Violação de direitos

Entidade processa o Brasil por violência policial e racismo

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15 de fevereiro de 2002, 14h14

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) vai processar o Brasil pela morte de Wallace Almeida. Ele foi assassinado por policiais militares do Rio de Janeiro.

A denúncia foi feita pelo Centro de Justiça Global, pelo Núcleo de Estudos Negros e familiares da vítima. O país vai responder por discriminação racial e violência de policiais.

Wallace de Almeida, 18 anos e soldado do exército, teria sido assassinado por policiais militares do 19º Batalhão da Polícia Militar, no Morro da Babilônia, no Rio, durante uma blitz, em 1998.

Depois de quase quatro anos da morte do soldado do exército, o inquérito policial ainda não foi concluído. As entidades que fizeram a denúncia apontam uma série de outras irregularidades nas investigações do crime.

De acordo com as entidades, a OEA acatou a denúncia por causa da falta de esforços por parte das autoridades policiais para solucionar o caso.

Segundo estudos do Instituto Superior de Estudos da Religião, o papel da raça no uso da força policial letal, é uma das modalidades mais graves das violações de direitos humanos no Brasil.

Depois de analisar mais de mil homicídios cometidos pela polícia do Rio de Janeiro, o estudo concluiu que a raça constitui um fator que influencia a polícia quando se atira para matar. Os registros apontam que entre os mortos pela polícia, os negros e pardos são 70,2% e os brancos 29,8%.

Veja o ofício que originou o processo contra o Brasil

Ofício nº JG/RJ 231/01

Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 2001

Ao Sr. Embaixador Santiago A. Canton

Secretário Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA

1889 F Street, NW,

Washington DC, EUA

Apresentação

Ivanilde Telácio dos Santos, Rafaela Telácio dos Santos, Rosana Tibuci Jacob, Fagner Gomes dos Santos (procurações. Anexos I), o Núcleo de Estudos Negros (NEN) e o Centro de Justiça Global (CJG) vêm através desta apresentar denúncia contra o Estado brasileiro, conforme o disposto nos artigos 44 e 46, 2 alínea (c) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e 26, 27 e 32 do Regulamento da Comissão.

A presente denúncia refere-se ao assassinato, por policiais militares, de Wallace de Almeida, jovem, negro, soldado do exército, de 18 anos, ocorrido no dia 13 de setembro de 1998, no Morro da Babilônia, favela situada na zona sul da cidade do Rio de Janeiro/RJ.

As provas testemunhais colhidas durante a investigação demonstram que o crime foi cometido por policiais militares do 19o Batalhão da Policia Militar do Rio de Janeiro, durante uma operação policial, no Morro da Babilônia. Essa operação ocorreu de maneira arbitrária, com o uso excessivo de violência por parte dos policiais, contra os moradores do local. O inquérito policial permanece até a presente data sem conclusão, e passados três anos e um mês do fato, ainda não foi oferecida a denúncia pelo Ministério Público. A demora na identificação, julgamento e condenação dos policiais que participaram da ação que deu causa à morte de Wallace de Almeida permanece injustificada.

Os fatos narrados a seguir constituem violações à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Convenção), em particular aos artigos 4 (direito à vida), 8 e 25 (direito às garantias judiciais), combinados com o disposto no artigo 1.1 (obrigação de respeitar e garantir os direitos estabelecidos na convenção).

Diante da gravidade dos fatos e da inoperância da justiça e das autoridades competentes até o momento, para prevenir as violações, investigar os fatos, punir os responsáveis e indenizar as vítimas, os peticionários solicitam, em conformidade com o artigo 48 da Convenção, que a Comissão determine a abertura deste caso contra o Estado brasileiro e dando prosseguimento imediato aos tramites cabíveis. Solicitamos também que a Comissão condene o Estado brasileiro e ordene que este proceda imediatamente à administração da justiça e a condenação dos responsáveis, providenciando o devido arbitramento de indenização para as vítimas.

