Violação de direitos

Brasil é processado por violência policial e racismo

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15 de fevereiro de 2002, 14h20

III. Do Mérito

A – Análise dos Recursos Internos

Os peticionários neste caso entendem estar eximidos do requisito de esgotamento dos recursos da jurisdição interna. Isto decorre da análise da apuração dos fatos realizada pelas autoridades, onde existe uma demora de 3 anos e 2 meses além do prazo legal para a conclusão do inquérito (de acordo com a legislação brasileira, o prazo para a conclusão do inquérito policial é de 30 dias), sem que, contudo, esta demora tenha representado algum avanço significativo na investigação. Além da demora temporal, o caso em questão envolve, ainda, uma série de irregularidades na investigação policial que orientam o inquérito no sentido de que este permaneça inconcluso até hoje.

A falta de esforços mínimos por parte das autoridades policiais, somadas às medidas que visavam atrapalhar a investigação, em conjunto com a ineficácia do poder judiciário brasileiro em julgar e punir os responsáveis por violência cometida por policiais militares, em geral, constituem um impedimento no acesso à Justiça, no sentido do artigo 46(2)(b) da Convenção, assim como uma demora injustificada, no sentido do artigo 46(2)(c).

A seguir, uma breve exposição dos pontos, dos quais ao nosso ver constituem uma exceção à regra de esgotamento dos recursos internos.

Segundo a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 46, inciso 2, alíneas b) e c), constitui uma exceção à regra de esgotamento dos recursos internos quando:

b) “não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e

c) “ houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos”.

No Brasil, a iniciativa para a ação penal em crimes contra a vida é de competência exclusiva do Ministério Público. Desta forma não cabe à vítima a iniciativa de propor a ação, devendo esta ser proposta, neste caso, somente quando o representante da promotoria entender que dispõe de elementos suficientes para oferecer a denúncia, concluído ou não o inquérito policial. Nesse sentido, à vítima fica a mercê das autoridades policiais e do Ministério Público. Quando esses não atuam de acordo com a lei, ou por falta de competência, ou por falta de interesse, ou ainda por interesses contrários aos da justiça (como por exemplo o de proteger criminosos fardados), a vítima pode sofrer um impedimento no acesso à Justiça e/ou uma demora injustificada.

Durante o prazo legal para a conclusão do inquérito policial por parte das autoridades competentes (na legislação brasileira estipulado em 30 dias) não foram tomadas as medidas mínimas para a investigação e perícia dos elementos mais importantes para a conclusão do inquérito, embora todos os policiais militares que participaram da ação tenham sido identificados pelos familiares da vítima.

Como detalhamos nos fatos, nenhum depoimento no inquérito policial identifica quais policiais tinham participado dessa suposta troca de tiros com bandidos.

Nenhuma diligência foi feita no sentido de efetuar o exame para verificar se existiam impressões digitais da vítima na arma encontrada ao seu lado. Da mesma forma, a arma não foi periciada para verificação de possível disparo efetuado pela mesma, e se esses disparos poderiam ter sido efetuados por Wallace.

Os fuzis recolhidos pela polícia, utilizados pelos policiais que estavam no local dos fatos, não foram periciados, no sentido de se verificar se de alguma destas armas, saiu a bala que matou o Wallace de Almeida.

Ainda que não existisse uma maneira técnica de identificar os culpados, as testemunhas em seus depoimentos que estão anexados ao inquérito policial, identificaram os policiais que participaram da ação, fornecendo inclusive o nome de muitos deles. Ocorre que, os policiais sistematicamente relatam outra versão para os fatos. Apesar das evidências contrariarem seus depoimentos.

O conjunto de ações e omissões por parte da polícia (a falta de várias provas técnicas, o sumiço de provas potencialmente importantes, a aparente intenção de obstruir o inquérito através de depoimentos vazios e padronizados juntamente com a demora de mais de três anos, sem que as autoridades policiais e do Ministério Público tenham avançado de forma significativa nas investigações) constitui a base de duas das exceções previstas no artigo 46, inciso 2 da Convenção, mas especificamente, as contidas na alíneas “b” (impedimento) e “c” (demora injustificada).

