Duelo legal

União pede suspensão da liminar que beneficiou o Rio de Janeiro

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4 de janeiro de 2002, 13h46

O governo reagiu com a mesma firmeza que o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Marco Aurélio, para tratar da decisão que permitiu ao Estado do Rio de Janeiro a compensação de eventuais perdas na arrecadação do ICMS nas suas dívidas com a União.

A Advocacia-Geral da União (AGU) protocolou no STF uma petição em que requer imediata suspensão da liminar que foi parcialmente concedida por Marco Aurélio.

A decisão (Clique aqui para ler o despacho), nos autos de uma ação cautelar incidental (PET 2.600), refere-se à Ação Cível Originária (ACO 615) e permite que o governo fluminense abata até 80% das parcelas devidas, como forma de compensar os prejuízos causados pelo plano de racionamento de energia elétrica.

No pedido de reconsideração, a AGU requer vista dos autos do processo. O governo rechaça a tese de que o Estado tenha sofrido prejuízos com as medidas adotadas para evitar o “apagão”.

O ministro Gilmar Mendes imputa má-fé ao governo do Rio e cerceamento de defesa ao presidente do STF.

Logo nas primeiras linhas da petição, o advogado-geral externa seu inconformismo ao citar frase de Marco Aurélio defendendo o princípio do contraditório. Gilmar acha que, antes de decidir, o presidente do STF deveria abrir vista à União para que houvesse o direito de ampla defesa e obediência ao devido processo legal.

“A cautelar”, reclama o advogado-geral, “viola todas essas prerrogativas. Negou-se à União a prerrogativa básica de apresentar suas razões e o correspondente direito de que tais razões sejam consideradas pelo órgão julgador”. E mais, afirma Gilmar “foram notoriamente desconsideradas as razões já apresentadas pela União em sua contestação”.

A rapidez do Palácio do Planalto é uma tentativa de desestimular pedidos semelhantes que podem ser apresentados pelos demais Estados eventualmente prejudicados pelo racionamento.

Leia o pedido do governo

Ação Cível Originária nº 615

Requerente: Estado do Rio de Janeiro

Requerida: União

“O princípio do contraditório é a medula do Estado Democrático de Direito”

Ministro MARCO AURÉLIO

A UNIÃO, por seu Advogado-Geral, vem à presença de Vossa Excelência, expor e requerer o que se segue.

Em 3 de janeiro de 2002, Vossa Excelência deferiu cautelar incidental nos autos em epígrafe, cuja parte dispositiva tem o seguinte teor:

“3. Defiro a medida acauteladora, fazendo-o em extensão aquém da pleiteada. Descabe suspender, de pronto, as amortizações. A esta altura, suficiente é considerar a utilidade e necessidade de concertarem-se os contratos de financiamento referidos no item 40 da inicial, sem que isso resulte no total afastamento das parcelas neles previstas. Limito esta medida à consideração dos prejuízos sofridos pelo Estado do Rio de Janeiro em virtude da queda de receita verificada, a partir da data em que ajuizada a ação cível originária – junho de 2001 – até 80% (oitenta por cento) do valor da parcela mensal a ser satisfeita, por contrato. Assento mais, que, se procedente o pedido formulado na citada ação, os valores abatidos serão alvo de dedução e, se improcedente, comporão o refinanciamento previsto nos referidos contratos.”

A decisão sob exame viola vários princípios e regras do direito, como passamos a demonstrar.

I – DA VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO, DA AMPLA DEFESA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

É necessário enfatizar, de início, que até a decisão de 3 de janeiro, o processo em epígrafe tramitou em completa observância aos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal. Com efeito, o relator do presente feito, Ministro Néri da Silveira, claramente condicionou a apreciação do pedido de antecipação de tutela à prévia manifestação da parte ré. Para tanto, o relator determinou, em despacho de 13 de junho de 2001, a citação da União para apresentar contestação. A contestação foi devidamente apresentada em 1º.10.2001. Assim, a decisão quanto ao pedido de antecipação de tutela somente foi proferida (em 26.10.2001) após apresentadas as razões da parte ré.