I – Fatos

A – Antecedentes

a)Violência Policial no Brasil

Segundo consta no relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sobre a situação de direitos humanos no Brasil “as forças de segurança brasileiras foram repetidamente acusadas de violar de maneira sistemática os direitos das pessoas e de que há um sistema que assegura a impunidade dessas violações. A Comissão considera que efetivamente há uma história de práticas violatórias da polícia, como comprovou a justiça brasileira e reconheceu o próprio Governo em seu Plano Nacional de Direitos Humanos, embora não seja conveniente adjudicar em geral responsabilidades violatórias a todas as forças de segurança nacionais ou estaduais”


“A Comissão ainda vem sendo informada por órgãos governamentais, pela imprensa e por organizações não-governamentais da atuação violenta das polícias estaduais, especialmente da militar, acusada de atuar violentamente tanto no exercício de suas funções como fora dele. Um argumento comumente usado pelas polícias “militares” sobre as acusações que lhes são feitas sobre as múltiplas mortes que ocasionam é que estas são ocasionadas em legítima defesa ou no estrito cumprimento do dever. Embora seja certo que em muitos estados há um clima de violência delinqüente, há provas de que a reação da polícia não só excede os limites do legal e regulamentar mas, em muitos casos, os funcionários policiais usam de seu poder, organização e armamento para atividades ilegais.”

Um relatório da Human Rights Watch, sobre brutalidade policial urbana no Brasil, no capítulo especialmente destinado ao contexto da violência policial , destaca a impunidade continuada, como um fator que impulsiona as violações praticadas por policiais. Segundo esse relatório, a impunidade é resultado de fatores que surgem quando “as vítimas são pobres e faveladas com possíveis envolvimentos com crimes, e os suspeitos são policiais”2.

As recomendações da ONU no seu relatório “Princípios básicos…” adotados no Oitavo Congresso sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento de Transgressores, realizado em Havana, Cuba, de 27 de agosto a 7 de setembro de 1990, contêm as seguintes cláusulas:

“os oficiais da lei não usarão armas de fogo contra pessoas, exceto em defesa própria ou de terceiros contra a ameaça iminente de morte ou de injúria grave, para impedir a execução de um crime particularmente grave que envolva ameaça séria de morte, para deter uma pessoa que represente tal perigo e resista à sua autoridade, ou para prevenir sua fuga, e isso tão-somente quando medidas menos extremas forem insuficientes para a consecução desses objetivos. Em todo caso, o uso intencional e letal de armas de fogo só poderá ser feito quando for absolutamente inevitável à proteção de vidas humanas. Nas circunstâncias previstas no Princípio 9, os oficiais da lei deverão identificar-se como tais e anunciar de forma clara a sua intenção de usar armas de fogo com tempo suficiente para que tal advertência seja acatada, a menos que ela possa pôr indevidamente em risco o oficial da lei ou gerar risco de morte ou injúria grave para outras pessoas, ou seja nitidamente imprópria ou vã nas circunstâncias do incidente”.

No entanto, esse princípio não vem sendo cumprido pelo governo brasileiro, conforme vai ser demonstrado.

b) Força Letal da Polícia Fluminense

No fim de 1994, o governo do Estado do Rio de Janeiro, juntamente com o governo federal, fizeram uma parceria, afim de que as Forças Armadas trabalhassem em conjunto com a policia militar, no combate ao tráfico de drogas . Essa parceria que teve o nome de Operação Rio foi marcada por torturas, detenções arbitrárias, buscas sem mandato e uso desnecessário de força letal .

Em maio de 1995, tomou posse um novo Secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, general Nilton Cerqueira, ocasião em que o governador do estado era o Sr. Marcelo Alencar. Logo após a posse do Governador Marcelo Alencar e do Secretário Nilton Cerqueira, foram instituídas três novas políticas no regulamento dos policiais militares: 1) a gratificação e a promoção por bravura; 2) a licença para o uso de uma segunda arma pelos policiais em serviço; 3) a averiguação sumária, ao invés de inquérito policial completo para apurar os casos de homicídios envolvendo policiais militares.

Para analisar os casos de promoções (benefícios funcionais), a polícia militar dispunha de uma comissão composta por três oficiais, que avaliava os requerimentos com base em 11 requisitos. Nos requerimentos que teve acesso a Human Rights Watch/Américas, verifica-se que a grande maioria dos policiais era beneficiada com promoções e gratificações, sem que fossem preenchidos todos os requisitos . Inclusive, a Human Rights Watch comprovou que em 80,4% dos casos, a promoção foi autorizada mesmo sem que houvesse nenhuma testemunha presente, um dos onze requisitos exigidos.

