Liberdade de informação

TV Globo não deve indenizar acusado de golpe com DPVAT

Autor

8 de janeiro de 2002, 15h41

A imprensa pode acompanhar a prisão em flagrante de acusados de praticar crimes. A divulgação não prejudica o acusado. O entendimento é do juiz da 30ª Vara Cível, Márcio Antonio Boscaro, que negou pedido de indenização contra a TV Globo apresentado por um acusado de praticar golpes para receber o seguro obrigatório em acidente de carro. A notícia da prisão foi divulgada nos telejornais da emissora.

A Globo foi defendida pelo escritório Camargo Aranha Advogados Associados. Na ação, a Globo frisa que, “na qualidade de emissora de expressão, age com o intuito de defender o interesse público”. Por isso, deve divulgar os fatos verídicos. Segundo o advogado, em nenhum momento a reportagem ofendeu a honra do acusado. O juiz acatou a argumentação.

“Assim, o certo é que essa reportagem apenas cuidou de acompanhar tal prisão, sem que fossem tecidos comentários sobre a pessoa do requerente e que não correspondessem ao que estava ocorrendo. Não se tratou, portanto, de uma reportagem despropositada, efetuada com o intuito de ofender ou prejudicar o requerente”, afirmou o juiz.

Veja a decisão

Poder Judiciário

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Trigésima Vara Cível Central

Processo nº 000.01.058091-3 (1122)

José Silvino de Souza ajuizou ação ordinária de indenização por danos materiais contra Rede Globo de Televisão alegando que essa, em um de seus programas, levou ao ar reportagem absolutamente inverídica, que atingiu o conceito moral e profissional do requerente. Foi essa intitulada “o golpe do seguro” e versava sobre engodos praticados pelo requerente na obtenção indevida de vantagem na liberação de seguro obrigatório.

Ademais, nessa reportagem, diversas expressões caluniosas, difamatórias e injuriosas foram dirigidas ao requerente. No mesmo dia em que ela foi ao ar, o requerente foi preso em sua própria casa, o que também foi divulgado pela requerida. A seguir, tratou ele de explicar os acontecimentos relacionados ao fato que ensejou tal prisão, ressaltando sua absoluta inocência, no caso, sendo certo, ademais, que a requerida auxiliou na montagem de uma farsa, com o nítido intuito de prejudicá-lo. Asseverou, por fim, que essa matéria jornalística acarretou-lhe danos morais, os quais já foram objeto de outra ação e, ainda, danos materiais e, por isso e citando normas legais, julgados e, lições de doutrina que entende aplicáveis ao caso, ajuizou, o requerente, a presente ação, com o fito de vê-los indenizados, estimando a indenização em mil salários mínimos. Juntou documentos (fls. 34 a 121).

Citada, a requerida apresentou contestação, na qual arguiu preliminares de conexão e decadência, ressaltando que o caso deve ser decidido segundo as normas contidas na Lei de Imprensa. No mérito, alegou que o “golpe do DPVAT” é famoso e que havia semelhanças entre o modo pelo qual ele era aplicado e o agir do requerente, no caso narrado na exordial.

Por isso, a polícia e o Ministério Público promoveram sua prisão em flagrante, o que foi acompanhado pela imprensa. Ressaltou que os fatos não se passaram exatamente da forma como descrita pelo requerente o que a reportagem em tela não apresentou nenhuma expressão injuriosa ou difamatória contra sua pessoa. Acrescentou que, na qualidade de emissora de expressão, age com o intuito de defender o interesse público, noticiando fatos que, em tese, podem prejudicar um grande número de pessoas.

A prisão do requerente realmente ocorreu e foi acompanhada por um Promotor de Justiça, exatamente como veiculada pela requerida, a qual em nenhum momento o chamou de estelionatário ou deu vazão a alguma inverdade contra sua pessoa. Em se tratando de fato verídico, é seu dever informá-lo ao público, notadamente porque o fez munida apenas com o “animus narrandi”, inerente ao exercício do direito de liberdade de expressão. Alternativamente, insurgiu-se contra o valor pretendido pelo requerente como indenização pelos apontados danos materiais, aduzindo que ele não realizou prova de sua ocorrência ou de seu montante, nos autos. Trouxe aos autos os documentos de fls. 130 a 140 e 161 a 165.

