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Gilmar Mendes defende política jurídica do governo

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30 de janeiro de 2002, 8h14

Durante o seminário sobre tributação e sonegação no mercado de combustíveis, cigarros e bebidas, promovido em São Paulo, pelo jornal Valor Econômico, o advogado-geral da União, ministro Gilmar Mendes falou sobre os Reflexos da Tributação e da Sonegação na Competitividade das Empresas.

Gilmar estruturou sua intervenção em quatro partes. Na primeira, ele tratou da identificação da tributação como o “instrumento central de financiamento do estado fiscalmente responsável”. Em seguida, traçou o que chamou “a crítica de uma descrição ideológica da disciplina jurídico-tributária; a explicitação da fiscalização tributária como arbitragem estatal de um conflito privado”; e, finalmente, das recentes inovações institucionais para enfrentamento do problema (Adin, ADC e ADPF).

Leia a íntegra da palestra de Gilmar

I) TRIBUTAÇÃO COMO O INSTRUMENTO CENTRAL DE FINANCIAMENTO DO ESTADO FISCALMENTE RESPONSÁVEL

Uma das mais angustiantes questões do Estado contemporâneo consiste na eleição de uma forma adequada e sustentada para seu financiamento.

Entre as formas historicamente verificadas de financiamento do Estado, destacam-se:

1) a atividade empresarial do próprio estado;

2) a receita de senhoriagem por meio da emissão de moeda;

3) a emissão de títulos; e

4) a tributação.

A primeira dessas formas encontra-se em manifesto processo de restrição, em conformidade com a idéia de subsidiariedade que caracteriza as atuais relações entre Estado e sociedade.

A obtenção de receita de senhoriagem por meio da emissão de moeda, a seu turno, encontra-se igualmente sujeita a evidentes limites materiais e já também jurídicos, de modo a evitar as disfuncionalidades experimentadas em regimes hiperinflacionários.

A emissão de títulos, do mesmo modo, encontra limitações na capacidade de endividamento estatal e em seus impactos igualmente indesejados sobre a política monetária.

A esse respeito, escreveu Paul Kirchhof que o poder de imposição tributária decorreria não da mera existência do Estado e de suas necessidades financeiras, mas antes da própria concepção de Estado liberal, pois “se o Estado garante ao indivíduo a liberdade para sua esfera profissional ou de propriedade, tolerando as bases e os meios para o enriquecimento privado, deve negar que o sistema financeiro se baseie na economia estatal, no planejamento econômico ou, de modo principal, na expropriação ou na emissão de moeda”.

A isso, acrescenta Kirchhof: “Enquanto a Constituição deixa em poder dos particulares o domínio individual sobre os bem econômicos …, o Estado só pode financiar-se por meio da participação no êxito da economia privada”.(1)

Nesse contexto, a gestão fiscal responsável encontra na tributação o principal instrumento para o financiamento do Estado.

II) DESCRIÇÃO IDEOLÓGICA DA DISCIPLINA JURÍDICO-TRIBUTÁRIA

Como sabido, o financiamento do Estado pela via da tributação constitui objeto de densa e tradicional disciplina constitucional.

As denominadas limitações constitucionais ao poder de tributar representam uma das primeiras esferas de restrição da intervenção estatal junto aos cidadãos. Com efeito, ao contrário da aquisição de títulos da dívida pública, o financiamento do Estado por meio da tributação é coercitivo, o que torna absolutamente imprescindível a definição da extensão e da intensidade em que se autoriza a intervenção cogente da autoridade estatal.

Os direitos e garantias constitucionais relativos à tributação cuidam exatamente de introduzir um núcleo essencial e incoercível de liberdades individuais a preservar em face da organização burocrática. A densidade da disciplina constitucional da matéria é, destarte, índice inequívoco e definitivo de sua relevância para nossa organização social.

As razões de uma tal centralidade dessa disciplina jurídico-tributária remanescem, contudo, pouco claras e merecem a explicitação que passo a oferecer.