Ainda sob o comando do general Nilton Cerqueira, a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro em nota oficial, autorizou o uso, em serviço, de uma segunda arma, não licenciada pela Polícia Militar, de propriedade dos policiais militares. Essa autorização acarreta um alto potencial de abuso por parte de policiais corruptos e violentos. Foi averiguado num relatório da antiga American Watch e do Núcleo de Estudos da Violência, que no Brasil “a polícia, muitas vezes, corrobora suas alegações apresentando uma arma que é atribuída à vítima; na maior parte dos casos não há testemunhas que possam afirmar se houve um tiroteio ou não. Pessoas bem informadas sobre o sistema da Justiça Militar dizem que é comum para a polícia forjar essas armas, as quais são chamadas de ‘cabritos’”.


Em pesquisa sobre violência policial no Rio de Janeiro, realizada pelo Professor Ignácio Cano, contatou-se o reflexo destas políticas de gratificação e promoção por bravura. Consta no relatório que “o número de casos (de homicídios) aumentou do ano de 93 para o de 94 e deste último para o de 95. A estimativa para todo o ano de 96, superaria os 400 casos, mantendo um nível aproximado ao de 95. Portanto, o número de incidentes subiu claramente nos dois últimos anos em relação aos dois anteriores”. Os números de mortos ou feridos pela polícia, ano a ano são: 1993 – 240 casos; 1994 – 307 casos; 1995 – 408 casos; até julho de 1996 – 239 casos . A média por mês, então, foi de 20% em 1993; 25,58% em 1994; 34% em 1995; 14% em 1996 (até julho).

A título ilustrativo, segue abaixo a descrição da justificativa dada pela comissão da polícia militar para conceder as promoções de cinco policiais que mataram dois homens, segundo os mesmo “suspeitos” que passavam por um local onde os policiais faziam patrulhamento:

“O empenho destes policiais militares serve de exemplo para os demais integrantes da Corporação, pois, não mediram esforços para retirarem de nosso convívio dois perigosos marginais da lei” (grifo nosso).

Uma das conclusões do estudo de Ignácio Cano é que a policia do Rio ocasiona um elevadíssimo número e vítimas. Em um ano, a polícia no município do Rio de Janeiro, com uma população inferior a seis milhões de habitantes, matou quase tantos opositores quanto todas as polícias dos Estados Unidos juntas, um país de mais de 250 milhões de habitantes.

Os dados mais alarmantes da pesquisa, porém, são verificados quando avaliado o período em que se implementaram as premiações por bravura e políticas afins. Esta política de benefícios funcionais, elevou não apenas o número de mortos nas ações policiais, mas também o impacto letal destas intervenções, revelando um claro aumento na intenção de eliminar o opositor e não simplesmente a de imobiliza-lo ou a de se defender do seu ataque. A hipótese mais provável é que a policia tenha passado a matar mais, uma vez que um grande número de promoções e gratificações estavam sendo autoridades para policiais envolvidos em casos com mortes, ao mesmo tempo que outras políticas facilitavam a justificação de tiroteio (autorização para segunda arma) e minavam as investigações de homicídios cometidos por policiais (substituição do inquérito pela averiguação). (…) gráfico da pesquisa de Ignácio Cano, onde podemos verificar o aumento significativo dos índices de letalidade, após maio de 1995: (…)

Em relação ao gráfico (…), concluí a pesquisa que “o número de mortos por mês dobrou na última administração comparada com as anteriores, passando de 16 para 32” .

O Professor Ignácio Cano avaliou em sua pesquisa não só a administração do Secretário de Segurança Nilton Cerqueira, mas também o impacto das premiações por bravura nos confrontos policiais, e o conjunto de políticas implementadas por esta administração.

“Nas administrações anteriores foram mortas 456 pessoas em 656 episódios de intervenção policial, num período de 28 meses. Na administração do atual Secretário de Segurança até julho de 1996 o número de mortos foi de 486 em 536 episódios, ao longo de 15 meses.”

Como podemos verificar nos números acima descritos, estas políticas de promoções e gratificações por bravura, para os policiais militares, contribuiu para o aumento considerável da brutalidade policial.

c) Violência e Raça

Também a questão da raça vem a ser um dos fatores preponderantes quando avaliamos a violência policial no Estado do Rio de Janeiro.

