Sanções inúteis

Caso Jader: ex-senador deveria pagar fiança para ser libertado

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17 de fevereiro de 2002, 22h19

“Se milhões de pessoas acreditam em uma bobagem, isso também é uma bobagem” (Princípio Murphológico).

Jader Barbalho e outros acusados ficaram presos cerca de 16 horas. Aliás, não ficaram “presos” porque nem sequer deu tempo para isso. Fizeram na verdade um tour (Belém-Brasília-Palmas), que foi fruto, pelo que disseram os policiais federais, da “Operação Cadeião”. A revogação da prisão temporária foi decidida pelo Magistrado Tourinho Neto, Presidente do Tribunal Regional Federal (1ª Região, Brasília).

 Meu Manual do perfeito “crimidiota” latino-americano (que, dentre muitas outras crenças, supõe que o problema da violência “só” se resolve com mais repressão, mais polícia, mais cadeias, prisão perpétua, pena de morte etc.) acaba de ganhar mais um capítulo, que será intitulado “Operação cadeião”.

 Antes de falar da operação vamos apresentar a família dos “crimidiotas”, que tem origem muito antiga (mas já é da era do homo sapiens) e é bastante numerosa. A ela pertencem, por exemplo, o “burguesidiota”, o “marxidiota”, o “neoliberalidiota”, o “policidiota”, o “evangelidiota”, o “midiota” etc.. Dentro de cada grupo já foram constatadas outras espécies, que são ramificações não tão raras: “legisdiota”, “lombrosidiota” etc.

 Mais concretamente, perfeito “crimidiota” latino-americano, por exemplo, é o professor que ensina para o aluno (sem nenhum senso crítico) que o Direito penal incide contra “todos” “igualmente” (princípio da igualdade), é o policial que imagina que a cadeia foi feita para “todos” os criminosos etc.

 Voltemos à “operação cadeião”. Esse nome revela, desdelogo, uma enorme “crimidiotice”, porque “cadeião” não foi feito para “tubarão”, ressalvado-se Nicolau, evidentemente, que é “bode expiatório” (aliás, é sempre necessário ter “um”, para o “bom” exercício do “poder” e do “saber”).

 Quem surpreso e estarrecido está com a liberdade do ex-presidente do Senado Federal, por isso mesmo, pertence a outra grande família proveniente dos primatas antropóides, chamada no princípio de homo erectus e hoje de “povidiota”, que é justamente quem acredita nas “crimidiotices” difundidas urbi et orbi pelos “crimidiotas” de toda espécie, particularmente em período eleitoral.

 Esse tipo de “povidiota” mudará de grupo rapidamente se ler Foucault, que dizia: “a prisão, ao aparentemente fracassar, não erra seu objetivo; ao contrário, ela o atinge na medida em que suscita no meio das outras uma forma particular de ilegalidade, que ela permite separar, pôr em plena luz e organizar como um meio relativamente fechado mas penetrável” (Michel Foucault, Vigiar e punir, trad. Pondé Vassallo, 2ª ed., Petrópolis: Vozes, 1983, p. 243).

 A divisão muito clara, portanto, é a seguinte: para as ilegalidades dos de baixo, cadeia; para as ilegalidades dos de cima compaixão, fuga para o estrangeiro, prescrição…

 Mas o absurdo mais gritante não está na liberação do ex-parlamentar e atualmente candidato (outra vez) ao Senado (para onde retornará em breve, certamente, porque, como vimos, as grades não foram feitas para os grandes!), senão na proibição jurídica “crimidiota” que não permite o pagamento de fiança nesses casos.

 Em todos os países (com um pouco mais de civilização político-criminal que o nosso, leia-se: um pouco mais “criminteligente”), a primeira coisa que o acusado de corrupção tem que fazer é pagar fiança (e alta, altíssima, às vezes!). Para citar um só exemplo: o banqueiro Mário Conde na Espanha, faz pouco tempo, para sair do cárcere, teve que pagar cerca de cinco milhões de dólares!

 Todas as vezes que uma pessoa é acusada de crime não violento e está presente na comarca (não está ameaçando testemunhas, não está eliminando provas, não está vendendo tudo para fugir etc.), o quê importa mais: deixá-lo no cárcere para satisfazer o inconsciente atávico do “povidiota” (que desde seus ancestrais hominídeos carrega um inigualável sentimento de vingança, preferencialmente sangrenta) ou impor medidas inteligentes e eficazes (“criminteligentes medidas”) que assegurem a recuperação total do dinheiro surrupiado?

 O sistema criminal brasileiro vigente, inclusive e especialmente nesses crimes do colarinho branco, por força de uma “crimidiotice” legislativa tornou-se aberrante porque nele ou é 8 ou é 80. Ou seja: ou vai para a prisão ou é solto sem nenhuma garantia de que no futuro o dinheiro da corrupção será devolvido.

