Fim de prisões

Evandro Lins e Silva: cadeia é jaula para reproduzir criminosos.

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22 de fevereiro de 2002, 16h37

No momento em que a segurança se tornou a primeira preocupação nacional e quando até políticos do PT abandonam a costumeira reticência sobre o assunto para correr ao extremo oposto e pregar medidas como prisão perpétua e o Exército nas ruas, o criminalista mais experiente do país defende a extinção das cadeias. Evandro Lins e Silva, que em 18 de janeiro completou 90 anos e continua ativo numa carreira que iniciou aos 19, está convencido da inutilidade de condenar criminosos à prisão, instituição que considera uma “infâmia”.

“A cadeia é uma jaula reprodutora de criminosos. Ela degrada, avilta, deforma o sujeito. E estigmatiza: ninguém mais dá emprego ao ex-presidiário e ele volta a se marginalizar para sobreviver.” Alguma possibilidade de que a prisão exerça um papel reabilitador? “A experiência universal é que ninguém sai da cadeia melhor do que quando entrou”, afirma o ex-professor de História do Direito Penal e Ciência Penitenciária. Para a reabilitação do criminoso, Lins e Silva prescreve trabalho, e remunerado, como havia quando ele começou a advogar, nos anos 30.

“Hoje a cadeia é um depósito de presos. Além de tudo, as penitenciárias são caras para o Estado. Cada preso custa aos cofres públicos de três a sete salários mínimos. Se esse dinheiro lhe fosse dado para sobreviver, ele não iria roubar.”

“É claro que sou favorável à segregação das pessoas que possam pôr em risco a incolumidade alheia”, ressalva o advogado, que ocupou os cargos de ministro de Estado no governo João Goulart e de ministro do Supremo Tribunal Federal entre 1964 e 1969, quando foi cassado por razões políticas pelo Ato Institucional número 5 do regime militar.

“A vida pública enriqueceu minha biografia, mas me empobreceu pessoalmente”, brinca. “Voltei à banca de advogado, após a cassação, com um adicional majestático, o título de ministro”, continua, com a mesma ironia suave e ligeiramente ambígua de quem não desvaloriza de todo as honrarias recebidas – tanto que, a seu redor, todos o chamam, simplesmente, de ministro.

Com base em sua experiência, o ministro se sente à vontade para afirmar que os criminosos que constituem perigo à sociedade são minoria. “A maior parte não optaria pela bandidagem se lhe fosse dada a escolha.” No lugar da prisão, é preciso encontrar “maneiras de manifestar reprovação ao crime, mas que não inutilizem a criatura humana e ao mesmo tempo tragam uma compensação pelo dano causado”, como multas pecuniárias e trabalho em favor da comunidade que o criminoso prejudicou.

O advogado tem plena consciência de que suas idéias não satisfazem, muito ao contrário, as demandas emocionais que surtos de violência suscitam na opinião pública, fenômeno que se agrava perigosamente num ano eleitoral como este. Lins e Silva sabe também que esse é o caldo de cultura ideal para que surjam idéias como a adoção da pena de morte, de conhecido apelo popular. “Há certas coisas que não podem ser submetidas à democracia direta”, diz o ministro, que, no campo das medidas “tópicas”, de caráter de emergência, preconiza medidas igualmente polêmicas.

A principal providência seria proibir a fabricação de armas de uso individual ou estatizá-la. Além disso, anular todas as licenças de porte de arma, para depois analisar uma a uma. “Nenhum cidadão tem o direito de andar armado”, diz. “Quem tem de dar segurança é o Estado.” Lins e Silva não supõe que a proibição livrará totalmente a sociedade da convivência com armas de fogo, mas acredita que o acesso a elas pode ser dificultado.

Nada – nem mesmo momentos de alarme coletivo como o atual nem o fato de ter vivido num Rio de Janeiro que, ao longo de sua vida, foi ganhando bolsões de criminalidade em que o poder do Estado quase se ausentou por completo – demove o ministro de sua tolerância aparentemente infinita com as imperfeições humanas.