De acordo com o relatório do pesquisador do ISER , Professor Ignácio Cano, o papel da raça no uso da força policial letal, talvez seja a fonte das violações mais severas dos direitos humanos no Brasil. Após avaliar mais de 1000 homicídios cometidos pela polícia do Rio de Janeiro, entre os anos de 1993 e 1996, o relatório conclui que a raça constituiu um fator que influência a polícia – seja conscientemente ou não – quando se atira para matar. Quanto mais escura a pele da pessoa, mais suscetível ela está de ser vítima de uma violência fatal por parte da polícia . Os registros apontam que entre os mortos, pela polícia, os negros e pardos são 70,2%, e os brancos 29,8%.

Comparando a razão entre mortos e feridos em confrontos armados com a polícia, verificou-se na pesquisa de Ignácio Cano, que no período pesquisado (janeiro de 1993 à julho de 1996) o índice era superior a 1,0, chegando a superar 3,5 em algumas épocas.

Verifica-se, ainda, o aumento da letalidade nas ações policiais ocorridas em favelas e periferias. Fazendo o corte racial podemos constatar que a polícia matou, durante o período analisado na pesquisa, 2,7 pessoas brancas, para cada pessoa branca ferida, com relação a população negra o número aumenta em quase cinco vezes mais, chegando a 4,83 pardos ou negros mortos para cada ferido .


Analisando esses dados, podemos dizer que a violência policial é discriminatória, pois atinge em maior número e com maior violência os negros. Outro fator determinante dentro da análise da violência policial no Brasil é a questão econômico-social, pois na grande maioria dos casos, as vítimas são pessoas pobres e/ou moradores de favelas e periferias.

Em abril de 1997, o Instituto Datafolha realizou pesquisa de opinião pública com 1080 habitantes da cidade de São Paulo. Nessa sondagem, das pessoas que relataram que já haviam sido agredidas fisicamente por policiais, 6% eram brancos e 14 % eram negros .

Com relação ao ocorrido com o jovem negro Wallace de Almeida, temos o caso específico de uma execução extrajudicial disfarçada sob o pretexto de uma ação policial, com uso no mínimo inapropriado da força letal, em contraposição a ausência de uso ilegal e letal da força por parte das vitimas.

B – O assassinato

Wallace de Almeida era um jovem de 18 anos, negro, que servia o exército brasileiro como recruta, no quartel do Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro. Como declarou o próprio Comandante do Arsenal de Guerra, general Brochado, Wallace era um rapaz calmo e disciplinado, e durante os quatro meses em que esteve no exército nunca recebeu nenhuma repreensão .

No dia 13 de setembro de 1998, Wallace subia o morro da Babilônia, onde residia, pela Ladeira Ari Barroso, quando encontrou sua prima em um bar. Parou para cumprimentá-la, e neste momento chegou um grupo de policiais seguindo em direção ao topo do morro. Os policiais pararam no bar e ordenaram que todos fossem para a casa, fechando a porta do estabelecimento comercial de maneira truculenta . Wallace e sua prima obedeceram a ordem dos policiais, e subiram em direção às suas casas.

Os policias continuaram subindo o morro, agora atrás de Wallace e sua prima. No meio do caminho a prima de Wallace disse para ele ficar em sua casa, que fica na parte mais baixa do morro, já prevendo que algo de ruim pudesse acontecer. Wallace disse que não podia, pois teria que acordar às 4:30 hs da manhã para estar no quartel bem cedo no outro dia. Wallace disse ainda que não teria problemas, pois estava com seus documentos, e seguiu seu caminho. A prima de Wallace, ainda chegou a ver que os policiais seguiram atrás de Wallace pelo mesmo caminho.

Nota-se que neste momento, não existia nenhum tiroteio no morro, sendo que os policiais subiram pela parte da frente do morro.

A mãe de Wallace, Ivanilde Telácio dos Santos, conseguiu ver seu filho chegando perto de casa, mas nesse momento começaram os disparos de fuzis. Uma das balas quase atingiu Ivanilde que estava na casa de um amigo, que fica na frente de sua residência. Após quase ser baleada, Ivanilde se escondeu do tiroteio no interior da residência do seu vizinho e não mais conseguiu ver seu filho.

Os moradores começaram a ouvir muitos tiros de metralhadoras. Os policiais atiravam para o alto simulando um confronto, o que, segundo os moradores, é prática da policia, na comunidade. Vários desses tiros atingiram árvores e lâmpadas, deixando todo o morro sem iluminação. Enquanto isso os moradores estavam recolhidos em suas casas, assustados com a situação de terror que foi instituída no local pelos policiais.

