Ataque e contra-ataque

Mônica Bergamo diz que Kfouri chutou a bola para fora

Autor

26 de agosto de 2002, 11h55

Vez por outra, a aparente cordialidade entre jornalistas dá vez a fricções que vêm a público e servem para os mortais comuns enxergarem as diferenças que, normalmente, só iniciados percebem nas entrelinhas do dia-a-dia.

Na última semana, pelas páginas da revista Carta Capital e, posteriormente, no site Observatório da Imprensa, o cronista esportivo Juca Kfouri acusou a jornalista Mônica Bergamo de reproduzir uma mentira em sua coluna, na Folha de S.Paulo – uma das mais lidas do país.

O pivô da discussão foi um fato ocorrido em 1989: a edição do debate entre Lula e Collor, veiculada pela TV Globo, em horário nobre, na véspera da eleição presidencial. Considerado um dos capítulos mais indecentes da história política recente do país, os trechos pinçados do debate favoreceram decisivamente a vitória de Collor.

Tão flagrante foi a manobra que, em seguida, toda a legislação eleitoral foi refeita para impedir a repetição desse tipo de malversação.

Em sua coluna, Mônica Bergamo, profissional respeitada, com passagens marcantes pelas revistas Playboy, Veja-SP, Veja e pela direção da TV Bandeirantes em Brasília, afirmou que Alberico Souza Cruz, “é considerado competente, mas não consegue se livrar do fantasma de ter sido o responsável direto, em 89, pela famosa edição do debate entre Lula e Collor na TV Globo.”

Em defesa de Alberico, Kfouri escreveu (leia o texto, abaixo) que a edição do debate fora de autoria de um subalterno de Alberico que avocou para si toda a responsabilidade. Segundo essa pessoa, Ronald de Carvalho, nenhum de seus chefes soube o que fora editado antes de o programa ir ao ar, embora se tratasse de uma missão de estado-maior, reservada a comandantes.

Mônica poderia ter respondido que não afirmou ter sido Alberico o autor da lambança, mas que ele é perseguido por essa acusação. No entanto, resolveu ir além do que precisava (leia a resposta de Mônica, após o texto de Kfouri).

Ronald de Carvalho, corajoso e leal, evitou invocar a “lei da obediência devida” para livrar sua reputação. O problema é que poucos, como Kfouri, acreditaram nele. Afinal, o responsável na Globo pelas relações com o mundo da política era Alberico.

Pela “lei da obediência devida”, os militares argentinos que praticaram atrocidades livraram-se de suas culpas imputando-as a seus chefes, os comandantes da ditadura militar no país. Em Nuremberg, essa tentativa não colou. Mas é certo que, em ambos os casos, os subordinados só tentaram empurrar suas culpas para seus chefes porque estes já estavam presos ou mortos.

No caso brasileiro, um dos argumentos para isentar Alberico é o de que ele sequer estava no Rio de Janeiro, quando se editou o debate. Portanto, não poderia ter cuidado do assunto. Algo como dizer que Hitler nada teve a ver com o que aconteceu em Auschwitz porque ele não estava lá.

A idéia de que Ronald Carvalho possa ter feito tudo sozinho remete à recente decisão de um juiz paulista, para quem o juiz aposentado Nicolau dos Santos Neto foi responsável sozinho pelo desvio da dinheirama destinada às obras do fórum trabalhista de São Paulo.

Leia o ataque de Kfouri e o contra-ataque de Mônica

LULA vs. COLLOR

A verdade sobre o debate de 1989

Juca Kfouri (*)

Chato, mas necessário, começar com um chavão, e do nazista Josep Goebbels: “Uma mentira mil vezes repetida acaba por virar verdade”.

Tem sido assim com a famosa, e diabolizada, edição do debate entre Collor e Lula, no Jornal Nacional, invariavelmente atribuída, sem ser verdade, ao jornalista Alberico Souza Cruz – então terceiro homem na hierarquia do jornalismo global, abaixo de Armando Nogueira e Alice Maria.

Outro dia mesmo, a inverdade foi publicada na coluna de Mônica Bergamo, na Folha de S.Paulo [19/7/02, pág E 2].

O que espanta é saber, e não é hoje, que o responsável pela edição, que teria favorecido Collor, o jornalista Ronald Carvalho, assume inteiramente a responsabilidade pelo compacto do debate.

E assume publicamente, sem fazer segredo, até porque não vê motivo algum para se envergonhar do trabalho que fez, como Editor de Política do JN.

O depoimento que segue abaixo é dele, colhido na sexta-feira, 9 de agosto de 2002.