Lembre-se, ademais, que a decisão monocrática do Ministro Néri da Silveira veio a ser confirmada em sede de Agravo Regimental, por unanimidade, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.

Desse modo, resta concluir, de plano, que a decisão de 3 de janeiro de 2002, claramente destoa da concretização judicial daqueles princípios tal como já verificada neste processo. Destoa, outrossim, da firme jurisprudência desta Suprema Corte, em especial da conhecida e respeitada Doutrina Marco Aurélio acerca do princípio do contraditório, conforme será exposto adiante.


A cautelar ora deferida, em franca desconsideração das duas decisões já proferidas nestes autos acerca de postulação idêntica e da firme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, fere a mais básica e ineliminável prerrogativa do direito de defesa.

Por oportuno, seguem algumas considerações acerca do princípio constitucional da ampla defesa. Conforme já exposto em outra ocasião (Cf. MENDES, Gilmar Ferreira, “Significado do Direito de Defesa”, in Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: estudos de direito constitucional, São Paulo, Celso Bastos, 2ª ed., out./99, publicado originalmente no Informativo CONSULEX – 13.9.93), o núcleo essencial do direito de defesa incorpora três prerrogativas fundamentais concedidas a todo e qualquer acusado em processo administrativo ou judicial: o direito a conhecer as alegações contra si opostas; o direito de produzir razões factuais e normativas de modo a contraditar tais alegações e o direito de ver tais razões de defesas consideradas em uma decisão – ainda que para rejeitá-las.

Não é outra a avaliação do tema no direito constitucional comparado. Apreciando o chamado “Anspruch auf rechtliches Gehör” (pretensão à tutela jurídica) no direito alemão, assinala o Bundesverfassungsgericht que essa pretensão envolve não só o direito de manifestação e o direito de informação sobre o objeto do processo, mas também o direito de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão incumbido de julgar (Cf. Decisão da Corte Constitucional alemã – BVerfGE 70, 288-293; sobre o assunto, Ver, também, Pieroth e Schlink, Grundrechte – Staatsrecht II, Heidelberg, 1988, p. 281; Battis, Ulrich, Gusy, Christoph, Einführung in das Staatsrecht, 3ª edição, Heidelberg, 1991, p. 363-364).

Daí afirmar-se, correntemente, que a pretensão à tutela jurídica, que corresponde exatamente à garantia consagrada no art. 5º, LV, da Constituição, contém os seguintes direitos:

direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar à parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes;

– direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defendente a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo;

direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berücksichtigung), que exige do julgador capacidade apreensão e isenção de ânimo (Aufnahmefähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas (Cf.Pieroth e Schlink, Grundrechte – Staatsrecht II, Heidelberg, 1988, p. 281; Battis e Gusy, Einführung in das Staatsrecht, Heidelberg, 1991, p. 363-364; Ver, também, Dürig/Assmann, in: Maunz-Dürig, Grundgesetz-Kommentar, Art. 103, vol IV, nº 85-99).

Sobre o direito de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão julgador (Recht auf Berücksichtigung), que corresponde, obviamente, ao dever do juiz de a eles conferir atenção (Beachtenspflicht), pode-se afirmar que envolve não só o dever de tomar conhecimento (Kenntnisnahmepflicht), como também o de considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas (Erwägungspflicht) (Cf. Dürig/Assmann, in: Maunz-Dürig, Grundgesetz-Kommentar, Art. 103, vol. IV, nº 97).

É da obrigação de considerar as razões apresentadas que deriva o dever de fundamentar as decisões (Decisão da Corte Constitucional – BVerfGE 11, 218 (218); Cf. Cf. Dürig/Assmann, in: Maunz-Dürig, Grundgesetz-Kommentar, Art. 103, vol. IV, nº 97).

A cautelar em comento, destarte, viola todas essas prerrogativas. Negou-se à União a prerrogativa básica de apresentar suas razões e o correspondente direito de que tais razões sejam consideradas pelo órgão julgador. E mais, foram notoriamente desconsideradas as razões já apresentadas pela União em sua contestação.

