Juros bancários

Contratos bancários ofendem as normas constitucionais

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26 de janeiro de 2002, 10h20

Em 4 de maio de 1808, por alvará expedido pelo governo brasileiro, ficava estabelecido que “…o cargo de juiz conservador na Nação Britânica”. Não se tratava propriamente de um juiz inglês, mas de juiz nacional escolhido pelos súditos ingleses residentes no local da jurisdição, aprovada a escolha pelo embaixador ou ministro da Grã-Bretanha”.

Cedia assim o Brasil Imperial parte de sua soberania ao império inglês, de modo que interesses de ingleses residentes no Brasil somente seriam julgados por um juiz escolhido por eles, ingleses.

Quem nos conta essa infâmia de nossa História, é ninguém menos do que o eminente Min. Athos Gusmão Carneiro (Jurisdição e Competência, 9ª ed., Ed. Saraiva, págs. 170 – 1999), acrescentando, ainda, que “o juiz conservador representava uma estranha modalidade de permitida justiça privilegiada”.

De maneira análoga, o sistema financeiro tem conseguido fazer prevalecer o “juiz inglês”, afastando o Poder Judiciário da análise de suas relações jurídico-financeiras.

Se a Lei da Usura, promulgada no Governo Vargas, nunca chegou a ser aplicada às operações bancárias, a criação do Conselho Monetário Nacional e do Banco Central arrostou a regulamentação das operações de banco, criando capa de legalidade a todos azares de ilegalidades.

Assim, sempre que se leva um contrato à contestação judicial, o argumento primeiro que surge é a permissão de normas, portarias e resoluções, oriundas ora do CMN, ora do Bacen.

A promulgação da Constituição de 1988 não trouxe alento a esta situação, visto que, se o parágrafo 3º do artigo 192 da Carta Magna fixou os juros máximos em 12% ao ano, sua aplicabilidade foi contestada na Justiça.

Nestas discussões passaram-se quase 14 anos e, após várias decisões, ora favoráveis a uma tese ora a outra, firmou-se o entendimento, por fim, que a limitação constitucional dos juros em 12% ao ano não é auto-aplicável, necessitando de regulamentação, a qual não houve até o momento.

Os contratos bancários, desta maneira, continuaram submetidos à exclusiva regulamentação administrativa do Banco Central e do CMN, sendo certo que, assim, os bancos conseguiram afastar o controle judicial sobre suas operações.

E, com a mesma intenção, o Banco Central edita o famigerado chamado código bancário, estampando deveres e obrigações perfunctórias dos bancos e, assim tergiversando, não discutindo o pomo central, que são os juros. Com uma mão marca o gol e, com a outra, alardeia para a platéia.

Compreendida a formação de nosso sistema financeiro, mister se faz identificar o nó górdio do problema que, evidentemente, não está em limitar-se os juros bancários em 12%. Qual a finalidade de um banco?

Conforme definimos no livro Ilegalidades nos Contratos Bancários (Ed. Aide, págs. 54), a “empresa banco tem por finalidade operar a circulação das riquezas na sociedade capitalista”, de modo que de um lado captam o dinheiro de poupadores para distribuí-lo, através de dezenas de modalidades de operações, a tomadores. Banco, pois, é um agente de intermediação do dinheiro.

Ínfima é quantia de dinheiro do banco, do banqueiro.

Os valores que o banqueiro intermedia e aplica pertence à sociedade, aos milhões de poupadores que levam suas economias aos bancos, que depositam seus salários em contas correntes, dos governos que depositam ali suas arrecadações, etc.

Deste modo, não é difícil compreender que a operação bancária embora tenha um fim lucrativo, sob o prisma do agente econômico, tem um cunho macroeconômico relevante, sendo certo afirmar que é uma das colunas mestras de uma economia moderna, já que é através do sistema financeiro que se “irriga” uma ou outra empresa ou setor.

