Show da mídia

Procurador repele entrevistas sensacionalistas de presos na mídia

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19 de fevereiro de 2002, 16h48

Assiste-se, hoje, a uma profusão de programas televisivos e reportagens jornalísticas voltadas à exposição da violência e da corrupção. Matérias que deveriam ostentar caráter informativo à população, descambam para a exploração sensacionalista.

Freqüentemente, criminosos têm o seu dia de fama nas telas. Pode-se atribuir tais abusos à auto-estima patológica de alguns, à pressão da mídia, e a outros fatores. Vale tudo na luta por maiores índices de audiência, mas ora parece que a tolerância da sociedade e das autoridades está chegando ao limite.

No momento em que se procura restringir essa prática danosa, surgem, porém, questionamentos sobre possível violação da liberdade de expressão do preso. Disporia, efetivamente, a pessoa sob custódia estatal de um direito à exposição pública ou à manifestação do pensamento, através da concessão de entrevistas à mídia?

O atual interesse pelos direitos do preso, durante muito tempo violados pelas autoridades carcerárias, deve-se, como aponta Mirabete, ao movimento em defesa dos Direitos Humanos. Entendem-se, estes, por direitos inalienáveis do Homem, inerentes à esfera da personalidade e da dignidade humanas. É nesse amplo contexto que se assenta o debate do tema, daí a dificuldade em se estabelecer os parâmetros aplicáveis, em face do ordenamento jurídico brasileiro e dos instrumentos internacionais a este incorporados.

Quais são os direitos do preso?

Proclama, assim, a moderna doutrina penitenciária que “o preso, mesmo após a condenação, continua titular de todos os direitos que não lhe foram atingidos pelo internamento prisional decorrente da sentença condenatória em que se impôs uma pena privativa de liberdade” (op. cit., Execução Penal, p. 110).

Esse entendimento, conquanto generoso, nada tem de excepcional, pois coincide com o teor do artigo 3º da Lei de Execução Penal (Lei federal nº 7.210, de 11 de julho de 1984), que assegura ao condenado e ao internado “todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”.

Enumera-os o artigo 41 da LEP, em perfeita adequação com as Regras Mínimas da ONU para Tratamento de Reclusos, de 1995, quais sejam:

I – alimentação suficiente e vestuário;

II – atribuição de trabalho e sua remuneração;

III – previdência social;

IV – constituição de pecúlio;

V – proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação;

Vl – exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena;

Vll – assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa;

Vlll – proteção contra qualquer forma de sensacionalismo;

IX – entrevista pessoal e reservada com o advogado;

X – visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados;

Xl – chamamento nominal;

Xll – igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena;

Xlll – audiência especial com o diretor do estabelecimento;

XIV – representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito;

XV – contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes.

Dispõe o parágrafo único desse artigo que “os direitos previstos nos incisos V, X e XV poderão ser suspensos ou restringidos mediante ato motivado do diretor do estabelecimento”.

Por outro lado, cumpre ao condenado, além das obrigações legais inerentes ao seu estado, submeter-se às normas de execução da pena, conforme determina o art. 38 da LEP, encontrando-se seus deveres arrolados no artigo seguinte. Sujeita-se, ademais, à disciplina carcerária, que consiste na colaboração com a ordem, na obediência às determinações das autoridades e seus agentes e no desempenho do trabalho (art. 44).

A proteção contra o sensacionalismo e o contato com o mundo exterior enquanto direitos do preso

Especial atenção, no âmbito deste estudo, merece o disposto no inciso VIII, qual seja, a proteção do recluso contra qualquer forma de sensacionalismo, assim comentado por Mirabete:

“Prejudicial tanto para o preso como para a sociedade é o sensacionalismo que marca a atividade de certos meios de comunicação de massa (jornais, revistas, rádio, televisão, etc.). Noticiários e entrevistas que visam não a simples informação, mas que têm caráter espetaculoso não só atentam para a condição da dignidade humana do preso como também podem dificultar a sua ressocialização após o cumprimento da pena. Pode ainda o sensacionalismo produzir efeitos nocivos sobre a personalidade do preso.

A divulgação e, principalmente, a exploração, em tom espalhafatoso, de acontecimentos relacionados ao preso, que possam escandalizar ou atrair sobre ele as atenções da comunidade, retirando-o do anonimato, eventualmente o levarão a atitudes anti-sociais, com o fim de manter essa atenção pública em processo de egomania e egocentrismo inteiramente indesejável.