Na semana passada, quando Lins e Silva recebeu o Valor em seu escritório na avenida Rio Branco, centro do Rio, o presidente Fernando Henrique Cardoso proferiu um discurso inflamado em Goiás, desafiando o Congresso a aprovar em regime de urgência reformas nas leis penais, para dissipar a “sensação de impunidade”. Evandro recebeu o discurso com o habitual ceticismo.

“A questão não é tornar a legislação mais severa ou menos severa”, pondera. “O que mudaria a situação seria uma razoável distribuição de renda, de maneira que todos tivessem uma remuneração condigna. Esse deveria ser o papel do governante.”

Não que o ministro esteja satisfeito com o atual “Código Penal”. Ele participou, na década passada, do “trabalho imenso” de uma comissão encarregada de propor reformas no texto legal. O resultado do trabalho continua engavetado em alguma repartição federal. A preocupação de Lins e Silva não foi de endurecer punições, mas atualizar as leis de acordo com as mudanças de costumes e as novidades tecnológicas, abordando, por exemplo, delitos relacionados à informática ou à engenharia genética.

A carreira de Lins e Silva como advogado é coerente com suas convicções contrárias à prisão. “Não me arrependo de ter livrado ninguém da cadeia. Só me arrependo de, uma vez ou outra, ter acusado réus e obtido a condenação.” Não foi o caso do ex-presidente Fernando Collor, que Evandro acusou no Senado, durante o processo de impeachment, em 1992. Dessa atuação Evandro não se arrepende: “Eu estava defendendo o país”.

Por ter conseguido convencer júri e juiz a condenar a apenas dois anos de prisão o playboy Doca Street, no célebre julgamento ocorrido em Cabo Frio em 1979, o advogado se viu no centro de uma tormenta. Ele alegou que Street agira em “legítima defesa da honra” quando assassinou a namorada, Ângela Diniz, o que provocou a ira de organizações feministas, desencadeando uma cadeia de contestações à linha da defesa (num segundo julgamento, do qual o advogado não participou, Street seria condenado a 15 anos de cadeia).

Segundo Lins e Silva, Doca era um “rapaz de boa-fé, que se apaixonava facilmente, e largou tudo pela paixão fulminante por Ângela”. O ministro mantém a crença de que o criminoso passional, por cometer o crime tomado por um transtorno emocional momentâneo, não oferece perigo à sociedade. “Não conheço um só caso de reincidência de um passional”, diz.

Se o julgamento fosse hoje, ele não hesitaria em lutar pela menor pena possível, mas talvez não usasse o argumento da legítima defesa da honra, uma maneira que encontrou para humanizar a imagem do criminoso perante o júri conservador de cidade pequena.

Lins e Silva considera o caso, com suas implicações de pressão social sobre um homem ferido no orgulho e perturbado pelo ciúme, um “resíduo” de tempos passados. Ele observa que, nas décadas de 30 e 40, a maioria dos casos que chegavam aos escritórios de advocacia era relativa a crimes de sedução. No mais das vezes, parentes prestavam queixas do defloramento de uma jovem.

“Hoje não deve haver um só caso no país inteiro, embora a sedução ainda conste do ‘Código Penal'”, observa. “Não há mais essa preocupação. Minhas netas e as amigas delas viajam com os namorados e eles dormem no mesmo quarto.” Em contrapartida, os crimes relacionados a drogas, praticamente inexistentes na primeira metade do século XX, hoje são numerosos.

Encontrar o argumento certo em defesa do cliente, como foi o caso no julgamento de Doca Street, é um “artesanato” pelo qual o ministro é um apaixonado. Certa vez ele desmontou a argumentação em torno de um homicídio ao demonstrar factualmente que o tempo de coagulação do sangue inutilizava provas e argumentos da acusação.

Num outro caso famoso, dos anos 40, Lins e Silva aceitou defender um homem acusado de matar um padre, no interior de Minas – coisa que nenhum advogado da região queria fazer, por temer ir contra os brios religiosos da comunidade. O padre havia sido morto dentro da igreja por um homem cuja irmã fora desvirginada pelo religioso.

