Relações humanas

Alienação faz o homem regredir à sua condição primitiva

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23 de fevereiro de 2002, 19h23

Alienação é um mistério de ser ou não ser. Parece aquela dúvida shakespeariana – ser e não ser no mesmo tempo e no mesmo lugar. O mesmo vocábulo pode significar a transferência de domínio de algum bem, de um titular para outro titular. O engraçado que para ocorrer a alienação de um bem se requer que o titular possua plena capacidade para dispor de seus bens.

Metaforicamente, o alienado é mesmo um vendido, um corrompido que perde a coerência. Os antigos quando se referiam à loucura utilizavam o termo alienação mental. O louco ou o alienado deixou de pertencer a si mesmo. Acreditava-se que o sujeito estava mesmo “tomado por espíritos” às vezes pelo demônio. Alguém que não sou eu me invadiu e me representa. Através da droga se experimenta a sensação de estranhamento, de estar “fora de si”. As drogas são profundamente alienantes e perfazem a estranha máfia de ser e não ser.

A fronteira entre o ser e o não ser é extremamente complexa e perigosa e muito pouco explorada, razão porque pouco se tem escrito sobre ela. Talvez por isto, pelo menos para alguns a alienação permanece como algo abstrato, indecifrável e imperceptível.

Se a história distancia o homem do animal, a alienação perfaz o caminho inverso e perverso, e re-animaliza o homem.

Já que somos seres únicos e indivisíveis, a alienação detona as individualidades e representa a negação do homem. A história é a evolução do trabalho dos homens e, foi assim que homem se construiu. O trabalho é criação e tortura, é miséria e fortuna, felicidade e tragédia. O trabalho transforma o outro material e transforma também o seu agente.

E o produto do trabalho se parece com o trabalhador. Enfim transformamos a natureza que também nos transformou. O homem se divorcia de si mesmo na alienação. A trilha da perdição é a mesma que o constrói, ou seja, o trabalho. O homem é o único animal que produz sua própria existência e tem consciência de sua identidade revelada pelo trabalho.

Na sociedade capitalista ocorre uma ruptura, uma cisão, um divórcio entre produto e produtor. O trabalhador produz o que não consome, consome o que não produz.

Mas através do dinheiro podemos comparar coisas essencialmente diferentes. No trabalho alienado essa tal identidade se transforma em antagonismo. O outro se apresenta a mim como ser estranho, independente, irreconhecível.

A alienação inventa a solidão humana, nos tornas irreconhecíveis perante o outro e perante o próprio espelho. No entanto, como a nossa sobrevivência depende de deixar a nossa marca na natureza, de transformá-la à nossa imagem e semelhança, e como esta natureza transformada é eterna, maior do que nós, o produto do trabalho sobrevive a nossa morte.

Quando o nosso produto se rompe, se aparta, se apresenta como estranho a nós mesmos, nos alienamos de nossa própria humanidade.

A própria divisão do trabalho faz com que o trabalho se resuma em uma rotina de repetições e nenhum dos trabalhadores não utiliza sua criatividade, seu raciocínio. Em outras palavras foram transformados em força de trabalho.

Peça de uma imensa engrenagem capitalista que é um sistema centrado na mercadoria e no lucro, o homem se ausenta de si mesmo lenta e gradativamente. É a transformação do trabalho humano em mercadoria através da mercantilização. Somente o valor pode gerar mais valor. A sociedade está divida entre os donos dos meios de produção e os espoliados que só possuem a sua força de trabalho para vender.

O sistema capitalista é alimentado e realimentado pela carência, apesar de que o sistema só funciona até o limite possível de produtividade para fugir da crise de superprodução.

Graças à alienação, desvinculamos o consumo da produção. Consumo é a outra face do próprio processo alienador. Aliás, produzir corresponde obviamente ao consumo dos meios de produção. O consumo de força de trabalho é condição para a produção.

No consumo ocorre uma dupla negação, onde a criação se transforma em alienação, e, esta recria o consumidor humanizado por ela, ou seja, duplamente alienado.

A sexualidade é necessidade humana que faz compreender o motivo pelo qual o sexo, o erotismo e a pornografia se transformam em mercadorias. Nos seres humanos, o biológico se realiza pela via social. Pela via humana repassamos uma versão civilizada de nossa face animal.

Todos nós vivemos a fantasia de ter nossa “Passárgada”, de ter o desejo realizado da forma e no lugar que nos aprouver. O sexo exclusivamente biológico não realiza o sujeito que o pratica. É o sexo um desejo genético, pessoal e intransferível. Mas só se realiza pelo outro.