Com efeito, não se vê, na decisão de 3 de janeiro de 2002, qualquer análise das razões já oferecidas pela União e, do mesmo modo, qualquer fundamentação suficiente e exame exauriente de razões de defesa já disponíveis nos autos.

Nessas condições, com a devida vênia, afigura-se equivocado o provimento cautelar de 3 de janeiro de 2002, pois atentatório ao núcleo essencial do direito de ampla defesa e ao contraditório, insertos no inciso LV do art. 5º da Constituição da República.

I.1. Da inobservância da Doutrina Marco Aurélio acerca do princípio do contraditório

A decisão de 3 de janeiro é conflitante, outrossim, com a conhecida e respeitada Doutrina Marco Aurélio acerca do princípio do contraditório.

A jurisprudência dessa Corte quanto ao princípio do contraditório – especialmente em decisões subscritas pelo Excelentíssimo Senhor Ministro MARCO AURÉLIO – é claríssima no sentido de recomendar-se a prévia oitiva da parte contrária em face de pedidos cautelares. Nesse sentido, merece transcrição parcial a decisão proferida pelo Excelentíssimo Senhor Ministro Marco Aurélio nos autos da Suspensão de Segurança nº 1.962, verbis:


“DECISÃO

PIS E COFINS – LEI Nº 9.718/98 E MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1.991/2000 – SEGURANÇA CONCEDIDA – SUSPENSÃO INDEFERIDA PELO 2O TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL – MEDIDA ACAUTELADORA – LIMINAR – CASSAÇÃO MEDIANTE MANDADO DE SEGURANÇA – RESTABELECIMENTO DO REGIME DECORRENTE DAS LEIS COMPLEMENTARES NºS 07/70 E 70/91 – SUSPENSÃO – EXCEPCIONALIDADE NÃO VERIFICADA – INDEFERIMENTO.

1. (…)

Por meio do ato de folha 385 a 391, examinei o pleito de reconsideração formulado pela impetrante e concluí: A Constituição Federal de 1988 deu ênfase, consideradas as balizas do Estado Democrático de Direito, ao contraditório, inserindo-se, no inciso LV do rol das garantias constitucionais, a previsão de que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Não bastasse esta cláusula, é de se registrar que o direito de ser ouvido – antes de ato processual que repercuta no patrimônio ou, mais ainda, na liberdade de ir e vir – decorre, até mesmo, de um direito natural do homem, estando, de resto, compreendido, como básico, no que se entende por devido processo legal. Os novos ares constitucionais levaram esta Corte a observar o contraditório também nos embargos de declaração – e é sabido que estes versam sempre sobre algo pretérito que, tudo indica, haja sido delineado com irrestrito respeito ao contraditório. Com maior razão, há de ter-se presente esse instituto quando em jogo a medida excepcionalíssima – e, de início, discrepante com a Carta da República, ao encerrar os meios de acesso ao Supremo Tribunal Federal – que é a suspensão de segurança.

(…)” (Grifos nossos)

(SS-1962/RJ; MARCO AURÉLIO; DJ 17/12/2001)

Claríssimo é o recente pronunciamento do Excelentíssimo Senhor Ministro MARCO AURÉLIO, nos autos da Suspensão de Segurança nº 2.061, verbis:

“(…)

Quanto à preliminar de nulidade, noto não haver sido implementado o contraditório, embora seja o procedimento sempre adotado por esta Presidência na hipótese de pleito de suspensão, quer de liminar, quer de tutela antecipada, quer de segurança concedida. O JURISDICIONADO TEM O DIREITO, ASSEGURADO CONSTITUCIONALMENTE, DE SER OUVIDO ANTES DA PRÁTICA DE ATO QUE AFASTE DECISÃO QUE O BENEFICIOU. ESSE RITUAL COMPÕE O DEVIDO PROCESSO LEGAL, INCUMBINDO, ASSIM, PRESERVÁ-LO. (…)

(Decisão de 30.10.2001 – original sem destaques)

Vale invocar, na mesma linha, o entendimento do Presidente dessa Colenda Corte, Ministro MARCO AURÉLIO, que, em decisão recente, assim se pronunciou:

“DESPACHO

SUSPENSÃO DE DECISÃO – CONTRADITÓRIO E AUDIÇÃO DO PROCURADOR – GERAL DA REPÚBLICA.

