Rock em luto

Professor comenta situação legal de companheira de Cássia Eller

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3 de janeiro de 2002, 13h31

Morreu Cássia Eller. O rock está enlutado. Morreu com o seu jeitinho agridoce de ser rebelde e irreverente. Morreu polemizando com velhos estigmas: sexo, drogas e “rock’n roll”.

Oriunda de família de classe média, seguia seu destino e guiava-se por seus sentimentos. Homossexual assumida, casada há treze anos com Eugênia Martins, criava, ao lado desta, seu filho Chicão, de oito anos.

Não precisaria mais nenhum ingrediente em sua curta e intensa história de vida para ser estigmatizada por setores retrógrados de uma sociedade covarde e hipócrita. Tímida longe dos palcos. Neles uma leoa. Com força leonina subjugou os conservadores diante de seu talento. Falsos calavam e fingiam ignorar sua opção sexual.

É chegado o momento do Congresso Nacional, que se diz independente de influências, principalmente religiosas, votar destemidamente sobre a união estável de pessoas do mesmo sexo. A cantora preocupava-se com o assunto. Pretendia casar-se com Eugênia. Pretendia garantir seus direitos sucessórios e os direitos de Chicão ficar sob a guarda de sua companheira, pois ela era a mãe do menino, afirmava. Com a palavra a Justiça!?

A morte da roqueira ressuscitou mais um tema controverso. A criminalização dos usuários de drogas no exato instante em que se encontra à sanção presidencial nova legislação aprovada há pouco pelo Congresso. O Brasil, na contramão do direito moderno, sempre penalizou o usuário. Desde 1976 até hoje são punidos com penas que vão de seis meses a dois anos de detenção. Pasmem!?

O novel texto empresta enganosa sensação de que o tema relativo aos usuários de drogas foi tratado de maneira mais benévola. É mentira. Nesta, o usuário/dependente terá que optar entre a prisão e o tratamento médico. Fazendo a segunda opção, ele terá que disputar uma vaga hospitalar (existe!?) com os milhões de pacientes que não têm acesso aos serviços públicos de saúde. É ridículo. É um retrocesso, alerta o psiquiatra e professor Dartiu Xavier da Silveira, da USP. Ele adverte, ainda, que mesmo que se aceite a internação para tratamento, havendo recaída, o que acontece em cerca de 80% dos casos, o cidadão poderá ser preso. Risível!?

Em resumo, o Estado continuará a criminalizar o usuário/dependente, quando o correto seria descriminalizar sua conduta. A legislação está a prever, sempre às avessas, o que os doutos chamam de justiça terapêutica. Só que esta, em países como os Estados Unidos, funciona dessa forma: se o cidadão não for dependente de droga, assim considerado por uma comissão técnica, será advertido das mazelas do consumo de entorpecentes e encaminhado à sua residência, como explica o procurador de justiça Ricardo de Oliveira Silva, presidente da Associação Nacional de Justiça Terapêutica.

Clama-se sensatez do presidente da República. Espera-se o veto presidencial.

Se a morte de Cássia Eller já não bastasse, mais um tema veio a reboque. A intervenção da polícia em casos como tais. Hodiernamente quem primeiro rotula o cidadão como traficante ou usuário/dependente é um delegado de polícia. Traficante, crime hediondo e prisão. Usuário/dependente, conforme certas condições pessoais, liberdade mitigada mediante o pagamento de fiança.

Os critérios classificatórios são subjetivos. Uns gritarão: não são subjetivos e a autoridade policial há de fundamentar sua decisão no momento da lavratura do auto prisional, pena responder pelo crime de abuso de autoridade. Aos afoitos, apresso-me em responder. Nos meus mais de vinte anos dedicados à advocacia criminal, nunca, nunca vi tal decisão fundamentada. Existe. Deve existir. Para confirmar a regra.

A investigação é realizada pela polícia estadual ou federal, dependendo do crime em apuração. Tem o inquérito policial uma única finalidade: colher os indícios da ocorrência do crime, a sua materialidade e a sua autoria. Com esses elementos o Ministério Público dá inicio ao processo criminal, findando este com uma sentença judicial.

Pois bem. Morre Cássia Eller em condições não esclarecidas. O que fazer diante dessa situação ocorrente aos borbotões diariamente pelos hospitais brasileiros? Requer-se o auxílio do Estado, encaminha-se o corpo (sem qualquer ingerência da polícia, exceto se houver desconfiança de que a morte foi decorrente de crime) para necropsia, a fim de estabelecer a causa da morte.

Morre Cássia Eller. A sempre operosa e diligente polícia civil fluminense comparece imediatamente a clínica, arrecada papéis necessários à investigação (!?), encaminha o corpo da roqueira para o IML e começa a inquirir testemunhas na delegacia.

Mas cá com os meus botões: o que investiga a polícia? Há crime?

É notório Cássia Eller ter admitido consumir drogas. Responsável, nunca fez apologia a utilização de drogas, o que seria criminoso. Familiares informam ter ela abandonado o vício. Embora ela admitisse usar eventualmente. “Cada um é dono de seu nariz”, dizia em tom de blague.

Pronto, passado relativo ao consumo de drogas revelado e causa morte não esclarecida, foi o tempero que bastou para acicatar a polícia. O delegado titular da Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil, em gesto nobre, afirma que as “investigações” (!?) para apurar as causas da morte (repito: há crime?) serão rápidas e sigilosas. Apesar de solidário com os familiares, esclarece haver uma tarefa policial a ser executada, em razão das suspeitas de ter Cássia Eller falecido por overdose. Portanto, a investigação (!?) há de ser detalhada e cuidadosa.

Consumir drogas não é crime. Crime é: “adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.

Mas venha cá, nenhuma destas condutas aconteceu. Então o que a polícia investiga?

Ah! Para o cioso delegado “se” o laudo pericial concluir que a já saudosa “garotinha do roque”, na expressão de Ezequiel Neves, morreu de overdose, a briosa polícia de nosso estado tentará identificar e prender o suposto traficante que lhe vendera as drogas. Sei. Compreendo. Mas porque não fizeram isso antes!?

É, Cássia Eller, isso é real. Não estou mentindo. É um desrespeito à sua memória, à dor de seus familiares, de seus amigos e de seus fãs.

É, Cássia Eller, o Renato Russo tinha razão: “Mais nada vai conseguir mudar o que ficou…”

Descanse. Descanse em paz. 2002 iniciou e nada mudou. Mudou! Você foi cantar roque para os deuses. Parafraseando a Ângela Rô-Rô: você está viva, mesmo morta.

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