“Por mais que eu assuma, não adianta. O Alberico nem estava no Rio, porque acompanhou o debate em São Paulo. Uma primeira edição do debate foi ao ar no jornal Hoje. Achei que estava desequilibrada, achei que não mostrava a vantagem do Collor.

Disse isso a quem editou, o jornalista Wianey Pinheiro, que me respondeu já ter o OK da Alice.

Só que, depois que foi ao ar, ela me chamou e disse que a edição resultara desequilibrada, e pediu que fosse refeita para o JN.

Eu mesmo tratei de refazer a edição, porque sabia que era uma missão delicada e não quis expor ninguém. Pensei assim: vou editar como se fosse um jogo de futebol. Se foi 5 a 1, e foi 5 a 1 para o Collor, mostrarei os cinco gols dele e o gol do Lula.


Assim fiz e fui mostrar para Alice que nem quis ver: ‘Se você fez, está bem feito’, disse. Procurei o Armando que me disse que se a Alice achava que estava bem, estava bem.

Se alguma incorreção houve, e houve, vou revelá-la agora, pela primeira vez.

Eu tinha sido diretor da Editora Bloch no Recife e conhecia o Collor de longa data, por causa dos relatos do nosso correspondente em Maceió, Divaldo Suruagy. Eu não gostava nada do Collor e votei no Lula. Como, por sorteio, o debate acabava com uma fala do Lula, ou seja, a palavra final da campanha eleitoral era do Lula, eu resolvi também terminar a edição com uma fala dele.

Acontece que a frase final, no debate, era paupérrima. O Lula tinha dito: ‘Vim aqui pronto para debater com um caçador de marajás e acabei debatendo com um caçador de maracujás’.

Achei muito ruim e escolhi uma frase melhor, o que não deveria ter feito.

Minutos antes de o debate ir ao ar, o Alberico chegou de São Paulo e me chamou à sala dele para vermos o JN juntos. Só aí ele viu como o debate tinha sido editado.

Há versões que dão conta de uma explosão de protestos, dentro da Globo, tão logo o debate foi ao ar. Pura imaginação. Não houve explosão na hora nem no dia seguinte nem durante a apuração do resultado da eleição.

Recebi, depois da edição ter ido ao ar, um telefonema do doutor Roberto Marinho, me parabenizando. Antes, é preciso que se diga, nenhum dos Marinho me disse coisa alguma.”

A pergunta é simples: por que alguém assumiria como seu um trabalho que teria sido de outro e que é até hoje tão criticado, para muitos decisivo para o resultado daquela eleição, coisa com a qual, diga-se de passagem, o próprio Lula nem concorda?

Que Alberico tenha inimigos é natural, para quem ocupou cargos de chefia e por tanto tempo. Que haja quem não goste de seu estilo, é também natural. O meu, por exemplo, é diferente do dele. Mas que seja acusado de algo que não fez e não mandou fazer é demais.

Ele estava na ponte-aérea quando o debate foi editado!

Mas entra eleição presidencial, sai eleição presidencial, a história do debate vem à tona e Alberico volta à berlinda. Uma covardia.

Fiz questão deste registro, patrulhas que se danem, não só para restabelecer a verdade (parece que os jornalistas devem se preocupar com essa coisa de falar a verdade), como também porque, estando ele fora do mercado, fica mais difícil a acusação de puxa-saquismo ou coisas do gênero.

Que ao menos, daqui por diante, quando alguém repetir a mentira, saiba que está mentindo, porque a história, sem tirar nem pôr, é essa que está aí – algo que, não tenho a menor dúvida, Mônica Bergamo desconhecia.

(*) Jornalista

Leia as duas notas publicadas na Folha

“DE VOLTA 1

Estão mais do que avançadas as conversas entre a Rede Record e Alberico Souza Cruz para que o jornalista assuma uma superintendência na emissora. Ele ficaria responsável pelo jornalismo. Não apitaria, no entanto, no jornal de Boris Casoy, que por contrato responde diretamente aos acionistas da rede.

DE VOLTA 2

A possível contratação de Alberico dividiu a cúpula da rede. O jornalista é considerado competente, mas não consegue se livrar do fantasma de ter sido o responsável direto, em 89, pela famosa edição do debate entre Lula e Collor na TV Globo.”

Veja a resposta de Mônica

A bola fora de Juca Kfouri

Há várias formas de se fazer mau jornalismo: editar um debate de forma a prejudicar um candidato à Presidência é uma delas.

Colher a versão de uma única pessoa e publicá-la como verdade é outra.