1. Ante a garantia constitucional do contraditório, dê-se conhecimento desta medida à autora da medida cautelar que motivou a decisão contra a qual se insurge a requerente.

2. Com o pronunciamento, colha-se o parecer do Procurador-Geral da República.

3. Publique-se e intime-se nos termos do artigo 237, inciso II, do Código de Processo Civil.” (Grifos nossos)

(PET 2450/GO; MARCO AURÉLIO; DJ 09/10/2001)

Quanto à necessidade de observância do Princípio do Contraditório, em outra oportunidade, asseverou o Excelentíssimo Senhor Ministro MARCO AURÉLIO:

“DESPACHO

CONTRADITÓRIO – OBSERVÂNCIA.

1. A alegação segundo a qual o Banco Central terá que restituir ao Banco Interunion S.A. a importância de R$30.000.000,00 (trinta milhões de reais) – folha 308 tem o sentido mitigado pelas balizas do ato atacado. Determinou-se a observância do quadro de credores e critérios estabelecidos pelo Cosif. Impôs-se mais, no campo da contracautela, caução revelada por bens “correspondentes ao valor de R$90.000.000,00 (noventa milhões de reais), total da dívida

do Banco Interunion” – folhas 3 e 4 da inicial relativa ao pedido de suspensão.

2. Os parâmetros da decisão tornam improcedente o receio da União e do Banco Central do Brasil. A premissa torna prevalecente a óptica inicialmente externada – no sentido de ter-se o respeito ao contraditório e, portanto, o princípio constitucional, que é a medula do Estado Democrático de Direito.

3. Solicite-se ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região cópia do acórdão referente ao agravo apreciado – certidão de folha 164.

4. Publique-se.” (Grifos nossos)

(PET 2375/RJ; MARCO AURÉLIO; DJ 09/08/2001)

Por fim, acentue-se que a observância do contraditório faz-se particularmente necessária no caso em tela, haja vista o caráter nitidamente excepcional da cautelar ora deferida. De fato, verificou-se nos presentes autos renovação de pleito já rejeitado por nada menos que duas decisões do Supremo Tribunal Federal (uma monocrática e uma colegiada, esta por unanimidade). A revisão monocrática de decisão plenária unânime não pode, certamente, ser tomada como algo ordinário. Não pode haver dúvida quanto ao fato de que a admissão do novo pedido cautelar, em contrariedade àquelas duas claríssimas decisões afigura-se absolutamente excepcional. De extrema excepcionalidade, cabe enfatizar, é a admissão de pleito já rejeitado por decisão plenária unânime e o provimento cautelar retroativo, acerca de tema de extrema relevância (equilíbrio fiscal de unidades da federação). Esta, não há dúvida, deveria ser uma hipótese típica de observância necessária ao princípio do contraditório.


II – DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO JUÍZO NATURAL, À PREVENÇÃO E A REGULAR DISTRIBUIÇÃO DE FEITOS

Perplexidade ainda maior causa a violação ao princípio do juízo natural e a fraude à distribuição regular de feitos perante essa Suprema Corte perpetrada pelo Estado do Rio de Janeiro.

Sustenta o Requerente que, incabível a tutela antecipada, formulou-se então a ação cautelar incidental para o fim de renovar o pedido indeferido sob a forma de tutela antecipada.

Acerca da projeção do princípio constitucional do juiz natural como obrigação de observância da disciplina relativa à atribuição de competência às autoridades judiciais, firmou o Supremo Tribunal Federal a seguinte e claríssima lição:

“É irrecusável, em nosso sistema de direito constitucional positivo – considerado o princípio do juiz natural – que ninguém poderá ser privado de sua liberdade senão mediante julgamento pela autoridade judicial competente. Nenhuma pessoa, em conseqüência, poderá ser subtraída ao seu juiz natural. A nova Constituição do Brasil, ao proclamar as liberdades públicas – que representam limitações expressivas aos poderes do Estado – consagrou, agora de modo explícito, o postulado fundamental do juiz natural. O art. 5º, LIII, da Carta Política, prescreve que ‘ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente’.” (HC nº 79865/RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 06.04.2001, p. 68).