É tema clássico da filosofia política a separação entre poder burocrático e sociedade sob a estrutura institucional do Estado Moderno. A diferenciação e complexidade das sociedades modernas haveriam originado sistemas especializados de comportamento ou de ação. Sob esse enfoque, o Estado Moderno constituiria um sistema de ação especializado cujo meio interno de intercâmbio seria o poder.

Em meio a múltiplos sistemas especializados (o Estado, o Mercado e os ambientes de reprodução cultural, construção da identidade e da personalidade – o Mundo da Vida, na expressão de Jürgen Habermas) e diferenciados sob códigos próprios (respectivamente, os meios de intercâmbio do poder, do dinheiro e da linguagem), verificar-se-ia o distanciamento dos cidadãos relativamente à administração do Estado e, como resultado dessa alienação, a tendência a perceber a organização estatal como um adversário ou mesmo um agente opressor.


Produziu-se assim uma antropomorfização do Estado e o mito de que cada indivíduo mantém com o Estado relações jurídicas de caráter subjetivo e contencioso.

Esse construto prestou-se a legitimar múltiplas distorções.

A primeira e mais importante distorção reside exatamente na incompreensão da efetiva tarefa estatal de fiscalização tributária e combate à sonegação.

Com efeito, na medida em que se constrói a descrição de que a fiscalização tributária e o combate à sonegação consubstanciam manifestações opressivas do Estado rival, confina-se, na esquemática oposição conceitual entre Estado e indivíduo, todo o horizonte hermenêutico em que se aferiria a legitimidade da atuação dos órgãos administrativos. Adensada essa distorção pela invocação de hipotéticas invasões a esferas da intimidade pelo emprego de instrumentos mais eficientes de fiscalização tributária (registre-se, entre nós, a controvérsia acerca da eventual reserva de jurisdição para o acesso a dados de registro bancário), busca-se tornar ainda mais plausível a dicotomia Estado-indivíduo. A distorção consolida-se no imaginário com a especialização dos agentes do Estado: o político e o burocrata, entendidos como a materialização última da alienação do cidadão comum em relação às esferas deliberativa e executiva da vida pública e, assim, como os ícones da deslegitimação estatal.

Do ponto de vista estritamente jurídico, buscou-se retirar, discursivamente, o atributo da presunção de legitimidade dos atos administrativos afetos à fiscalização tributária. O ônus da argumentação – e normas jurídicas constituem freqüentemente regras de distribuição da carga da argumentação – restou transferido para a intervenção fiscalizadora do Estado, que passa a ver-se obrigada a demonstrar sua legitimidade. A invocação do catálogo de direitos fundamentais opera ainda no sentido de oferecer impugnações procedimentais e materiais aos atos de fiscalização estatal, sob as múltiplas exigências de reserva legal, reserva jurisdicional, anterioridade, inconstitucionalidades formais, crítica à motivação dos atos administrativos e imperativos de proporcionalidade ou proibição de excesso. Essa descrição excepcionalista da intervenção fiscalizatória estatal pressupõe, destarte, uma tensão permanente (isto é, uma aporia) entre o respeito a direitos fundamentais e o exercício de competências fiscalizatórias, sobreonerando a carga da argumentação atribuída à atuação estatal.

Sob tais condições discursivas, a disciplina jurídico-tributária constituiria, em resumo, uma descrição excepcionalista e minimizadora da intervenção estatal, sob o mote da oposição estritamente binária entre Estado e indivíduo e da defesa intransigente de limitações constitucionais ao poder de tributar entendidas como esforços para a concretização de liberdades fundamentais.

III) DA FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA COMO ARBITRAGEM ESTATAL DE UM CONFLITO PRIVADO

Faltam dois elementos, contudo, à adequada descrição da disciplina jurídico-tributária – e essas lacunas afiguram-se absolutamente decisivas.

De início, considere-se a manifesta (mas nem sempre ressaltada) existência de um dever fundamental de pagar impostos – tal como ressalta o prof. português José Casalta Nabais.

Um texto constitucional como o nosso, pródigo na concessão de direitos sociais e na promessa de prestações estatais aos cidadãos na mesma medida em que comprometido com imperativos de responsabilidade fiscal, certamente exige o reconhecimento de um tal dever fundamental de pagar impostos.

