirido por NICOLAU no final de 1994 ou início de 1995…; LAURO BEZERRA, conforme ficou acertado, iria ganhar uma comissão pela negociação do apartamento…; Quando houve a briga com LAURO BEZERRA, NICOLAU ligou para FÁBIO MONTEIRO DE BARROS e falou para ele: ‘que grande amigo que você me arrumou…” (fls.6407).


Desta forma, esse conjunto de provas não deixa dúvidas dessa vantagem obtida por Nicolau.

Impõe-se, portanto, sua condenação na figura típica do art.332 do Código Penal, embora sem o reconhecimento da continuidade delitiva, porquanto os fatos anteriores foram atingidos pela prescrição, nos termos retro-expendidos.

No que diz respeito aos delitos do art.288 do Código Penal e art.92 da Lei 8666/93, os mesmos não restaram caracterizados, conforme será a partir de agora expendido, sendo que os fundamentos aplicam-se aos demais acusados, LUIZ ESTEVÃO, FÁBIO MONTEIRO e JOSÉ EDUARDO.

O delito de formação de quadrilha está longe de se mostrar caracterizado, porquanto revela-se flagrante o descabimento da referida imputação por carecer dos elementares essenciais à sua tipificação.

A denúncia atribui aos acusados, em última análise, a união de condutas para, especificamente, locupletarem-se à custa do dinheiro público que deveria ser utilizado para a construção (ou compra) de prédio para instalação do Fórum da Justiça do Trabalho.

Os elementos essenciais diferenciadores do mero concurso de agentes da formação de quadrilha residem no fim específico, neste último caso, de cometimento de vários e indeterminados crimes, além da permanência e estabilidade da união de quatro ou mais pessoas visando ao aludido desiderato.

Conforme o magistério de Magalhães Noronha,

“Característico do bando ou quadrilha é a estabilidade ou permanência da reunião, com o fim de cometer crimes, ainda que esse conceito de permanência seja relativo e dependente, em regra, dos planos criminosos que a associação tem em vista. É o que a distingue da co-participação delituosa: conjugação de esforços transitória ou momentânea para o cometimento de certo crime. Dessa distinção já dava conta Carrara: ‘É necessário, a meu ver, distinguir o caso do verdadeiro brigantaggio, constituído por organizações permanentes de bandos e, o caso de mera extorsão mediante seqüestro, cometida por pessoas acidental e precariamente congregadas para esse fim especial’. Há que distinguir, pois, entre societas delinquentium e societas in crimine.” (Direito Penal, v.4, p.90, 1988).

O fato de os sócios de uma empresa, durante a vigência de um contrato, praticarem, eventualmente, determinados delitos, isto por si só não é o suficiente para delinear os elementos típicos do crime de quadrilha ou bando. É necessário que a união dessas pessoas tenha sido constituída com o fim específico de praticar crimes indeterminados, de forma permanente e estável. O objeto de uma empresa que participa de licitação é lograr realizar o contrato. Se, no decurso deste, delitos vierem a ser cometidos (estelionato, corrupção ativa, evasão de divisas etc.), descabe sustentar que o fim específico da associação era de, estável e permanentemente, cometer indeterminado número de crimes.

A esse respeito, conforme decidiu o E. Tribunal Regional Federal desta 3ª Região, mutatis mutandis,

“O cometimento dos delitos nas aludidas condições de pluralidade de agentes unidos pelo mesmo intuito criminoso e de prolongamento das ilicitudes no tempo não induz, no entanto, ao convencimento de que estivessem os réus reunidos em quadrilha.

A permanência das atividades explica-se menos pela probabilidade de existência de associação criminosa concebida para operar em caráter estável e permanente do que pelas condições inerentes ao projeto criminoso.

Não há certeza de que na prática da empreitada criminosa houvesse mais do que o mero nexo subjetivo dos agentes, não há provas atendíveis de que os acusados também estivessem reunidos com dolo separado de formação de uma associação criminosa.” (TRF/3, ACR 1999.03.99039158-3, J.22/4/2002, 2ª T., rel. Peixoto Júnior)

Diversa é a hipótese do prévio concerto de união, estável e permanente, para o fim de serem praticados indeterminados números de crimes.