Muito embora tenha o Requerente invocado a distribuição por prevenção, cuidou de oferecer a ação cautelar pleiteada somente após o período de recesso judiciário e já mesmo durante as férias forenses. A conseqüência óbvia dessa circunstância reside na deliberada opção pelo Requerente por subtrair-se à Relatoria original do feito, uma vez que o Relator da ACO nº 615 havia, em decisão monocrática, indeferido o pedido de tutela antecipada em decisão que se viu confirmada, por unanimidade, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal. Essa circunstância viola, para além de todas as evidências, o princípio do juízo natural e constitui forma transversa, canhestra e abstrusa de inobservância da prevenção e da regular distribuição de feitos perante o Pretório Excelso.

O aspecto mais constrangedor da litigância de má-fé promovida pelo Estado do Rio de Janeiro consiste em tardar, em quase dois meses contados da decisão do Plenário que negou provimento ao agravo interposto contra a decisão do Relator da ACO 615, o ajuizamento da ação cautelar ora sob exame. Com efeito, é inescondível o artificialismo de sustentar, após haver dormitado por quase dois meses, o periculum in mora para a concessão de liminar em ação cautelar e a pretensão de conferir-lhe a teratológica eficácia retroativa ao ajuizamento da ação civil originária (isto é, retroativa a seis meses passados, uma vez que a ACO 615 foi proposta em junho de 2001). Se havia risco de lesão irreversível, tal lesão restou consumada no curso desses seis meses e, em especial, nos últimos dois meses em que o Estado do Rio de Janeiro tardou para oferecer a ação cautelar em análise.

É rigorosamente impossível compreender tal retardo se verdadeira a alegação de risco de lesão irreversível.

Nada obstante, tal retardo coincidiu com o período de férias forenses e, portanto, com a ausência de distribuição impessoal e a inobservância prática da prevenção. Furtou-se assim o Estado do Rio de Janeiro à prevenção e à regular distribuição de feitos e o fez de modo a sacrificar, por quase dois meses, interesse seu que alegava lesado de modo grave e irreversível exatamente com o retardamento da concessão da liminar. A grosseira fraude ao princípio do juízo natural vicia igualmente a alegação de urgência na concessão da liminar e, ao pretender efeito retroativo em seis meses, viola ainda outra vez o mesmo princípio do juízo natural na medida em que sobrepõe a decisão ora pleiteada ao regular, atempado e múltiplo indeferimento que o legítimo e original Relator do feito bem como o Plenário do Supremo Tribunal Federal opuseram ao pedido de tutela antecipada oferecido.

Os múltiplos vícios que maculam o pedido de liminar ora em exame estão a exigir a imediata suspensão dos efeitos da decisão concessiva da liminar, ou se assim se estender, sua pronta revogação, assegurando a observância do princípio do juízo natural bem como da eficácia máxima e regular das normas relativas à prevenção e à regular distribuição de feitos.

III – DA LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ: DA ALTERAÇÃO DA VERDADE DOS FATOS EM PEDIDO LIMINAR SEM A AUDIÊNCIA DA PARTE CONTRÁRIA

Na ACO nº 615, o Estado sustenta que incorreu em perda média mensal de R$ 44,5 milhões na arrecadação do ICMS e que, em decorrência, deixou de contar com o numerário suficiente ao pagamento dos servidores públicos e dos fornecedores, à manutenção dos investimentos, à liquidação dos precatórios e ao cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal.


A decisão prolatada, por sua vez, determina o desconto de valor correspondente à queda de receita verificada.