Na perspectiva estritamente dogmática, é o § 1º do art. 145 da Constituição, onde se lê: “§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.

O dispositivo constitucional estabelece:

I – o caráter pessoal do dever de pagar impostos (e, portanto, seu status de dever fundamental);

II – a vinculação à capacidade econômica do contribuinte (imperativo de eqüidade e isonomia na distribuição dos ônus da tributação); e

III – a prerrogativa constitucional da “administração tributária” de identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte, especialmente para conferir efetividade aos objetivos mencionados.

Sob esse marco constitucional, parece possível partir da colmatação da lacuna inicial relativa à explicitação de um óbvio dever fundamental de pagar impostos à superação da lacuna ainda mais grave consistente em haver-se obscurecido o imperativo de eqüidade e isonomia na distribuição dos ônus da tributação.


Esse último ponto é decisivo e elimina, por completo, à descrição individualista da oposição supostamente aporética entre cidadão e Estado. Cuida-se da circunstância de que o imperativo normativo e mesmo factual de financiamento do Estado fiscalmente responsável pela via central da tributação instaura entre os agentes privados um conflito ineliminável: a disputa acerca do modelo institucional de distribuição dos custos de financiamento das políticas públicas. Existe um inegável conflito entre os cidadãos e agentes privados no sentido de transferir para os demais concidadãos o ônus da tributação, furtando-se, tanto quanto possível, de um tal encargo.

Ao disciplinar equanimemente (ou, nos termos da Constituição, segundo a capacidade econômica do contribuinte) a distribuição dos ônus tributários e operar por meio da fiscalização tributária para conferir efetividade a esse objetivo, o Estado está verdadeiramente a prestar aos cidadãos a função de árbitro de um conflito ineliminável entre agentes privados. Assim como um concurso público ou uma licitação constituem procedimentos para assegurar-se acesso isonômico de agentes privados a prestações positivas estatais, o combate à sonegação representa um imperativo de realização in concreto da igualdade na aplicação da lei destinado a promover a equânime distribuição de ônus inerentes à operação de um Estado fiscalmente responsável.

Assim se manifestou sobre a matéria o Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Doutor José Luís Saldanha Sanches, em palestras proferidas nos Simpósios Internacionais sobre Sigilo Bancário, realizados pelo Centro de Estudos Victor Nunes Leal, da Advocacia-Geral da União: “Os sistemas de tributação, com base no rendimento e a atribuição de uma igualdade de tratamento a todos os contribuintes, constituem assim uma concretização do princípio da igualdade fiscal na medida em que a igualdade fiscal exige não apenas a igualdade na legislação, mas também a igualdade na aplicação da lei .”(2)

No mesmo passo, asseverou o Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Doutor José Cassalta Nabais, naqueles mesmos em Simpósios: “(A sonegação) é insustentável pela receita perdida que origina e, conseqüentemente, pelo apartheid fiscal que a mesma provoca, desonerando os fugitivos fiscais e sobrecarregando os demais contribuintes que, não podendo fugir aos impostos, se tornam verdadeiros reféns ou cativos do Fisco por impostos alheios.‘”(3)

Esse imperativo de igualdade possui ainda outros fundamentos constitucionais expressos. Em verdade, a Constituição Federal, de 1988, no seu artigo 5° caput proclama que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se a inviolabilidade do direito à igualdade. O mesmo Estatuto Constitucional, no seu artigo 150 inciso II, veda a instituição de tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.

É, por conseguinte, inerente à atividade da Administração o ótimo desempenho de seu poder-dever de fiscalização. E isso para a perseguição de objetivos que a própria Constituição lhe impõe na concretização da justiça fiscal e, em última instância, do princípio da igualdade que consagra. De fato, a capacidade contributiva consiste, segundo o magistério de Ricardo Lobo Torres, “em legitimar a tributação e graduá-la de acordo com a riqueza de cada qual, de modo que os ricos paguem mais e os pobres, menos”.(4)

Comprova-se assim que, entendido como arbitragem de um conflito entre agentes privados, o combate à sonegação jamais poderá vir a confundir-se com a tensão estritamente bipolar entre indivíduo vitimado e Estado opressor.

