Espaço invadido

Privatização do espaço público ofende direitos coletivos

Autor

  • José Carlos de Freitas

    é promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Habitação e Urbanismo do Ministério Público do Estado de São Paulo

17 de fevereiro de 2002, 9h33

Nestes tempos de desmandos e desgovernos, cresce a privatização do espaço público, não só pelos que invadem áreas públicas para moradia, ou pelos que tomam o passeio para seu comércio, como os camelôs e proprietários de bares, restaurantes e lanchonetes.

Falamos da prática protagonizada pela camada social mais abastada ou politicamente influente, que se apodera de áreas verdes, praças, espaços livres, jardins, áreas de lazer, ruas, praias, além de outros espaços que deveriam estar sendo utilizados para abrigar edificações e usos coletivos como creches, escolas, postos de saúde, bibliotecas, quadras esportivas, dentre outros equipamentos comunitários que desempenham funções sociais na cidade, atendendo às necessidades urbanas afetas à higiene, à circulação, à salubridade, à educação e cultura, à defesa e recuperação do meio ambiente, à recreação e ao lazer (direito social garantido pelo art. 6º da Constituição Federal).

Dentre as modalidades de ocupação de áreas públicas que têm proliferado com o beneplácito das prefeituras, temos os bolsões residenciais, os loteamentos em condomínio e o fechamento de ruas de antigos bairros.

De um lado, estrelando como atores coadjuvantes, temos os bolsões residenciais. Encontrados na Cidade de São Paulo, são verdadeiras ilhas ou quadriláteros urbanos formados por um conjunto de ruas fechadas com muros, floreiras de concreto e outros (irremovíveis) obstáculos ao trânsito de veículos, com apenas uma entrada desobstruída.

É comum serem equipados com cancelas ou controle de acesso por vigilantes particulares, sendo que pelo benefício da segregação não se paga qualquer contrapartida ao Poder Público.

Criados para garantir a circulação restrita de moradores e a formação de “centros de convivência”, deles são exemplos os bolsões dos Bairros de Interlagos, Butantã, Morumbi e Pinheiros.

Para a aprovação desses bolsões e de outros tantos, é suficiente um pedido junto à prefeitura, subscrito pela maioria de moradores, alguns pareceres burocráticos de órgãos municipais, inclusive da autoridade local de trânsito e uma pitada de uma boa influência. Uma receita para o conforto e sossego de poucos, em detrimento do trânsito e da circulação de muitos.

Há outros bolsões criados de maneira mais sutil. Começam pela transformação de vias de mão dupla em mão única, ou pela inversão de direção, de modo que as ruas internas do futuro bolsão fiquem “protegidas” da circulação dos veículos de não-moradores, dificultando sua busca por alternativas para a fuga do trânsito congestionado de avenidas, vias marginais e ruas de intenso tráfego.

Tudo, é claro, proporcionado pelo órgão municipal de trânsito que, ao limitar a circulação de automóveis, gera um cenário de isolamento do bairro (ou parte dele), justificando, assim, o futuro fechamento físico com obstáculos ou com sinalização modificada.

De outro lado, apresentam-se as estrelas principais, as moradias que oferecem comodidade, luxo e segurança, além do “status” de se morar bem, idealizadas por criativos empresários do ramo imobiliário, constituindo os chamados “loteamentos fechados”, também conhecidos por “loteamentos em condomínio” ou “condomínios fechados”.

Tratam-se de grandes áreas loteadas (que contêm, por óbvio, logradouros públicos), cercadas por muros, equipadas em sua entrada principal com pórticos, guaritas e cancelas, vigiados por agentes privados de segurança que, atuando no papel da Polícia Militar, patrulham as vias internas, controlam o acesso dos não-moradores mediante prévia identificação, a quem se indaga o itinerário, permitindo somente o ingresso dos residentes ou das pessoas por estes autorizadas, impedindo, assim, a livre locomoção de “estranhos ao condomínio”, inclusive nas praias do litoral, naqueles loteamentos situados ao longo da orla marítima.

Tudo funciona sob a batuta de uma associação de proprietários que orquestra um verdadeiro constrangimento ilegal, tanto dos “estranhos” que lá não residem, quanto dos moradores – forçadamente “associados” -, dos quais são cobradas taxas de administração e rateio de despesas com a coleta de lixo e com a manutenção, limpeza, sinalização e asfaltamento das vias públicas (serviços primários já custeados com o pagamento de tributos ao município), além dos serviços de vigilância privada.

Quem compra um lote adere “voluntariamente” a uma associação de proprietários, como condição para o negócio ser concretizado. Espécie de venda casada que o código do consumidor costuma rotular de prática abusiva (art. 39, I).

São figuras transgênicas que trazem o mapa genético dos loteamentos e o gene egoístico dos condomínios verticais (prédios de apartamentos), cujos criadores – a pretexto de oferecerem segurança para poucos privilegiados – cerceiam a liberdade de ir e vir da população, transformam loteamentos em condomínios, ruas e praças públicas em domínio privado, divisas em muralhas, transfiguram bairros em feudos, convertem moradores em eternos condôminos devedores, rotulam cidadãos comuns de invasores indesejados.