É o caso, v.g., da instituição das denominadas, no jargão policial, arapucas, empresas forjadas com o fim específico de enganar incautos, como, por exemplo, para “vender” cotas de consórcios de veículos, loteamentos inexistentes etc. Trata-se de casos típicos de formação de quadrilha e que em nada se assemelham à hipótese presente, em que uma empresa firmou contrato para a entrega de um imóvel pronto e que, supostamente, teria cobrado caro pelo empreendimento e logrado concluir apenas cerca de 70% ou 80% do projeto. Não há como equiparar este caso com os exemplos citados.

Se fosse viável a configuração do crime de quadrilha ou bando em hipóteses como a narrada na denúncia, todo e qualquer fato que envolvesse sócios de empresa e terceiros, em número igual ou superior a quatro pessoas, configuraria necessariamente o delito de quadrilha. Se os sócios de uma empresa, embora no exercício de atividade empresarial lícita, eventualmente venham a cometer crimes de sonegação, evasão de divisas, corrupção de agentes fiscais etc., não se poderá afirmar que a união dos mesmos deu-se para a finalidade específica de cometer crimes. Na hipótese, inocorre a configuração do delito em questão, porquanto destituídos dos elementos essenciais para a sua constituição.


Consoante o C. Supremo Tribunal Federal,

“CRIME DE QUADRILHA. ELEMENTOS DE SUA CONFIGURAÇÃO TÍPICA.

O crime de quadrilha constitui modalidade delituosa que ofende a paz pública. A configuração típica do delito de quadrilha ou bando deriva da conjunção dos seguintes elementos caracterizadores: a) concurso necessário de pelo menos quatro (4) pessoas (RT 582/348 – RT 565/406); b) finalidade específica dos agentes voltada ao cometimento de delitos (RTJ 102/614 – RT 600/383); e c) exigência de estabilidade e de permanência da associação criminosa (RT 580/328 – RT 588/328 – RT 615/272)” (STF, HC 72.922-4-SP, DJU 14.11.96, p.44.469).

No caso dos autos, em que os elementos essenciais (união específica para a prática de crimes, estabilidade e permanência da associação) não restaram devidamente comprovados, forçosa é a exclusão do tipo penal em apreço. Imperativa, portanto, a decisão absolutória da imputação, com fulcro no art.386, VI, do Código de Processo Penal, conforme adiante consignado.

Relativamente ao delito do art.92 da Lei 8.666/93, para a sua perfeita caracterização seria necessário, como para qualquer outra figura penal, que a conduta fática encontre perfeita subsunção à norma. Caso contrário, afastada estará a tipicidade.

Nos termos já assinalados, o referido crime está assim previsto na lei:

Art.92. Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos celebrados com o Poder Público, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica…

Pena – detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Para o aperfeiçoamento da tipicidade seria necessário provar que a modificação ou vantagem ocorreu sem autorização em lei, no ato convocatório ou nos instrumentos contratuais. No caso presente, verifica-se que o reequilíbrio somente seria ilícito se as circunstâncias fáticas invocadas para sua realização fossem forjadas, simuladas ou, enfim, faticamente inexistentes.

Na hipótese dos autos, não restaram dúvidas de que houve excessivo e constante atraso nas prestações a cargo da administração. Os pagamentos deveriam ser efetuados em uma entrada e sete parcelas semestrais. O preço deveria ser pago e a obra ser entregue, portanto, em três anos e meio. Porém, a entrada foi paga em dez parcelas e assim foi se seguindo relativamente a todas as outras prestações. Portanto, se houve descumprimento no prazo de entrega do empreendimento, não se pode simplesmente desdenhar os argumentos dos réus, no sentido de que os constantes atrasos da administração deram causa àquele descumprimento, o que por si só seria, objetivamente, ensejador do desequilíbrio econômico-financeiro do contrato, pois é inegável de que a permanência por prazos maiores de inúmeros empregados na obra, máquinas etc. acarretam custos suplementares à contratada.