Na edição passada de “Carta Capital”, Juca Kfouri publicou como verdade a versão do jornalista Ronald Carvalho sobre a célebre edição do debate entre Collor e Lula exibida no “Jornal Nacional” no dia 15 de dezembro de 89, na antevéspera do segundo turno da eleição presidencial.

Por essa versão, Ronald é o único responsável pela edição. Alberico Souza Cruz, que era seu chefe na TV Globo, nada tem a ver com o peixe. Segundo Kfouri, ele “estava na ponte aérea quando o debate foi editado!”.

Kfouri conclui que eu publiquei uma “inverdade” na coluna que assino na Folha de S.Paulo ao escrever que Alberico “não consegue se livrar do fantasma de ter sido o responsável direto, em 89, pela famosa edição do debate entre Lula e Collor na TV Globo”.

Há informações, além daquelas que Ronald lhe deu, que, não tenho a menor dúvida, Kfouri desconhece. Vamos a elas:

Ronald já deu o mesmo depoimento para outros jornalistas. Nem todos, como Kfouri, se contentaram apenas com sua versão. Foram apurar os fatos.

2) Uma dessas investigações jornalísticas foi feita por Fernando de Barros e Silva, hoje editor de política da Folha. Ele colheu as versões de 13 pessoas – entre elas, as de Alberico, Ronald e João Roberto Marinho.


Em 11 de dezembro de 99, escreveu Barros e Silva na Folha: “Ronald Carvalho foi um dos responsáveis diretos, mas não o único, nem o principal, por uma das edições mais controvertidas da história do ‘Jornal Nacional’. Alberico Souza Cruz, na época diretor de telejornais da emissora, superior hierárquico de Carvalho, participou diretamente da confecção da reportagem que foi ao ar, fato que nega até hoje”.

3) Participei dessa reportagem. Com Barros e Silva, entrevistei Alberico sobre o episódio.

4) No livro “Notícias do Planalto”, o jornalista Mário Sérgio Conti também relata o que apurou sobre o debate. Conti entrevistou Roberto Marinho, João Roberto Marinho, Roberto Irineu Marinho, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, Armando Nogueira e Francisco Vianey Pinheiro (chefe de jornalismo da Globo em SP). E, também, Alberico.

Diz Conti na pág. 270: “A responsabilidade pela edição foi de Alberico Souza Cruz e Ronald Carvalho (…)”. E, na pág. 328: “Alberico Souza Cruz era o jornalista mais querido do presidente [Collor], que sabia de seu papel na edição do debate com Lula”.

E o que repetiu Ronald a Kfouri? Que a primeira versão do debate foi ao ar na tarde do dia 15, no “Jornal Hoje”, da Globo. Alice Maria, diretora da Central Globo de Jornalismo, chamou Ronald, editor de política, e ordenou que ela fosse refeita para o “JN”.

“Eu mesmo tratei de refazer a edição, porque sabia que era uma missão delicada e não quis expor ninguém”. Nenhum de seus chefes – Armando Nogueira, Alice Maria e Alberico – quis ver a nova versão para o “JN”.

O que conta Barros e Silva? Que Otávio Tostes, que operava as reportagens sobre política nas ilhas de edição da Globo, teria recebido “quatro orientações bem precisas, duas partidas de Ronald e duas de Alberico, todas as quatro para favorecer Collor. Isso tudo, repita-se, na ilha de edição, onde Alberico afirma não ter pisado (…) Alberico foi o último a assistir à edição, 15 minutos antes que a fita fosse ao ar”. Tostes não contestou Barros e Silva.

O que conta Conti em seu livro? Que Roberto Marinho não gostou da versão do debate do “Jornal Hoje” e ordenou a Alberico: “Faça a matéria correta”.

Pouco antes de o “JN” ir ao ar, Vianey Pinheiro flagrou Otávio Tostes finalizando a nova edição.

Ao perguntar a Tostes “o que você está fazendo?”, ele ouviu como resposta: “O Ronald e o Alberico mandaram refazer tudo.”

Marinho nunca contestou o livro de Conti. Nem Tostes. Nem Pinheiro. Só Ronald, que reclamou de não ter sido ouvido. Conti disse que se contentou com entrevistas anteriores de Ronald e que sua versão “não corresponde à verdade”.

Que Alberico tenha amigos é natural, para quem ocupou cargos de chefia e por tanto tempo.

Que haja quem goste de seu estilo, é também natural. Mas que, com base em um único depoimento, seja isentado de toda responsabilidade pela edição do de bate, feita numa redação sob sua chefia, a dois dias da eleição… me parece um pouco demais.”

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!