O advogado, numa intuição semelhante à que teria três décadas depois, em Cabo Frio, supôs que só o sentimento de honra se sobreporia ao sentimento religioso. Provou-o antes mesmo da absolvição em tribunal, quando fez um teste com um médico, figura ilustre da cidade mineira, muito religioso, hesitante em acusar quem quer que fosse. Numa conversa informal num bar, esse cidadão foi instado a responder o que faria se a irmã dele fosse deflorada por um padre. Ele se levantou furioso da mesa e afirmou: “Eu encheria a cara do f.d.p. de bala”.

Não foi apenas no campo do direito criminal que a atuação de Lins e Silva provocou controvérsias. Durante a ditadura getulista (1937-1945), ele defendeu mais de mil perseguidos políticos, entre eles comunistas e integralistas, pessoas que chegaram a pegar em armas contra o regime e outras absolutamente pacíficas. Chegou mesmo a defender, em duas causas extremamente impopulares, uma nazista e um fascista, que haviam trabalhado em rádios na Alemanha e na Itália, lendo textos em português destinados a minar o moral dos expedicionários brasileiros.

“O advogado tem a obrigação de defender, de zelar pelo respeito ao réu, de garantir a ele o tratamento humano e a menor pena, mesmo aos culpados”, diz Lins e Silva. Ele admite que se recuse ou se abandone uma causa, principalmente em caso de o cliente mentir ao próprio defensor, mas em silêncio e sem prejudicar o réu.

A partir dessa experiência no Estado Novo, o advogado construiu uma carreira singular, em que conviveu com as motivações mais íntimas daqueles que, como diz, se sentam à sua mesa de escritório “para contar seu sofrimento”, e também com as grandes questões nacionais.

O convívio com os piores aspectos dos seres humanos não abalou a fé na utopia igualitária. Ainda nos anos 40, foi fundador do Partido Socialista Brasileiro (PSB), no qual milita ainda hoje. No fim do ano passado, a agremiação o indicou para membro do Conselho da República. A indicação foi aceita pela Câmara dos Deputados. “Fiquei honrado, fui procurar na Constituição e descobri que o conselho é muito importante”, ironiza, sempre com suavidade. A lei prevê que o órgão se reúna apenas em casos de crise conjuntural.

Foi justamente uma crise de governo que o levou à vida pública. Em 1961, o vice-presidente João Goulart, com quem havia se avistado casualmente apenas uma vez, o convidou a integrar sua comitiva numa viagem à China. Durante a visita diplomática, o presidente Jânio Quadros renunciou, precipitando o retorno ao Brasil. O novo presidente convidou Lins e Silva para ocupar o cargo de procurador-geral da República, depois para chefe do Gabinete Civil e em seguida para ministro das Relações Exteriores.

Vieram então a experiência no Supremo e a cassação pelo regime militar, junto com Hermes Lima e Vítor Nunes Leal. “Embora nós apenas fizéssemos cumprir a Constituição, nossa atuação contrariava as violências dos que tinham tomado o poder à força”, diz, citando como exemplo a ordem de soltura de Miguel Arraes, que havia permanecido um ano em prisão preventiva.

Ao retomar a tribuna de advogado, o ministro voltou também à oposição política, onde esteve durante a maior parte de sua vida. “Eu sou um democrata muito exigente”, justifica-se. “As injustiças têm de ser corrigidas, porque o primeiro dos direitos humanos é não passar fome.”

Depois de presenciar, quase completo, um século que teve uma “primeira metade marcada pela conflagração e outra metade em que houve um progresso técnico e científico sem paralelo na história da humanidade”, o ministro, sempre otimista, antevê a constituição de um governo mundial encarregado de fiscalizar a distribuição de riqueza. “A idéia de globalização é excelente, mas não é essa que está sendo propagada”, diz.

“Há três idades: juventude, maturidade e ‘nem parece'”, brinca o ministro, que comemorou nove décadas rodeado de 4 filhos, 11 netos e 2 bisnetos. “Eu cheguei à última sem que ninguém tenha me visto na flauta.” De fato, há menos de dois anos Lins e Silva voltou ao tribunal de júri para defender (e absolver) o líder sem-terra José Rainha de uma acusação de homicídio. E todos os dias ele dá consultas em seu escritório. Para o futuro, planeja compartilhar sua experiência de homem público numa escola de governo que quer pôr para funcionar em convênio com a faculdade que leva seu nome, no Rio.

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