Questionou-se a forma como o contrato foi realizado, ou seja, o poder público desembolsava recursos para a construção somente posterior. Ora, pelas características específicas do prédio, que, não se pode negar, de peculiaridades e porte inusuais, indispensáveis para a instalação de 112 Juntas de Conciliação e Julgamento, não se conceberia que alguma empresa se dispusesse a construir primeiro e receber depois. Argumenta-se que o Poder Público ficou em situação de vulnerabilidade na medida em que não possuía garantia de que fosse, o imóvel, ser efetivamente construído. A discussão perde importância quando se chegou a um estágio em que mais de 70% ou 80% do empreendimento foi realizado. Se a conclusão e a entrega não foram consoante o previsto, também o Poder Público, por sua vez, não efetuou as suas prestações conforme o previsto. É inegável a parcela de culpa deste pelo atraso da obra.

Não se pode fazer ouvidos moucos, sob pena de se obrar com parcialidade, aos argumentos de José Eduardo: “Os trinta e seis meses de atraso no prazo inicialmente previsto para o término da obra, gerou um aumento do custo fixo da obra, entre eles, por exemplo, o aumento decorrente da permanência maior de funcionários e utilização de máquinas. Assim, o percentual de liberações de recursos sobre o preço real e não nominal era de 80,25% em abril de 1998 e não de 98,70%. No que se refere ao percentual de 64,15% da obra, o equívoco cometido pelos que realizaram a medição é que levaram em conta somente a obra em si, quando na realidade se tratava de um empreendimento, no qual se incluía também o terreno, só para citar um exemplo. Assim, se for considerado o terreno, o percentual de aplicação dos recursos sobe mais 20%” (fls.3783).

Se houve uma cautela efetivamente não observada para a realização do contrato, tal consistiu na inexigência de garantia. Porém isto não era requisito ou dever legal para a sua efetivação, pois o art.46 do Decreto-lei 2.300/86 apenas previa que a garantia ficava a critério da autoridade competente e que não excederá de 5% (art.46, § 2º), o que, convenha-se, afastaria a vulnerabilidade da Administração em apenas esse reduzido percentual.


De outro lado, há previsão legal expressa da possibilidade do reequilíbrio (art.37, XXI, da CF, e art.65, II, “d”, da Lei 8666/93), bem como o contrato assim o previa. Não obstante não ter sido juntada cópia autenticada do contrato, nem o MPF e nem a assistência da acusação negaram a existência de tal cláusula no instrumento.

Poderia, em tese, o alegado reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, se indevido, ser subsumível à figura típica do art. 96, V, da referida lei, que assim encontra-se estabelecida:

“Art.96. Fraudar, em prejuízo da Fazenda Pública, licitação instaurada para aquisição ou venda de bens ou mercadorias, ou contrato dela decorrente.

V – tornando, por qualquer modo, injustamente, mais honerosa a proposta ou a execução do contrato”

Entendo, todavia, que, em se tratando de reequilíbrio econômico-financeiro supostamente incabível ou indevido, o tipo mais adequado é o do art.92, porquanto o aditamento nada mais é do que a modificação do pacto originário.

O cronograma e demais documentos juntados pela defesa, a fls.4163 e seguintes, acerca das razões que determinaram o pedido de reequilíbrio, são aparentemente relevantes e esclarecedoras para excluir qualquer imputação de fraude no comportamento dos acusados.

Não há como taxar de ilícita a conduta do contratante que busca restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente (art.55, II, “d”, do DL 2300/86, e art.65, II, “d”, da Lei 8.666/93).

Aliás, o reequilíbrio, bem como a existência de aditivos em contratos de grandes obras constitui fato dos mais corriqueiros, como é público e notório, em todos os setores da Administração. Diga-se a propósito que são raros os casos em que, em grandes obras, não ocorram aditivos. E não poderá ser classificado como fraude sem elementos para tanto, notadamente quando o contratante demonstra os fatores objetivos justificadores dessa modificação contratual.