Replicou o requerente, a seguir, refutando as alegações da requerida e reiterando suas posições iniciais.

Instadas a especificar provas, ambas as partes pleitearam a produção de prova oral e, a requerida, também a produção de prova documental.

É o relatório.

Decido:

Conheço diretamente do pedido, nos termos do artigo 330, inciso I, do Código de Processo Civil, pois a matéria litigiosa é exclusivamente de direito e porque os fatos encontram-se comprovados pelos documentos acostados aos autos, sendo desnecessária a produção de outras provas.

Repilo a preliminar de conexão de ações, pois, muito embora haja identidade de partes, não lhes é comum o objeto ou a causa de pedir, já que na outra ação em curso entre elas o pleito é de indenização por danos morais e, nessa, por danos materiais, além de que é diversa a causa de pedir entre ambas.


Repilo igualmente a preliminar de decadência, pois a norma legal utilizada como seu fundamento apenas se aplica a casos de indenização por danos morais, o que não se dá no caso em tela.

Quanto ao mérito, trata-se de ação ordinária de indenização por danos materiais, calcada no fato de que uma reportagem publicada pela requerida teria acarretado tais danos ao requerente, posto que contém inverdades, o que também lhe ofendeu a dignidade.

Constata-se, portanto, que a discussão travada nestes autos cinge-se à análise da legalidade do agir da requerida e, para tanto, mister o estudo das normas legais citadas pelas partes, na defesa de seus interesses postos em Juízo.

O requerente deduziu que a requerida violou normas da Lei de Imprensa e da Constituição Federal, ao passo que essa e a denunciada asseveraram que tais diplomas legais dão plena sustentação jurídica aos atos que praticaram.

Destarte, na essência, trava-se nestes autos uma discussão acerca da eventual compatibilização de dois princípios constitucionais, qual seja, a inviolabilidade da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (artigo 5º, inciso X) e a livre manifestação do pensamento e da informação (artigo 220, “caput”), devendo ser analisado se algum deles deve prevalecer sobre o outro.

Para tanto, mister a análise do teor da reportagem produzida pela requerida, reproduzida na fita de vídeo cassete anexada aos autos.

Essa se refere a uma reportagem sobre a prisão do requerente, sob a acusação de auto atribuição de falsa identidade, com o fito de apossar-se de verbas destinadas aos pais de uma vítima fatal, falecida em acidente automobilístico e referentes ao seguro obrigatório a elas devido. Os fatos noticiados nessas reportagens não eram inverídicos, pois havia uma ordem de prisão emanada de autoridade competente e porque a referida diligência de prisão do requerente foi acompanhada por um Promotor de Justiça.

Assim, o certo é que essa reportagem apenas cuidou de acompanhar tal prisão, sem que fossem tecidos comentários sobre a pessoa do requerente e que não correspondessem ao que estava ocorrendo.

Não se tratou, portanto, de uma reportagem despropositada, efetuada com o intuito de ofender ou prejudicar o requerente.

A existência desses fatos e a conseqüente investigação desencadeada por conta deles são fatos verídicos e notórios, cuja divulgação e comentário, portanto, em nada podem agravar a honra do requerente.

Pese embora o respeito devido a qualquer cidadão, o certo é que as referidas reportagens não lhe atacaram a honra objetiva ou subjetiva, da forma como por ele alegada, tampouco acarretaram gravame à sua intimidade ou vida profissional, pois apenas fatos verídicos e notórios são ali destacados e não há intenção deliberada de ofender.

O conflito entre a norma constitucional protetora do direito à intimidade e aquela que constitucional que assegura a liberdade de imprensa deve ser dirimido pelo Juiz, na análise de cada caso concreto submetido à sua apreciação, pois não há possibilidade de harmonizarão entre ambos.