Assim, fácil é identificar o caráter de ius cogens quando tratarmos de contratos bancários que, à primeira vista, poderiam parecer negócio exclusivamente privado, atinente somente ao banco e cliente, mas que no entretanto não o é.

Mormente se considerarmos que, contemporaneamente, estamos quase todos, direta ou indiretamente, atrelados ao crédito. Mesmo que você, leitor, não seja um usuário do crédito direto, certamente inúmeros à sua volta são, o que representa um custo à produção que, invariavelmente você tem de consumir, e, evidentemente, pagar. O que fazer, então? Fechar os bancos como uma atividade maligna?

É óbvio que não. Os bancos são salutares e necessários agentes de desenvolvimento, quando suas operações não estão maculadas pela ilegalidade, pelo cunho lesionário, como o que ocorre no Brasil de hoje.

Contrato lesionário, conforme definimos em outro livro, Lesão nos Contratos e Ação de Revisão (Ed. Aide, págs. 142), é a desproporção excessiva entre deveres e obrigações existente em um contrato comutativo. Importante frisar que, quando se fala em lesão, não se está aventando a hipótese de imprevisão contratual e muito menos de vícios de consentimento, mas sim de um contrato formalmente válido que, em seu nascedouro, criava situação de enriquecimento sem causa a uma das partes, em detrimento da outra.

A identificação da lesão, nos contratos bancários, passa por um dado financeiro acessível a todos: qual a taxa de aplicação que um banco paga hoje? Em média 1,0%. Qual a taxa de juros média praticada no mercado financeiro? Em torno de 3,5%. Sem se falar em taxas de cheque especial, que alcança mais de 7%.

Considerando-se que o banco é um agente intermediador, que empresta à sociedade o dinheiro que arrecadou dela mesma, como pode cobrar 300% por seu comércio???

Cotejando-se estes números identifica-se, claramente, o caráter lesionário dos contratos bancários. Destaque-se que a lesão, o abuso não está em os juros serem maiores de 12% ao ano, mas na substancial diferença (spread) entre a captação e o empréstimo, o que provoca um desequilíbrio que, enfim, gera um contrato impagável, visto que não há atividade produtiva que consiga gerar uma taxa de retorno que pague ditos juros.

Aliás, este fato foi reconhecido pelo presidente do maior banco norte-americano – Citibank, quando afirmou, categoricamente, que na verdade não existe dinheiro no Brasil para investimento. Ninguém pode pegar dinheiro emprestado para fazer investimento, nem mesmo para tocar o dia a dia. Você não consegue gerar uma taxa de retorno que pague os juros” (Revista Carta Capital, 18.setembro.1996, págs. 61).

Também esta percepção já chegou aos Tribunais, sendo exemplo contundente o voto do eminente Min. Paulo Brossard: “Estou profundamente impressionado com um dado da realidade, que hoje ninguém ignora, e que foi solenizado pelo presidente do Banco do Brasil, em declaração feita perante a comissão especial da Câmara dos Deputados, segundo a qual, nas condições atuais de financiamento, nem plantando maconha irrigada é possível pagá-lo. Quem disse isso foi o presidente do Banco do Brasil e não disse em uma mesa de café ou boutade, afirmou perante a comissão da câmara dos deputados”. (Voto pronunciado na ADIN 959/1 – STF )

Em conclusão. É por demais claro que os contratos bancários são flagrantemente lesionários, ofendendo norma constitucional, mas não o parágrafo 3º que limita os juros e sim o caput mesmo do artigo 192, que estabelece os princípios norteadores do sistema financeiro.

Somente o exercício cotidiano da cidadania, o enfrentamento desabrido nos Tribunais, poderá subjulgar a “justiça privilegiada” que querem os bancos estabelecer.

Queiramos que a promulgação do novo Código Civil, que prevê a ação revisional de contratos, possa servir a uma nova consciência e, exercendo a luta pelo Direito preconizada por Ihering, possamos edificar uma sociedade mais justa.

Revista Consultor Jurídico, de 26 janeiro de 2002.

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