IV) DOS ESFORÇOS PARA MINIMIZAR A SONEGAÇÃO E A ELISÃO FISCAL

Com o aparecimento da L.C. 105, de 10/1/01, que permite a transferência do sigilo bancário para a Administração tributária e a conseqüente melhora na fiscalização e na arrecadação dos impostos, surge o incremento das possibilidades de há médio prazo ocorrer a redução da carga tributária de quem paga os tributos corretamente,e até mesmo de se viabilizar a tão esperada reforma tributária, por meio do combate à sonegação implementado por instrumentos de elevada eficiência.

Uma outra medida importante, recentemente lançada em nosso País, foi prevista pela Lei Complementar n° 104, de 10 de janeiro de 2.001, que criou um parágrafo único para o artigo 116 do Código Tributário Nacional, autorizando à Administração tributária desconsiderar (o que não significar anular, mas negar eficácia perante o Fisco, mantendo-se o ato em relação as partes) atos ou negócios jurídicos lícitos sem o economic purpose, ou seja, praticados com a finalidade de dissimular (esconder, mascarar) a ocorrência do fato gerador tributário (realmente ocorrido) ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, segundo os procedimentos que serão estabelecidos pela lei ordinária de cada ente da federação.


A inclusão do parágrafo único ao art. 116 faz-se necessária para estabelecer, no âmbito da legislação brasileira, norma que permita à autoridade tributária desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de elisão, constituindo-se, dessa forma, em instrumento eficaz para o combate aos procedimentos de planejamento tributário praticados com abuso de forma ou de direito.

Cumpre realçar que o preceito legal referido não pretende afastar as formas lícitas de elisão ou de planejamento tributário, mas aspira a atingir o abuso do exercício desse direito, uma vez que não há mesmo, em canto algum e de espécie alguma, direito absoluto, de modo que dirige-se contra os casos de elisão ilícita ou abusiva e, ao meu ver, mesmo contra casos de evasão.

Com tal preceptivo, não se exige que a administração tributária venha a anular os atos os negócios jurídicos dissimulados com o fito de esconder o fato gerador do tributo ou suas reais conseqüências. Tais atos podem até continuar valendo para as partes, mas permite-se que a Administração negue eficácia a eles, desconsiderando em relação a ela as chamadas operações “esquisitas”, ou seja, condutas incomuns que o contribuinte realiza, sem nenhum propósito empresarial, com o único objetivo de mascarar ou esconder o fato gerador do tributo efetivamente ocorrido ou reduzir a carga tributária.

Dito isso, parece legítimo concluir que os contribuintes cumpridores de seus deveres ganharam motivos para crer que as leis tributárias venham a ser, de fato, igualmente aplicadas e que o princípio da capacidade econômica do contribuinte alcance a máxima eficácia a ele reservada pelo texto constitucional.

Neste contexto, tanto as Ações Diretas de Inconstitucionalidade, quanto as Ações Declaratórias de Constitucionalidade e as Ações de Descumprimento de Preceitos Fundamentais têm papel fundamental, uma vez que permitem correções de rumo em tempo adequado e de forma segura.

Notas de Rodapé

KIRCHHOF, Paul, “La Influencia de la Constitución Alemana en su Legislación Tributaria”, in Garantías Constitucionales del Contribuyente, Tirant lo Blanch, Valencia, 1998, p. 26.

2José Luís Saldanha SANCHES – A situação actual do sigilo bancário: a singularidade do regime português, in “Estudos de Direito Bancário”, Coimbra, 1999. Esse artigo encontra-se também veiculado no site da Revista virtual da AGU, numa edição especial sobre o Sigilo Bancário: www.agu.gov.br.

3 José Cassalta NABAIS – texto da palestra “Algumas reflexões sobre o actual estado fiscal”, publicada, devidamente revisada pelo autor, no site da Revista virtual da AGU n° 9, de abril de 2.001: www.agu.gov.br.

4 Ricardo Lobo TORRES – Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. v. III. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 334.

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