Muito se falou sobre desvio, ou não aplicação na obra, de R$169 milhões, tendo tal cifra sido estabelecida como verdade absoluta. Mas, analisando-se as provas constantes do processo, especialmente os testemunhos dos peritos da USP e do TCU, respectivamente, IVONE CARNEIRO RAFAEL e WAGNER JOSÉ GONÇALVES, seus depoimentos não revelaram essa verdade absoluta, de modo a fornecer segurança a este juízo para acolher a referida conclusão.

A menos que se queira, também aqui, adotar a teoria de Joseph Goebels, o que não é cabível.

Embora os referidos peritos revelassem segurança quanto a alguns aspectos de seu trabalho, como os percentuais que estariam fora da referência FUNDUSP, admitiram que “Na visão do depoente (Wagner) nenhum daqueles orçamentos era confiável, pois havia variações entre eles que complicavam a análise. Diante disso, o depoente não pode afirmar que suas conclusões constantes do laudo possam ser terminantes” (fls.7645). De outro lado, afirmou Ivone que “não foram levados em conta eventuais aumentos do custo da obra supostamente ocorridos pelos atrasos nas prestações ajustadas no contrato…; O orçamento-base, ou seja, de 1992, antes do início da obra, e que deveria ser fornecido pela empresa INCAL não o foi. Ele seria o mais importante para se saber se houve superfaturamento ou não. Ele seria também importante para a fiscalização e acompanhamento da obra, de modo a se verificar a proporção entre o pagamento e serviço executado; …A depoente não sabia se o projeto previa a existência de três subsolos e um heliporto e que a Prefeitura teria exigido mais um subsolo e mais um heliporto; …Na análise do orçamento, quando afirmou que apenas 64,15% da obra estava executada, a depoente não levou em consideração o preço do terreno; …O orçamento-base era o mais importante documento para a elaboração do parecer. A sua ausência prejudicou o trabalho. Pelo que viu ‘in loco’, como obra de engenharia, a construção pode ser definida pela depoente como de padrão bom. Não se caracterizava como ‘de luxo’ mas era um padrão muito bom” (fls.6442/7).

Essa insegurança, revelada pelos peritos da USP e do TCU, transmite-se inevitavelmente ao julgador, que necessitaria de elementos seguros, categóricos, irrefutáveis para utilizá-los como fundamento de uma decisão condenatória. Caso contrário, de acordo com o expendido no preâmbulo, a única alternativa, diante da insegurança e dubiedade das provas, é a absolvição.

Não há certeza, nestes autos, até mesmo do valor efetivamente desembolsado pelo Poder Público. Nos itens 62 a 64 a denúncia menciona que a Administração desembolsou em pagamentos à Incal a quantia de R$231 milhões, atualizada até abril de 1999. Porém, não há nos autos elemento de prova atestando a certeza acerca desse valor, bem como a fórmula utilizada para a atualização dos valores recebidos pela Incal. Arnaldo Pandolfi, gerente da agência do Banco do Brasil onde os recursos eram depositados em favor da Incal declarou, a fls.8218/8222, que, “como os recursos não eram depositados com a mesma periodicidade do cronograma da empresa, esta necessitava de capital de giro para honrar seus compromissos com terceiros. Por esse motivo, em 1996, o BANCO DO BRASIL concedeu um empréstimo de dois milhões de reais…; Os valores mencionados na denúncia como sendo aqueles recebidos pela CONSTRUTORA INCAL jamais passaram pela conta desta no BANCO DO BRASIL, motivo pelo qual o depoente não entende como dizem que a obra custou tanto…; A testemunha imagina que o valor total liberado para a empresa dos acusados gira em torno de 150 a 160 milhões de reais, acrescentando que o número de 269 milhões mencionados na denúncia é exagerado”. Por sua vez, o Ministro do TST José Luiz Vasconcelos declarou que “no âmbito do TST é comentado que a verba liberada para o Fórum Trabalhista de São Paulo é da ordem de R$172.000,00 (SIC) (cento e setenta e dois milhões de reais)” (fls.8773).