Diante da existência de fatores sazonais, a análise pertinente à alegada redução de receita deve centrar-se na comparação com períodos equivalentes de anos anteriores. Segundo os balancetes orçamentários mensais disponíveis até outubro do ano passado e disponibilizados pelo Ministério da Fazenda, a arrecadação de ICMS em cada um dos meses de 2001 foi sempre superior aos meses correspondentes desde 1996 (Gráfico 1). Portanto, como não se verifica a queda alegada, mesmo que aceita a tese do Estado, não haveria base para a realização da dedução determinada pela liminar. A arrecadação de ICMS acumulada até outubro de 2001 foi de R$7.769 milhões, superior àquela do mesmo período do ano anterior em R$ 1.163 milhões Estimativas feitas pelo BNDES indicam que, para a totalidade do exercício, o crescimento da arrecadação de ICMS em relação ao exercício anterior seria de 14,8%.

GRÁFICO 1 – ESTADO DO RIO DE JANEIRO – ARRECADAÇÃO DE ICMS

VARIAÇÃO % DA ARRECADAÇÃO MENSAL DE 2001 EM COMPARAÇÃO COM OS EXERCÍCIOS DE 1996 A 2000

Tais dados afiguram-se, destarte, absolutamente reveladores e desqualificam a pretensão do Requerente.

No mesmo sentido, deve-se assinalar que, apesar de ser o principal elemento, o ICMS não é a única fonte de receita do Estado do Rio de Janeiro. A receita bruta apurada em 2001 é também sistematicamente superior à observada nos exercícios anteriores (Gráfico 2). É com base nesta receita que o Estado sustenta suas despesas. A receita bruta acumulada até outubro de 2001 foi de R$ 10.538 milhões, superior a do período equivalente em 2000 em R$ 1.522 milhões. A projeção desta receita para o ano 2001 feita pelo Estado por meio de seu Programa de Reestruturação e Ajuste Fiscal indica que seria suficiente para gerar resultado primário superavitário de R$652 milhões. Esta previsão de superávit já contempla crescimento de R$ 754 milhões na despesa com pessoal e de R$ 737 milhões nas demais despesas correntes de capital, com destaque para um crescimento estimado de R$ 448 milhões nos investimentos. Até o presente momento, nada indica que estas projeções venham a ser frustradas.

GRÁFICO 2 – ESTADO DO RIO DE JANEIRO – RECEITA BRUTA

VARIAÇÃO % DA ARRECADAÇÃO MENSAL DE 2001 EM COMPARAÇÃO COM OS EXERCÍCIOS DE 1996 A 2000

Finalmente, a série de Receita Líquida Real apurada até o presente momento indica crescimento praticamente ininterrupto. Cabe assinalar que o serviço da dívida do Estado do Rio de Janeiro junto à União corresponde a 13% desta receita e na eventualidade de frustração, esta despesa reduz-se na mesma proporção.

Tais dados afastam o pressuposto de fato indispensável à legitimação da pretensão do Requerente, o que se afigura ainda mais grave se considerada a pretensão de concessão de liminar sem a audiência da parte contrária. Essas circunstâncias evidenciam o inequívoco escopo de induzir em erro o Presidente do Colendo Supremo Tribunal Federal com bases em alegações negadas pelos fatos. Tal proceder constitui claríssima prática de litigância de má-fé, em clara violação aos arts. 14 e 17 do Código de Processo Civil.

Essa circunstância reforça a gravidade da inobservância dos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, impondo a imediata suspensão da eficácia da liminar concedida até que se apreciem as razões de fato e de direito a serem apresentadas pela União em sua oportuna contestação.

IV – DO PEDIDO

As razões acima expostas demonstram, claramente, que a cautelar deferida em 3 de janeiro de 2002 viola princípios e regras basilares do Estado Democrático de Direito. Evidenciam, outrossim, a necessária oitiva da União previamente ao pronunciamento acerca da cautelar postulada pelo Autor.

Considerando as violações ao direito acima elencadas, vem a União requerer vista dos autos bem como a imediata suspensão, em rigorosa observância aos princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal, da eficácia da liminar concedida até que sejam integralmente consideradas as razões de fato e de direito a serem oferecidas pela União quando de sua contestação à presente Ação Cautelar.

Nesses termos,

Pede deferimento.

Brasília, 4 de janeiro de 2002.

GILMAR FERREIRA MENDES

Advogado-Geral da União

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