A família de Wallace (exceto sua mãe) também estava em casa. As crianças foram colocadas embaixo da cama, pois as balas já atingiam paredes e telhados . Segundo os familiares, os tiros começaram a se aproximar e ficarem cada vez mais intenso. Eles tinham a sensação de que a casa estivesse sendo baleada, chegando, a atingir algumas telhas. Os cachorros latiam muito e os tiros eram intensos. Num certo momento, ouviu-se um tiro e um grito, depois disso, os tiros pararam.

Preocupado, pois algumas pessoas da família não estavam em casa, Fagner (primo de Wallace) olhou por um buraco na porta e viu uma pessoa caída no quintal. Resolveu então abrir a porta e neste momento um policial invadiu a casa. O policial tinha uma pistola na mão e perguntava por outros “bandidos” . Nota-se que o armamento oficialmente utilizado pelos policiais eram Fuzis, tipo FAL . Rosalina Telácio dos Santos, avó de Wallace, disse que naquela casa não tinha bandidos, só trabalhadores. Mesmo assim o policial insistia, gritando e ofendendo as pessoas ali presentes, mulheres, crianças e idosos, sem distinção. O policial disse que tinha uma granada, e jogou algo no banheiro. Todos ficaram assustados, mas na verdade tratava-se apenas de uma lata com cal, que fazia parte da tortura psicológica utilizada pela polícia militar .

Enquanto o policial permanecia na casa de Wallace, Fagner podia ver que no quintal encontravam-se vários outros policiais, e entre eles o tenente Busnello. Esse tenente era conhecido pelos moradores da região, na época, por várias vezes, por ter participado de várias ações naquele local, e também por agir de forma truculenta e sem motivação contra os moradores. Foi neste momento que Fagner pôde ver seu primo Wallace caído no chão do quintal, com parte do corpo dentro da casinha do cachorro e tremendo.


Neste momento, Fagner disse para os policiais que eles tinham atirado em um menino do Exército. A partir de então, a postura dos policiais mudou. Todos os policiais que estavam no morro, permaneciam no quintal da casa de Wallace. Rafaela viu e ouviu quando o tenente Busnello reconheceu o erro que cometera, comentando no telefone celular “fiz uma merda” .

Após a comunicação de que Wallace era membro do Exército, iniciou-se então uma discussão entre os policiais . Alguns aparentavam querer socorrer Wallace, mas os que comandavam a operação não permitiam. Os demais policiais demonstravam aguardar ordens do comandante, tenente Busnello. Este, no entanto, permanecia sem saber o que fazer. Segundo as testemunhas, em nenhum momento ouviram os policiais negarem ter atirado em Wallace. Tampouco haviam bandidos no local, uma vez que o tiroteio parou no momento em que os policiais atiraram em Wallace.

Um dos policiais colocou uma luva para pegar em Wallace , depois tirou essa luva e colocou no chão, ao lado da vítima. Essa luva e mais de 20 cápsulas deflagradas de fuzil foram recolhidas pela família e entregues no quartel do Arsenal de Guerra (quartel do Exército onde Wallace era recruta) ao Capitão Carrodia. Esses objetos nunca mais apareceram na investigação e tampouco foram entregues às autoridades competentes.

Enquanto os policiais discutiam sobre o que fazer naquela situação, os familiares tentaram então socorrer Wallace, que parecia estar vivo, mas perdia muito sangue. Contudo os policiais os impediram.

Os policiais não queriam que eles chegassem perto de Wallace . Inconformado com tal situação, um tio de Wallace de nome Paulo Tibuci Jacob, tentou chegar perto da vítima para socorre-la, e neste momento levou um empurrão de um dos policiais, que quase chegou desferir socos contra ele, e só não o fez, porque Paulo não demonstrou resistência .

Essa situação durou mais de 20 minutos, até que os policiais resolveram socorrer Wallace, que neste momento já havia perdido quase todo o sangue do corpo, pois havia sido atingido por um tiro de grosso calibre. Segundo os familiares, todo o quintal ficou banhado de sangue.

Os policiais pegaram Wallace pelos braços e pelas pernas e começaram a carregá-lo. Notando que esta não era a melhor forma de carregar uma pessoa ferida, os familiares se prontificaram a ajudar os policiais, e novamente foram impedidos. No meio do caminho de descida do morro, verificando que os familiares não mais estavam por perto, os policiais começaram a arrastar Wallace pelo chão. Neste momento um amigo da família de nome Tony, pediu para que os policiais carregassem a vítima de forma adequada. Foi então que um policial lhe respondeu “carrega essa merda você então” . Tony, então ajudou os policiais a levarem Wallace até o carro da polícia, que foi jogado na caçamba do camburão, local onde os presos são transportados .