 Trata-se, na nossa visão, de posicionamento jurídico equivocado (“crimidiota”), que necessita de urgente revisão. O legislador brasileiro comete erro crasso (“legisdiotice”) quando proíbe a fiança em muitos casos de crimes não violentos. Esquece (ou ignora completamente, nunca se sabe!) que a fiança tem como destinação final precisamente o ressarcimento dos prejuízos causados à vítima, além de servir para pagar multa e custas.

 Na medida em que o legislador, em razão de uma “crimidiotice” (que se torna mais aguda e muitas vezes até patológica nos períodos eleitorais), proíbe a fiança, o juiz (Min. Marco Aurélio no caso do Banco Nacional e Tourinho Neto no caso Jader), quando verifica que a prisão cautelar (prisão durante o processo) não tem sentido (não tem motivo concreto justificador), com outra alternativa não conta senão a de libertar o acusado sem nenhuma garantia de ressarcimento dos danos ou de devolução do produto do crime.

 Com um sistema jurídico desse tipo (“crimidiota”), o crime acaba compensando. Por isso, em todos os casos de crimes não violentos, qual mensagem é preferível que a Justiça transmita para a população: o réu ficou preso mas rico (é o que ocorreu com PC Farias) ou o réu não ficou preso no curso do processo, pagou uma altíssima fiança e dele foi tomado todo o dinheiro desviado? Qual alternativa é melhor?

 Em minha opinião, honestamente, mais vale recuperar todo patrimônio ganho ilicitamente, impondo ao mesmo tempo várias outras sanções (privativas de liberdade, se o caso, ou penas alternativas), do que mandar o corrupto para a cadeia e deixá-lo depois nababescamente em posse do produto do crime.

 É lógico que haveria também mais uma outra alternativa: prisão imediata mais confisco de tudo. Ocorre que a maior garantia (e a mais fácil de ser executada) do confisco final, embora não seja a única, é a fiança. Se o juiz, no caso Jader, tivesse esse poder e fixasse uma fiança altíssima (sempre proporcional ao delito praticado bem como com suas posses), hoje teríamos a certeza de que pelo menos essa parte seria restituída ao Erário Público ou a quem de direito.

 Mas justamente a fiança é que nossa legislação não permite em muitos crimes, especialmente nos chamados “crimes dos ricos” (desde que punidos com pena mínima superior a dois anos). Se na prática se sabe (foucaultnianamente) que a cadeia não foi concebida para quem se enriqueceu de forma ilícita, nossa legislação, nesse ponto, é “crimidiota” porque tampouco consegue qualquer garantia do ressarcimento do proveito obtido.

 Mas isso, indaga-se, é mesmo “crimidiotice” ou esperteza do legislador? A pergunta tem pertinência, obviamente, porque se sabe que ele pertence ao grupo dos que não vão para a cadeia. Em suma: nem vai para a cadeia nem paga fiança. Nesse sentido, por força das decisões tomadas por um grupo de perfeitos “crimidiotas” latino-americanos, o Brasil é um “paraíso penal”!

 Minha posição: sempre que o acusado não oferece perigo concreto para a sociedade ou para o bom andamento do processo, o melhor caminho não é fazer demagogia (“demagogidiotice”), explorando a crença popular (típica do “povidiota”), com diligências espalhafatosas e puramente simbólicas, senão deixá-lo solto sob pagamento de alta fiança (conforme o crime e suas possibilidades econômicas).

 Além da fiança, quando o caso, várias outras medidas cautelares podem ter incidência (concomitante) como proibição de ausentar-se da residência e/ou do país, comparecimento periódico em juízo, proibição de freqüentar lugares, proibição de exercer cargo público ou profissão, recolhimento domiciliar etc..

 Tudo isso, aliás, é precisamente o que consta do projeto de Reforma do Código de Processo Penal feito por uma Comissão de juristas presidida pela Professora Ada Pellegrini Grinover, e da qual tive a honra de participar, que está nas mãos dos parlamentares. É só aprovarem e o sistema penal brasileiro será, nesse ponto, outro. Aguardemos!

DICAS & REMINDERS:

1) Cf. no nosso site Estudos Criminais outras pérolas do pensamento “crimidiota” latino-americano;

2) Drogas: Lei 6.368/76 e Nova Lei de Tóxicos – Lei 10.409/02: atualize-se com o nosso curso completo e ao vivo, em São Paulo, no dia 02.03.02. Mais informações: www.estudoscriminais.com.br ou pelo telefone (11) 3664.7790.

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    é mestre em direito penal pela Faculdade de Direito da USP, professor doutor em direito penal pela Universidade Complutense de Madri (Espanha) e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG.

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