B – Análise das Violações dos Direitos Humanos

1.1 – Direito à vida (artigos 4 e 5 da Convenção)

A responsabilidade que atribuímos ao Estado brasileiro quanto à violência cometida por policiais militares contra cidadãos na cidade do Rio de Janeiro, que resultou no assassinato de Wallace de Almeida, no que concerne à violação ao direito à vida, pode ser identificada em dois momentos.


a) Falta de prevenção

No caso Velásquez Rodríguez, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte) interpretou a obrigação positiva imposta pelo artigo 1.1:

“O Estado está no dever jurídico de prevenir, razoavelmente, as violações dos direitos humanos . . .”

A responsabilidade pela falta de prevenção recai sobre o Estado como resultado de dois fatores, apresentados na seção de fatos e analisados aqui. Primeiro, constata-se que durante o período em questão, vigorava uma situação de impunidade com relação aos crimes de homicídio cometidos por policiais contra civis. Segundo, percebe-se que as políticas de segurança pública durante o governo Marcelo Alencar (com Gen. Nilton Cerqueira e depois Gen. Noaldo Alves como secretários de segurança pública) incentivaram a violência policial, especificamente o homicídio contra civis.

b) Impunidade

Como já citamos, um levantamento do Prof. Ignacio Cano do ISER analisou 1194 casos de confronto armado entre policiais militares e cidadãos entre 1993 à julho de 1996 em que 942 opositores foram mortos pela polícia. Dentre estes casos, foram encontrados 301 Inquéritos Policiais Militares, sendo que 295 destes foram arquivados, ou seja, não foi oferecida a denúncia pelo Ministério Público. Apenas 6 inquéritos tornaram-se processo. Estes processos, posteriormente também foram arquivados, o que resultou na falta de julgamento, e portanto, a impunidade dos policiais envolvidos em todos os 301 casos.

Verifica-se neste contexto, a falta de medidas mínimas necessárias para impedir que policiais truculentos continuassem colocando a vida dos moradores de comunidades carentes do Rio em risco se tratando da impunidade de que gozam policiais, responsáveis por violações contra cidadãos pobres, usualmente marginalizados pelo Poder Judiciário. Trata-se do não cumprimento da obrigação positiva de impedir que ocorram violações de direitos humanos.

– Incentivo aos homicídios

Durante o período em questão, ficou constatado que uma série de políticas públicas na área de segurança, iniciadas em 1995, produziram um aumento radical no índice de homicídios cometidos por policiais contra civis no Rio de Janeiro. Como já detalhamos essas políticas eram: a gratificação e a promoção por bravura;

a licença para o uso de uma segunda arma pelos policiais em serviço;

a averiguação sumária ao invés do inquérito policial para apurar os casos de homicídios envolvendo policiais militares.

Uma das conclusões da pesquisa do Professor Cano é de que “como os policiais possuem agora (1995) um incentivo para apresentar confrontos, dado que isto pode implicar em promoções e premiações econômicas, alguns policiais implicados em mortes estariam registrando estas agora como ‘Autos de Resistência’”. Essa tipificação, utilizada nas ocorrências, praticamente define como legitima defesa a ação do policial, e dava ao mesmo a possibilidade de obter promoções e gratificações por bravura.

Essa pesquisa do Professor Cano demonstra ainda que o número de mortos por mês dobrou na última administração após a implantação destas políticas, sendo que, comparando com os anos anteriores verifica-se, que o número de mortos passou de 16 pessoas/mês, para 32 pessoas/mês.

Assim sendo, é visível que as políticas adotadas pelo Governo produziram mais mortes, e desta forma o Estado pode e deve ser responsabilizado por isso.

– Falta de Investigação

O artigo 1.1 da Convenção estabelece a obrigação fundamental dos Estados Partes de respeitar os direitos e liberdades contidas na Convenção e garantir a todas as pessoas sob suas jurisdições o livre e total exercício daqueles direitos e liberdades. Os Estados têm, portanto, uma dupla responsabilidade: uma negativa, não violar os direitos individuais, e uma positiva, garantir o pleno exercício destes direitos.