Wallace foi levado para o Hospital Miguel Couto, aonde chegou com vida às 22:16 hs, mas morreu logo após, ás 2:25 hs da madrugada do dia 14 , de hemorragia externa , devido a grande quantidade de sangue que perdeu, provavelmente, por conta da demora no socorro .

C – A investigação no Brasil

Em virtude do episódio, foi aberto um inquérito policial na 12a Delegacia de Policia do Rio de Janeiro, no dia 14 de setembro de 1998 . Os policiais militares Soldado Nogueira, Sargento Aldi, Tenente Buenello, Soldado Athayde, Sargento S.Silva, Cabo Dias, Cabo Edmar, foram chamados para depor. Somente sete policiais foram apresentados como sendo os que participaram da ação no morro.

Os policiais alegaram em seus depoimentos que se dirigiam ao local dos fatos por requisição do Centro de Operações, para apoiarem outros policiais militares que estavam no local trocando tiros com bandidos. Este fato foi desmentido pelas testemunhas, pois não haviam bandidos no local.

Nenhum depoimento no inquérito policial identifica quais policiais tinham participado dessa suposta troca de tiros com bandidos.

Nenhuma diligência foi feita no sentido de efetuar o exame para verificar se existia impressões digitais da vítima na arma encontrada ao seu lado. Da mesma forma, a arma não foi periciada para verificação de possível disparo efetuado pela mesma, e se esses disparos poderiam ter sido efetuados por Wallace.

Os fuzis recolhidos pela polícia, utilizados pelos policiais que estavam no local dos fatos, não foram periciados, no sentido de se verificar se de alguma destas armas saiu a bala que matou o Wallace de Almeida.

Os familiares da vítima foram intimados para prestar depoimento na Delegacia de Policia do Méier, bairro periférico, zona oeste da cidade, numa distância de mais de 15 km do local dos fatos. No dia dos depoimentos, ao invés de facilitar a identificação dos policiais envolvidos no caso, foi apresentado às testemunhas, um livro com fotos de milhares de policiais, fotos estas 3×4 em preto e branco, o que em muito dificulta a identificação, mesmo porque, estas fotos, normalmente são tiradas quando os policiais ingressam na corporação, e não mais são renovadas.


Fagner, primo de Wallace, chegou a questionar a eficácia deste tipo de reconhecimento. Ele perguntou ao escrivão se não existiria a possibilidade de apresentarem os policiais, os quais ele já havia nominado em seu depoimento. O escrivão lhe respondeu que não, que o reconhecimento deveria ser feito mediante aquele livro. Fagner então lhe disse, que impossível seria o reconhecimento de qualquer pessoa, daquela forma, com fotos pequenas e em preto e branco .

O inquérito policial permaneceu na 12ª delegacia de polícia de Copacabana, durante o prazo máximo permitido legalmente, e em 14 de outubro de 1998, foi encaminhado ao Juiz de Direito da Vara Criminal, pedindo novo prazo para concluir as investigações . Deste período em diante as providências tomadas eram os pedidos de cumprimento das diligências, feitos pelo Ministério Público, elencadas pelo Delegado que presidia o Inquérito Policial no momento do pedido de dilatação do prazo para a conclusão das investigações .

Urge esclarecer, que nesta fase de inquérito policial, o Ministério Público não requer diligências. Segundo a prática brasileira, ele só requisita ao delegado competente, que efetue diligências, a fim de que se concluam as investigações, porém cabe ao delegado ordenar quais diligências serão efetuadas, de que maneira, e em que ordem. Desta forma, os despachos do Ministério Público ordenando o retorno do inquérito à Delegacia são apenas burocráticos, e não investigativos.

Desta forma, ao invés de serem produzidas as provas necessárias para a identificação da autoria do crime, perdia-se tempo com averiguações periféricas, como pedidos de antecedentes criminais da vítima .