Determina-se, por isso, como direito do preso, a proteção contra qualquer forma de sensacionalismo (art. 41, VIII), sendo defesa ao integrante dos órgãos de execução penal e ao servidor, a divulgação de ocorrência que exponha o preso a inconveniente notoriedade, durante o cumprimento da pena (art. 198). A Resolução nº 7, de 11-7-94, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, reitera o princípio fundamental de que a pessoa presa ou sujeita a medida de segurança não deve “ficar exposta à execração pública” (art. 6º, in fine).”


Verifica-se, assim, sob o prisma legal, a coexistência do direito do preso de não se expor à mídia com o dever do Estado, de resto já regulamentado, de impedir a exposição do condenado à execração pública.

Reforçando a atitude do preso que não deseja posar para as câmeras, mormente para não correr o risco de produzir prova contra si mesmo, a Constituição Federal lhe assegura o direito ao silêncio (art. 5º, inciso LXIII), que pode ser traduzido, em sua extensão, no direito de não ter nada a declarar – não só às autoridades, mas a quem quer que seja, inclusive à imprensa.

Ofender esse direito traz importantes conseqüências no plano do direito material. Conquanto não seja considerado crime pelo vetusto Código Penal, eventual violação da intimidade, da honra, da vida privada e da imagem das pessoas pode acarretar indenização pelo decorrente dano material ou moral (inciso X do art. 5º da Constituição Federal). No âmbito do processo civil, penal ou administrativo, tornaria ilícita a prova obtida mediante infração de normas ou princípios de direito constitucional ou material.

Vale destacar, outrossim, que nos termos do inciso XV do art. 41 da Lei de Execução Penal, é assegurado ao preso o direito à informação, qual seja, “contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes”, pois, como bem observa Mirabete, “sua estadia na prisão não deve significar marginalização da sociedade”.

Não se fixa aqui, todavia, o cerne da questão ora tratada, pois importa perquirir o sentido inverso dessa informação: o preso como transmissor, e não mero receptor dos meios de comunicação individuais ou de massa. Corresponde, enfim, ao direito de expressão voluntária do sentenciado.

A liberdade de expressão no contexto constitucional e internacional dos direitos do preso.

Nesse passo, é possível afirmar, sem esforço, com Yolanda Catão e Elisabeth Sussekind, que “a prisão não constitui território no qual as normas constitucionais não tenham validade”.

Decorrem do texto constitucional outros direitos humanos do preso, tais o direito à vida e à integridade física – ou, de forma mais abrangente, o direito à saúde; o direito de propriedade, com a limitação do exercício de alguns dos direitos do proprietário; a liberdade de manifestação do pensamento, com a vedação do anonimato; a liberdade de consciência e de culto; o direito à instrução e o acesso à cultura, e às atividades relativas ás ciências, às letras, às artes e à tecnologia; o sigilo das comunicações em geral, excetuado pela interceptação telefônica autorizada judicialmente, na forma e nas hipóteses previstas em lei; o direito de representação e de petição, assim como o direito à certidão, o direito à assistência judiciária, e à indenização por erro judiciário ou por prisão além do tempo fixado na sentença.

Em especial, o inciso IX, do artigo 5º, da Constituição, estabelece que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. O artigo 220, que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição.

O parágrafo 1º, que nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social. E o parágrafo 6º, que a publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade. Portanto, a Constituição brasileira é auto-aplicável em relação aos direitos e garantias fundamentais de liberdade de expressão e imprensa.

Dentre os instrumentos internacionais de que o Brasil é signatário, estabelece, por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo XIX em que “Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras”.

Assegura a Declaração Internacional de Chapultepec firmada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1996, em conjunto com vários presidentes latino-americanos, que: “Não há pessoas nem sociedades livres sem liberdade de expressão e de imprensa. O exercício desta não é uma concessão das autoridades; é um direito inalienável do povo. Toda pessoa tem o direito de buscar e receber informação, expressar opiniões e divulgá-las livremente.”

E, ainda, a Declaração Americana Sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República, através do decreto 678/92, de 6-11-92, está publicada no Diário Oficial da União nas páginas 15.562-15.567, de 9-11-92, adquirindo, assim, força de lei ordinária no Brasil. Em seu artigo XIII – Liberdade de pensamento e de expressão -, preconiza que: “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão.

Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões”. (Cf. Lucas Tadeu Ferreira, “Os tratados internacionais, a Constituição e a liberdade de expressão e de imprensa no Brasil” (in “Debate no MEC”)


Não há como negar, assim, à luz do ordenamento jurídico vigente, que a liberdade de expressão soe como um direito que pode vir a transpor as muralhas dos presídios, casando-se, pois, com o já legislado acesso ao mundo exterior previsto no inciso final do artigo 41 da LEP.