No caso Velásquez Rodríguez, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte) interpretou a obrigação positiva imposta pelo artigo 1.1:

“O Estado está no dever jurídico de prevenir, razoavelmente, as violações dos direitos humanos, de investigar seriamente com os meios ao seu alcance as violações que tenham sido cometidas dentro do âmbito de sua jurisdição a fim de identificar os responsáveis, de impor-lhes as sanções pertinentes e de assegurar à vítima uma adequada reparação” .

Para entender o resultado nesse caso—a falta de uma investigação adequada à gravidade do fato—cabe analisar brevemente o contexto em que surge o homicídio e posterior tratamento do mesmo pelas autoridades policiais e judiciais.

– Marginalização da Vítima pela Polícia e a Justiça

Quando crimes são cometidos por policiais contra pessoas da periferia, a impunidade é ainda maior, mesmo porque existe uma prática da polícia , nestes casos, de forjar a existência de um delito por parte da vítima, seja trafico de drogas, ou porte ilegal de armas.


“Do total de 1.194 casos, 523 aconteceram em favelas [ainda que as favelas constituam menos de 20% da população do Rio] segundo a própria descrição da polícia no RO É bem possível que alguns outros casos, nos quais consta apenas o nome da rua sem a área ou bairro de referência, tenham acontecido também em favela.”

A alegação da policia é de sempre agir em legítima defesa. No caso em tela, foi plantada uma pistola junto à vítima, sugerindo que a mesma estivesse em confronto armado com a polícia, o que eximiria os policiais da responsabilidade. Tratando-se de pessoas pobres, essa justificativa, costuma ser aceita pelo Poder Judiciário. Alguns policiais usavam luvas, o que não faz parte do uniforme oficial da polícia local, o que também sugere a tentativa dos policiais de não deixar provas dos delitos cometidos pelos mesmos.

Outro elemento que influência as decisões do Judiciário é o fator cor/raça, pois é de conhecimento geral que, no Brasil, as pessoas negra têm um tratamento usualmente diferenciado e discriminatório no judiciário.

O relatório elaborado pelo Professor Cano avalia dados que incluem todos os incidentes na cidade do Rio de Janeiro, entre janeiro de 1993 e julho de 1996, nos quais civis foram mortos e feridos por armas de fogo nos confrontos com a polícia. Nesse relatório é verificado que pessoas negras estão mais suscetíveis de serem alvos de violência letal por parte dos policiais. Isso ocorre, justamente porque, perante o Poder Judiciário, essas pessoas já são tidas como suspeitos em potencial, e desta forma aumenta a possibilidade dos policiais não serem punidos por seus atos ilícitos contra essas pessoas.

Como já relatamos anteriormente, a investigação foi falha, uma vez que várias diligências, conclusivas para a identificação dos culpados, deixaram de ser produzidas. Nenhum depoimento no inquérito policial identifica quais policiais tinham participado dessa suposta troca de tiros com bandidos.

Nenhuma diligência foi feita no sentido de efetuar o exame para verificar se existia impressões digitais da vítima na arma encontrada ao seu lado. Da mesma forma, a arma não foi periciada para verificação de possível disparo efetuado pela mesma, e se esses disparos poderiam ter sido efetuados por Wallace.

Os fuzis recolhidos pela polícia, utilizados pelos policiais que estavam no local dos fatos, não foram periciados, no sentido de se verificar se de alguma destas armas, saiu a bala que matou o Wallace de Almeida.

Neste caso, o governo brasileiro (mais especificamente, as autoridades do Rio de Janeiro) falhou tanto no que diz respeito à obrigação de prevenir, quanto de investigar o episódio em questão. Essas falhas fazem parte de uma prática de corporativismo da policia em geral. Existe no Brasil uma política interna corporativista de não investigar devidamente estes crimes praticados por colegas policiais. Cabe deixar claro que o governo brasileiro violou o dever de garantir o direito à vida por não evitar que policiais continuem agindo dessa maneira, chegando inclusive, à incentivar a violência policial, e posteriormente, por não haver investigado diligentemente a ação dos policiais que invadiram a favela atirando aleatoriamente, vindo a atingir Wallace de Almeida.