No sentido da conclusão esposada pela presente decisão, trago à colação a lição de Pedro Caldas, inserta em sua obra “Vida privada, liberdade de imprensa e dano moral”, Editora Saraiva, 1997, da qual transcrevo os seguintes trechos:

“Posto o conflito e escrutinado o sistema, não se encontrando critério apto de saída, o órgão aplicador, no caso, o juiz, terá de fazer uma opção, perante o caso concreto, por um dos termos da alternativa: ou a privacidade, ou a liberdade de imprensa. A decisão judicial não importará na ab-rogação de qualquer delas ou de ambas as normas em conflito, salvo se o sistema previsse tal saída. A decisão judicial, uma vez passada em julgado, pode até se contrapor a qualquer norma do sistema, justo porque existe norma assegurando esse efeito” (… ) (p. 90);

“Em se tratando, como se trata, de colisão entre direitos constitucionais fundamentais (vida privada versus liberdade de imprensa – rectius direito à Informação) em que um deles não pode ser considerado prima facie de importância hierárquica superior ao outro, impõe-se ao intérprete procurar, na resolução do conflito, harmonizar os dois direitos. Demonstrada impraticável essa harmonização, um dos direitos poderá prevalecer sobre o outro, valendo salientar que o critério da prevalência será aplicado no caso concreto, de tal sorte que, a depender das circunstâncias factícas, ora um, ora outro, será considerado, o direito prevalecente.

“Realmente, posto jurisdicionalmente sob a consideração do Estado-juiz, o conflito devera ser desatado em favor de uma das partes, outorgando-se ao julgador um amplo espaço de manobra para colocar os fundamentos de sua decisão. Esse espaço de atuação concedido ao juiz não é por ele utilizado de forma arbitrária porque suas decisões devem ser fundamentadas em elementos de razoabilidade. Além do mais, a chamada decisão judicial nunca é fruto das inclinações e das idéias preconcebidas de uma pessoa, considerando-se o resultado final, filtrado em diversas instâncias judiciais, com a intervenção, inclusive, de órgãos judicantes colegiados, refletirá, ao fim e ao cabo, uma decisão impessoal, lndicativa do grau de desenvolvimento jurídico e social do ambiente em que lavrou a colisão dos direitos” (…) (p. 94/5);

“Não se esqueça que o embate não se dá pura e simplesmente entre o direito individual de alguém preservar a sua vida privada e um direito coletivo à informação, pois o direito à vida privada é individual quando particularizado, quando sob consideração a vida de alguém, mas, no fundo, retrata um interesse coletivo, eis que todos almejam um selo de reserva sobre parte de sua vida, por isso que não é incomum que sob a capa de um direito privado haja um interesse público.” (p. 99).


E, no caso presente – repita-se – entendeu-se que a divulgação dos fatos narrados nessa reportagem era um direito que assistia à requerida, dado o interesse público envolvido na apuração da prática de eventuais delitos nela descritos, o que deve prevalecer sobre o direito à intimidade das pessoas mencionadas.

No sentido dessa conclusão, trago à colação os seguintes julgados:

a) “Indenização – Responsabilidade civil – Danos morais – Lei de Imprensa – Notícia veiculada em jornal – Descrição de acontecimento verdadeiro e do interesse público – Legítimo exercício do direito de crítica configurado – Verba não devida – Recurso provido” (JTJ(LEX) 182/81);

b) “Indenização – Responsabilidade civil – Abuso na liberdade de imprensa – Rigor no tratamento dos fatos, utilizando-se de jargão pertinente, que não o caracteriza – Ação improcedente – Recurso não provido” (JTJ(LEX) 178/51);

c) “(…) No Estado de Direito, vigorante no país, onde a Administração Pública direta ou indireta e fundacional subsume-se aos princípios da legalidade, lmpessoalidade, moralidade, publicidade etc. (Constituição da República, artigo 37), aflora-se saliente e imprescindível o papel dos veículos de comunicação de todos os gêneros, que diante da revelação de fatos gravíssimos e verossímeis (…), tem o dever cívico e jurídico de informar, denunciar, exprobar a alertar os agentes públicos, no exercício primordial da livre manifestação do pensamento e da tarefa de fiscalizar e reprimir atos atentatórios à dignidade humana e ao Estado” (JTJ(LEX) 207/105);

d) “Não constituem abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e de informação, entre outras condutas, a divulgação, a discussão e a crítica de atos e decisões do Poder Executivo e seus agentes, desde que não se trate de matéria de natureza reservada ou sigilosa, e a crítica inspirada pelo interesse público, não estando presente o ânimo de injuriar, caluniar ou difamar” (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível nº 219.490-1).

Tem-se, portanto, que no bojo da referida reportagem, não ocorreu abuso na liberdade de expressão ou deliberada intenção de ofender a honra, ou violar a vida privada ou a intimidade do requerente; destarte, não há que se falar em danos materiais, disso decorrentes, a serem indenizados.