O concerto das liberdades e o balanceamento dos valores em jogo

Certo, porém, na unanimidade da moderna doutrina, que as liberdades públicas são direitos e garantias relativas, no contexto dos demais valores constitucionalmente tutelados, como a segurança pública e o direito de punir do Estado.

Numa constante inconstância, contrapõem-se ao longo da História e do espaço geográfico os parâmetros autoridade-liberdade, representando meta dos regimes democráticos promover sua harmonização. Sob pena de o excesso de autoridade recair no arbítrio do totalitarismo, ou de a supervalorização da liberdade expor a população ao caos da impunidade anárquica. O desequilíbrio do binômio compromete, de todo modo, o Estado de Direito.

O instrumento para se promover o balanceamento dos valores fundamentais é denominado princípio da proporcionalidade entre os meios e os fins, de inspiração germânica, trazido para o direito penal, processual e constitucional por influência da doutrina administrativista do poder de polícia do Estado.

Trata-se, segundo Willis Santiago Guerra Filho, do “princípio dos princípios”, que serve, justamente, para preservar os direitos fundamentais. Constitui norma dedutível do sistema constitucional brasileiro, que não o contempla expressamente, com distinção da Constituição portuguesa, de 1974, que em seu artigo 18º, inciso II, fornece o conceito: “A lei só poderá restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitarem-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (“Processo Constitucional e Direitos Fundamentais”, 2ª ed., p.63).

Destarte, o sigilo da correspondência, que é regulado em termos aparentemente absolutos por nossa Lei Maior, pode sofrer restrições em face de outros interesses relevantes. A jurisprudência tem admitido a interceptação de correspondência do recluso, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, sob a fundamentação de que:

“Razões de segurança pública, de disciplina penitenciária ou de preservação da ordem jurídica poderão justificar, sempre excepcionalmente, e desde que respeitada a norma inscrita no art. 41, parágrafo único, da LEP, a interceptação da correspondência remetida pelos sentenciados, eis que cláusula tutelar da inviolabilidade do sigilo epistolar não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas.” (in RT 709/418)

De outra feita, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, anteriormente à edição da Lei federal nº 9296, de 1996, que regulamentou as interceptações telefônicas, que:

“Réu condenado por formação de quadrilha armada, que se acha cumprindo pena em penitenciária, não tem como invocar direitos fundamentais próprios do homem livre para trancar ação penal (corrupção ativa) ou destruir gravação feita pela polícia. O inciso LVI do art. 5º da Constituição, que fala que são inadmissíveis as provas obtidas por meio ilícito, não tem conotação absoluta. Há sempre um substrato ético a orientar o exegeta na busca de valores maiores na construção da sociedade.

A própria Constituição Federal brasileira, que é dirigente e programática, oferece ao juiz, através da “atualização constitucional” (Verfassungsaktualisierung), base para o entendimento de que a cláusula constitucional invocada é relativa. A jurisprudência norte-americana, mencionada em precedente do Supremo Tribunal Federal, não é tranqüila. Sempre é invocável o princípio da “razoabilidade” (Reasonableness). O “princípio da exclusão das provas ilicitamente obtidas” (Exclusionary Rule) também lá pede temperamentos. Ordem denegada.” Rel. Min. Adhemar Maciel. In JSTJ/TRF- Lex 82/317.

Com o reparo da mais bem acolhida doutrina, e da subseqüente jurisprudência da Suprema Corte, a interceptação telefônica, antes de editada a lei regulamentadora, era de se reputar prova ilícita. O que não desmerece a excelência do voto, na percuciente análise relativista dos bens jurídicos postos em confronto.

A relatividade do direito à expressão do preso no contexto carcerário

Diante desse quadro, verifica-se que, não obstante seja dedutível do texto constitucional, o direito de expressão do preso não se constitui em garantia absoluta, limitado que está, segundo o princípio da convivência das liberdades, à observância de outros valores relevantes, quais a segurança pública, a disciplina penitenciária, a preservação da ordem jurídica e da dignidade humana e a livre formação da personalidade, que repele a massificação de mensagens sensacionalistas.

Dessa forma, atendendo-se aos preceitos constitucionais e legais que foram mencionados, pode e deve o direito de expressão do recluso dirigido à concessão de entrevistas ser limitado pela autoridade competente, na justa e necessária medida, mediante ato motivado.

Oxalá a disposição palanquista dos arautos da violência como dos profetas da paz possa reverter em benefícios à sociedade e ao Estado, pela união de forças numa batalha mais sensata, à luz da velha Ética e do bom Direito.

É preciso trabalhar sério nesse tema, pois como advertia Oscar Wilde em “De Profundis”, seu mais contundente escrito sobre o cárcere, o castigo para aqueles que sonham com uma máscara é serem condenados a usá-la.

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