2.1 – Direito às garantias judiciais (artigo 8 e 25 da Convenção)

Os artigos 8 e 25 da Convenção garantem à pessoa o direito de acesso aos recursos judiciais. A jurisprudência da Comissão estabelece que a demora e a falta de empenho nas investigações oficiais por homicídios podem constituir violação das garantias judiciais asseguradas na Convenção. Os critérios estabelecidos pela Comissão para determinar a razoabilidade (ou não) da demora são os seguinte: (1) a complexidade do caso; (2) a conduta da parte lesada em relação a sua elaboração no processo; (3) a forma como tramitou-se a etapa de investigação do processo; (4) a atuação das autoridades judiciais.

O caso em tela demonstra um grau de complexidade limitado, uma vez que se trata do homicídio de uma só vítima e que todos os réus foram identificados através de diversas testemunhas (critério 1). A cooperação por parte dos familiares da vítima Wallace de Almeida, os quais, prestaram depoimento à policia apóia nossa posição de que a demora não foi razoável nem justificada. Podemos salientar ainda, que todos os cartuchos deflagrados que estavam no quintal da casa de Wallace, foram recolhidos por sua mãe Sra. Ivanilde Telácio dos Santos, e entregues a um oficial do quartel, onde a vítima servia ao Exército Brasileiro, o que comprova sua boa-fé, e a cooperação nas investigações (critério 2).

A demora injustificada na apuração do caso da morte de Wallace de Almeida, e acima de tudo, o descaso na condução do inquérito policial, sob alegação de ausência de pessoal para trabalhar no caso, evidencia uma clara violação das garantias judiciais (critérios 3 e 4).

Em suma, os fatos acima relatados da obrigação composta pelo artigo 1.1 (obrigação de respeitar e garantir os direitos estabelecidos na Convenção), junto aos artigos 4 (direito à vida), 5 (direito à integridade pessoal), 8 e 25 (direito ao justo processo legal), da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

IV – Pedido

Pelo acima exposto, verifica-se que o Estado brasileiro, por seus próprios agentes públicos, violou os preceitos contidos nos artigos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, referidos na análise supra.

Em função da gravidade das violações narradas acima, e ante a clara evidência de falta de vontade por parte dos agentes responsáveis para que se cumpra a administração da justiça, os peticionários solicitam:

1 – Que sejam iniciados os trâmites formais para abertura deste caso contra o Estado do Brasil;

2 – Que a República Federativa do Brasil seja condenada pelas violações descritas acima;

3 – Que ordene o governo brasileiro a investigar, julgar e punir criminalmente os responsáveis;

4 – Que ordene ao governo brasileiro pagar indenização às vítimas ou seus familiares;

5 – Que ordene o governo brasileiro a tomar as medidas eficazes para garantir que não mais existam ações policiais violentas, desta natureza, e que adote medidas eficazes para proteger os direitos da população em geral, contra policiais violentos;

6 – Que ordene o governo brasileiro, como medida preventiva, incorporar aos cursos de reciclagens já existentes para policiais, e implementar onde não existam, palestras sobre a questão racial, racismo, pré-conceito e discriminação racial, a ser ministrado pelas ONGs do movimento negro do Brasil.

Atenciosamente

James Louis Cavallaro

Diretor Executivo do Centro de Justiça Global

Andressa Caldas

Coordenadora Jurídica do Centro de Justiça Global

Flavia Helena de Lima

Advogada trainee CJG

Advogada do NEN (Núcleo de Estudos Negros)

Informações de contato do peticionário principal (conforme solicitado no artigo 28, alínea c, do Regulamento da Comissão):

CENTRO DE JUSTIÇA GLOBAL

Dr. James Louis Cavallaro

Dra. Andressa Caldas

Av. N. S. de Copacabana, 540/402

Rio de Janeiro, 22.020-000 – RJ

Tel.: 55-21 – 2547-7391

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