Em arremate, transcrevem-se os seguintes trechos de artigo escrito por Marcos Barbosa Pinto, publicado em Revista de Direito mercantil nº 111, p. 171 a 184, sob o título “Liberdade de imprensa e responsabilidade civil dos meios de comunicação”, dadas as preciosas lições que encerra para a exegese do caso ora em análise:

“Outra Importante função exercida pela imprensa atualmente é a de fiscalização dos atos do Poder Público, do bom funcionamento das instituições democráticas e da honestidade dos funcionários públicos a governantes. Neste contexto destaca-se a capacidade da imprensa de combater a corrupção, através da investigação a de denúncias que informam o cidadão e permitem ao Poder Judiciário apurar irregularidades e punir culpados.

Esta função de fiscalização, assim como as demais funções dos meios de comunicação, não pode ser exercida sem ampla liberdade de imprensa. Os cidadãos não estarão aptos a posicionar-se coerentemente ante os fatos políticos a menos que obtenham notícias jornalísticas corretas e que possam ter acesso a diferentes fontes de informação. Se notícias incorretas e parciais não puderem ser contrabalançadas pelos demais meios de comunicação, ou se fatos relevantes para o público não puderem ser publicados, a capacidade de decisão de sociedade fica mutilada e a democracia perde sua força. O mesmo ocorre se não houver espaço na imprensa para opiniões divergentes, ou se a imprensa, de qualquer modo, for impedida de fiscalizar o poder público o de expressar os anseios populares.

É a imprensa, em última instância, que possibilita o exercício político no atual cenário social. A respeito dessa afirmação, cabe recordar aqui algumas interessantes considerações de Hanna Arendt sobre a política. Para essa autora, a ação da política só pode desenvolver-se onde existe uma esfera pública, isto é, onde está presente aquela instância em que os cidadãos agem em conjunto, conversam entre si, discutindo assuntos de interesse geral com vistas a formações de convicções comuns. A concepção de política de Hanna Arendt é dominada pela palavra e pelo discurso – pela comunicação – por um agir em conjunto em função do interesse comum. É precisamente a ação política que, na opinião dos antigos, compartilhada por Hanna Arendt, leva à dignificação do homem, pois é através dela que o ser humano pode mostrar-se, ser visto e ouvido” (…)

“O ponto central é que a responsabilização civil, quando prevista de modo inadequado pela legislação, pode levar os meios de comunicação à prática de auto-censura. Em outros termos, a imprensa pode deixar de divulgar informações controvertidas, ou mesmo notícias verdadeiras de difícil comprovação em juízo, para evitar ações de indenização. Desta forma, informações de interesse dos cidadãos e essenciais ao debate público deixam de ser publicadas.

Ademais, o papel investigativo exercido pelos meios de informação jornalística também pode ser prejudicado, sobretudo em questões envolvendo denúncias de corrupção no Poder Público. Sabemos que a participação da imprensa nestes casos é essencial, tanto denunciando quanto exercendo pressão para que os culpados sejam devidamente punidos” (…)

“Para finalizar, é oportuna uma última consideração sobre a importância da liberdade de imprensa para a democracia, tendo em vista Direito constitucional. No parágrafo único, do art. 1º, a Constituição de 1988 assim determina: “Todo poder emana do povo, que exerce por meio de representantes ou diretamente, nos termos desta Constituição” (grifamos). Analisando a fundo este dispositivo constitucional verificamos quão grandioso e importante é o ideal da liberdade de imprensa.

Sem liberdade de imprensa não há mesmo como pensar em democracia, pois o livre acesso a informação é fundamental para aqueles que, segundo a Constituição, são verdadeiras fontes de todos os poderes: os cidadãos. Sem liberdade de imprensa a determinação constitucional de que o poder deve ser exercido pelo povo não passaria de letra morta”.

Destarte e, em conclusão, impõe-se a improcedência da presente ação.

Ante o exposto, julgo a ação Improcedente e, por conseguinte, Condeno o requerente no pagamento das custas e despesas processuais, atualizadas desde o desembolso, bem como em honorários de advogado, que arbitro, nos termos do § 4º, do artigo 20, do Código de Processo Civil, em R$ 1.500,00.

P.R.I.

São Paulo, 30 de novembro de 2001.

Márcio Antonio Boscaro

Juiz de Direito

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!