Quando o desejo encontra o outro deixa de ser vago e genérico. Deixa de ser só biológico e passa se concretizar numa relação social.

O homem está condenado à satisfação social do seu ser animal. É curial e oportuno lembrar o que Sartre aduziu a respeito: “É o que posso expressar dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado porque, não se criou a si mesmo, e como, no entanto é livre, uma vez que foi lançado no mundo é responsável por tudo o que faz”.

Quando o animal se realiza, só o faz pela negação, só o faz quando reencontra o ser humano e pode expressar através dele. O sexo é uma mercadoria muito particular e tem a tarefa de realizar o biológico pelo sensorial-biológico, com métodos de elaboração que são humanos. Utilizam-se fantasias estritamente humanas e das relações sociais de produção: mercadoria, consumo, produção para realizar o biológico stricto sensu e, com isso nega o humano.

O resultado é uma sensação de vazio, frustração e solidão, resultante de um sexo que não soube encontrar o outro porque partiu em busca de si mesmo. Agora a alienação atinge o domínio das fantasias, a busca do prazer que me impele ao outro.

Condenado a realizar o animal que carrega em si pelo modo social de ser, o homem se encontra, enquanto ser biológico, quando nega o animal que é. O capital rouba do sexo sua feição humana e, entrega o animal à sua própria sorte.

A palavra representa o mundo na sua ausência, por isso, traz em si a possibilidade de compreensão e traição da natureza. A alienação além dessas profundezas atinge também a linguagem. A gíria, por exemplo, sempre foi um modo de dizer, o indizível. Certas gírias se transformam em formas de incomunicação.

São dialetos ininteligíveis quase implorando por telepatia. Mas por trás de todo mistério semântico das palavras (ditas ou não) revela-se o fazer humano. Aliás, ironicamente a gíria prolifera justamente entre os jovens que possuem a idade fecunda e alma pronta para questionar e modificar o status quo. É melhor que não saibam realmente o que eles têm a dizer. A gíria é um agente neutralizador da verdade e da coerência verbal.

Freud garante que trazemos em nós um outro que nos escapa, do qual somos porta-vozes involuntários. É a revelação do id (inconsciente) reprimido pelo ego e estimulado pelo superego.

Apesar disto, a alienação sempre toma forma de luta expõe e representa o seu avesso. Gera consciência que gera alienação que gera consciência ciclicamente…

O processo de conscientização, a rebeldia contra o cotidiano, a participação social e política têm papel bastante importante na luta contra a alienação.

Só a função dialética entre a paixão e a razão é capaz de organizar os homens; é o pensamento lírico do professor Wanderley Codo. (in O que é alienação, editora brasiliense, terceira edição, 1986).

A alienação científica é aquela abstrai os humanos da ciência que não é um sistema de enunciados certos ou bem estabelecidos, nem um sistema que avança constantemente em direção a um estado final. Karl Popper ressalta: “Nossa ciência não é conhecimento: ela nunca pode pretender haver atingido a verdade, ou mesmo um substituto para ela, tal como a probabilidade.

No poema de Carlos Drummond de Andrade “Eu, etiqueta”, ele retrata bem a alienação (…) “estou na moda. É doce estar na moda, ainda que a moda seja negar minha identidade, trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas, todos os logotipos do mercado”.

A alienação do latim alienare significa tornar algo alheio a alguém. Filosoficamente, é o processo pelo qual os atos de uma pessoa são governados por outros e, se transformam em uma força estranha colocada em posição superior e contrária a quem a produziu (Marx).

O trabalho alienado ocorre quando a produção tornou-se o objetivo do homem, em vez de o homem ser o objetivo da produção. É marcado pela rotina, pelo embrutecimento, pelo desprazer e pela exploração econômica. É capaz de fazer de pessoas sensíveis como os artistas, filósofos e até religiosos fiquem insensíveis e indiferentes ao mal que elas mesmas produzem.

O consumo alienado é aquele em que inexiste uma relação direta e real entre o consumidor e a coisa adquirida, resultante de desejos e fantasias artificialmente inculcados. No lazer alienado, não há autêntico envolvimento da pessoa com o lazer, a relação social é alienada, marcada pela indiferença recíproca, pela ausência de troca de experiências e sentimentos verdadeiramente humanos.

Mas só venceremos a alienação pelos mordazes que vociferam em nossos ouvidos sobre os gravames absurdos e rotineiros ao nosso redor… sem se deixar contagiar que pela possível impotência, quer pela ilusão alegórica de se estar pregando no deserto. Há muitos que desejam despertar, acreditem, deste sonho esplêndido.

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