Parece tudo normal, embora o Supremo Tribunal Federal já tenha reconhecido ser juridicamente impossível estabelecer-se condomínio sobre ruas (R.E. 100.467 – RJ, relator Ministro Francisco Rezek).

Não raro, gente simples como empregados domésticos, pedreiros que edificam as casas, além de outros trabalhadores braçais que laboram nos “condomínios”, são constrangidos em rotina de revista, na saída, pelos “controladores de acesso”, numa operação “pente fino”, para garantir que os residentes não sejam vítimas de furtos.

Uma terceira geração que contracena com os “loteamentos em condomínio” (empreendimentos novos), são os loteamentos antigos que, embora não tenham nascido fechados, ganham esse “status” mediante concessão de uso, pelas prefeituras, das áreas públicas internas.

São bairros já consolidados que se representam também por associações de proprietários, as quais, a pretexto de garantirem a segurança dos moradores com o fechamento, em contrapartida assumem a prestação dos serviços públicos acima apontados, contratando empresas sem licitação e arrecadando fábulas em dinheiro dos associados, cuja adesão, nem sempre voluntária, é mantida com a ameaça de processos judiciais, além do corte de fornecimento de água, de coleta do lixo ou de entrega de correspondências que a empresa de correio deixa na portaria, por determinação da associação.

Ilustrando essa figura no Estado de São Paulo, temos os fechamentos de ruas autorizados pelas prefeituras das Cidades de Mairiporã e Campinas, que, além de não terem tido a adesão da unanimidade dos moradores, geraram intervenções do Ministério Público para garantir a tutela de preceitos constitucionais violados. No caso de Mairiporã, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou inconstitucionais onze leis que autorizavam a privatização de ruas e logradouros, posto que contrastavam com o direito de ir e vir dos demais administrados (ADIn nº 52.027.0/9, j. em 23/08/00, Relator Fonseca Tavares).

Tais “modelos” de moradia se repetem ao longo das praias marítimas do nosso litoral, que são igualmente privatizadas para facultar o lazer exclusivo a poucos, como ocorre na Cidade do Guarujá, em São Paulo.

Essas três figuras têm pontos que convergem. São guetos ou novos feudos, qualificados pelo estigma da segregação social, em que os melhor aquinhoados pela riqueza, quase sempre também influentes ou com livre trânsito nas estruturas de poder, auferem privilégios em prejuízo do resto da população. Travestidos de remédio eficiente para a doença da violência urbana, pervertem a ordem jurídica e conspiram contra princípios constitucionais básicos.

De ordinário, promovem a violação a direitos universais e fundamentais insculpidos na Carta Magna: direito de locomoção (ir, vir, parar, estacionar), direito à intimidade (não há lei que obrigue uma pessoa a se identificar a particulares nem declinar seu itinerário), direito à igualdade (todos são iguais perante a lei), direito social ao lazer (nas áreas públicas como praças, áreas verdes e de recreio), direito de associação (ninguém pode ser compelido a se associar ou manter-se associado).

Nada os justifica, porquanto não está presente o interesse público. Afinal, a quem interessa limitar a circulação e a fruição dos bens de uso comum do povo? A quem aproveita a privatização de espaços públicos, que deveriam servir a todos, indistintamente? Quem se beneficia dessas centralidades, nas quais o Poder Público municipal está ausente (ou conivente)?

Talvez possam nos responder os protagonistas do ascendente mercado de empresas de segurança privada, que monopolizam uma indústria com viaturas, câmeras de vídeo, armas e vigilantes (alguns recrutados das milícias estaduais, nas horas de folga…), bem assim os que contratam com as associações, sem licitação, para os serviços de coleta de lixo, limpeza e conservação das vias públicas, ou mesmo os presidentes, diretores e tesoureiros dessas associações, que se perpetuam nos seus quadros diretivos, movimentando fábulas em dinheiro arrecadado dos moradores.

Haverá, por certo, vozes que defenderão essas (de) formações segregacionistas, inclusive com os argumentos da insegurança e da criminalidade que consomem nossa sociedade em preocupação.

No entanto, uma análise comprometida com o interesse público (e não com o interesse que se publica…), com os princípios da Constituição Federal que prega a erradicação da pobreza e das desigualdades sociais, e que objetiva a construção de uma sociedade justa, livre, solidária, com a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, cor, sexo, idade e qualquer outra forma de discriminação (art. 3º, CF), certamente tenderá a concluir que o isolamento de poucos privilegiados não resolverá o problema difuso da violência nem da insegurança, que atinge todos, indistintamente, ricos e pobres.

Este é o panorama do meio ambiente urbano que, para ser equilibrado, depende em muito da consciência de legisladores e governantes com perfil de estadistas, planejadores com visão de futuro, como também de uma população mais participativa, atuante e cônscia de seus direitos.

Por enquanto, para resgatar a idéia de que a coisa pública é de todos, e não dos particulares que dela ainda não se apropriaram… tem sido firme a atuação do Ministério Público paulista que, com os instrumentos adequados, vem extirpando o mal pela raiz, de modo a impedir a contaminação do tecido social, para a preservação da cidadania e dos direitos fundamentais da população.

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  • é promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Habitação e Urbanismo do Ministério Público do Estado de São Paulo

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