Seria necessário laudo contábil para conferir se o valor constante no demonstrativo de fls.12925, apresentado por Fábio Monteiro, relativo a julho de 1998, bem como o demonstrativo do parecer técnico a fls.12118, não impugnado pela acusação, correspondem efetivamente a R$172 milhões como sendo o montante que sua empresa de fato recebeu. Se isso for real, o que deverá ser apurado no processo cível, restará abalada a verdade absoluta do sustentado desvio de R$169 milhões, e que foi inicialmente acolhido por este juízo para decretar a prisão preventiva dos acusados, sob o fundamento na magnitude do dano.

Compete reiterar que os peritos da USP e do TCU afirmaram não ter incluído o preço do terreno, ou pelo menos tiveram dúvidas disso, no laudo que serviu de base para a sustentação de superfaturamento e desvio, bem como o lucro da incorporadora.

Embora as peças de fls.401/403 estejam em cópias não autenticadas, dessume-se que o TCU utilizou o critério UFIR para atualizar os valores recebidos pela Incal, o que não constitui método preciso para determinar o montante efetivamente recebido. Se a atualização pela moeda norte americana é inadequada, conforme já ressaltado, a UFIR constitui, de outro lado, critério utilizado exclusivamente para a atualização de créditos tributários. Além do mais, no caso da planilha de fls.401/403 vê-se, logo de início, erro no valor da UFIR do dia 10.4.92, consignada como sendo 1.250,4000, quando na realidade seria de 1.237,91 (conf. Theotonio Negrão, CPC, 31ª ed., p.1909).

Não há, portanto, elementos precisos e seguros de que imprescinde uma sentença criminal, especialmente para se concluir peremptoriamente sobre os números invocados pela acusação, como constitutivos do suposto dano.

De qualquer forma – refrise-se – essas questões poderão, para os fins cíveis, ser objeto de perícia plena e pormenorizada, sob o crivo do contraditório, para instrução do processo cível, ou seja, em outra esfera, pois, para fins penais, vigora o consagrado e impostergável brocardo in dubio pro reo.

Outro aspecto que deve ser abordado é a decisão do TCU, que acolheu aquele valor. É cediço que as conclusões do Tribunal de Contas não vinculam as decisões judiciais. Além do mais, a insegurança revelada pelo TCU também transmitiu-se a este juízo, na medida em que na auditoria que esse respeitável órgão realizou em 1992 e julgou em 1996, não apontou qualquer irregularidade passível de anulação do contrato ou eventual superfaturamento. Somente após oito anos, resolveu rever sua própria decisão, ora apontando prejuízo aos cofres públicos no montante de R$57 milhões (9555/9578), ora o montante acima mencionado. Portanto, tais decisões, pela hesitação, não podem ser invocadas como base nesta sentença, que, para eventual condenação criminal, necessita amparar-se em elementos sólidos e irrefutáveis.

Calha registrar que, no caso como o dos autos, em que há intensa e persistente repercussão nos meios de comunicação, fatalmente estabelece-se uma espécie de maniqueísmo, que contamina autoridades, peritos, acusadores, testemunhas, de modo que todos procuram demonstrar que estão do lado do bem. Torna-se impossível, tamanho o rolo compressor dos meios de comunicação, que alguém se disponha a atuar na desconfortável posição de imparcialidade de reconhecer, mesmo em um ou outro aspecto, algum direito ou alguma alegação em que o acusado seja detentor de razão. Reconhecer isso implicaria em ser taxado como integrante da ala do mal.

É por isso que aqueles peritos, na confecção do laudo, foram categóricos. Quando questionados em juízo, revelaram a insegurança consignada nos termos de depoimentos. Isso talvez explique, também, por que o TCU ora decidiu num sentido, ora noutro. Ora não reconheceu o superfaturamento, ora reconheceu-o, com base nas conclusões daqueles peritos.

(Continue a ler a sentença).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!