Não foi feito nenhum exame pericial no local, para a averiguação da bala que matou Wallace de Almeida, que por ter perfurado seu corpo, deveria ser encontrada no local dos fatos. Por outro lado, as cápsulas recolhidas pela mãe da vítima, no quintal de sua casa, foram entregues a um oficial do exército de nome Carrodia, no Batalhão do Arsenal de Guerra do Cafú, sendo que não consta na documentação do caso que este tenha entregue estas provas para a autoridade competente .

Por duas vezes o delegado responsável pelo inquérito policial, informou ao juiz de direito, que impossível era cumprir as diligências para a apuração dos fatos . O inquérito permanece sem conclusão até o presente momento.

Nenhum procedimento administrativo foi aberto, junto à corregedoria da polícia militar, para averiguar a ação dos policiais, segundo a informação obtida do próprio órgão. O Centro de Justiça Global enviou um ofício à Corregedoria, em 13 de setembro de 2001 (Ofício JG-RJ nº 195/01) requisitando informações sobre os procedimentos administrativos tomados contra os policiais militares, envolvidos na operação policial de 13 de setembro de 1998 no Morro da Babilônia. Esse ofício foi respondido em 06 de novembro de 2001 (ver anexo 18).

Ocorre que neste (ofício Nº 82901/2538/2001) da Secretaria de Segurança Pública Polícia Militar do Estado Rio de Janeiro, relata-se a averiguação de um outro caso de homicídio cometido pelo Tenente Busnello, ocorrido em 22 de novembro de 1999, onde depois de perseguir dois suspeitos em uma motocicleta, o mesmo disparou tiros com arma de fogo vindo a atingir com dois tiros um pedestre, de nome Antonio José Coimbra dos Santos, ferido no tornozelo e no tendão da perna direita. Este fato ocorreu um ano depois do fato relatado nesta petição. Ou seja, diante da solicitação formal efetuado por um dos peticionários, a polícia militar apresentou informações referentes a um outro caso que não possui nenhuma ligação com a morte de Wallace, demonstrando com isso a negligência daquele órgão da polícia militar.

II – Admissibilidade do Pedido

A – Competência Ratione Materiae, Personae e temporis e loci

A jurisdição da Comissão em razão da matéria tem como fundamento fatos que constituem violações à Convenção Americana de Direitos Humanos, conforme o disposto no artigo 44 da citada Convenção, aprovada em San José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969 e ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992.

A Comissão tem competência ratione personae para analisar a presente petição, pois as vítimas das violações de direitos humanos (em seu próprio prejuízo, de seus familiares e da sociedade brasileira, como vítimas diretas de tais violações ) eram cidadãos brasileiros, cujos direitos deveriam ter sido garantidos e respeitados pelo Estado brasileiro.

Também está presente a competência ratione materiae, por se tratarem de direitos reconhecidos na Convenção e em outros instrumentos internacionais admitidos pela Comissão: direito à vida e a integridade física (artigos 4 e 5 da Convenção) e direito às garantias judiciais (artigo 8 e 25 da Convenção).

A Comissão também tem competência ratione temporis, pois os fatos apresentados ocorreram a partir de 13 de setembro de 1998, data em que a obrigação de respeitar e garantir os direitos consagrados na Convenção já estava vigente no Brasil, que ratificou o referido instrumento em 25 de setembro de 1992 .

A competência ratione loci está caracterizada, tendo em vista que as violações aos direitos humanos ocorreram no Estado do Rio de Janeiro, ou seja, dentro de território sujeito à jurisdição brasileira.

B – Esgotamento dos Recursos Internos

A presente petição é admissível apesar de não se haver esgotado previamente os recursos jurisdicionais internos, por verificar-se uma demora injustificada na condução do inquérito policial, o que configura a exceção prevista no artigo 31, item 2, letra (c) do Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A análise deste ponto será desenvolvida oportunamente na seção III A.

C – Prazo para interpor a Petição

Esta petição é apresentada dentro do prazo de 3 anos e três meses a partir da data das violações que alegamos, sem que tenham sido esgotados os recursos internos (pelas razões justificadas a seguir) o que faz que não seja necessário esgotar os procedimentos internos. Com efeito, o tempo transcorrido deve ser considerado razoável pela Comissão, como estabelece o artigo 32, item 2 do regulamento. As circunstâncias excepcionais que justificam esta exceção encontram-se detalhadas ao longo deste pedido. Isto posto, solicitamos á Comissão que declare admissível esta petição por ter sido esta apresentada dentro do prazo regulamentar.

Veja continuação do ofício.

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