Passos largos

Viagem ao centro da Internet: entrevista com Ivan Moura Campos

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23 de agosto de 2002, 11h47

Quem está usando seu banco pela Internet, mandando e-mail, teclando num chat ou lendo as últimas notícias pela rede nem vê, tampouco sente ou deveria estar preocupado. Mas, para que estes usos sejam possíveis, um grande número de atores e instituições têm que se articular, por trás do pano, para que o nome do domínio do banco continue sendo dele e funcionando corretamente, que os protocolos que são usados, lá, são entendidos pelo seu browser e outros sites, do lado de cá… No centro de todo o processo está uma corporação privada, sem fins lucrativos, criada com o incentivo do governo dos Estados Unidos, responsável por fazer com que o mundo inteiro, de uma forma ou de outra e, principalmente, da forma mais suave e transparente possível, mantenha a rede funcionando.

A ICANN foi criada para dar seqüência ao trabalho de acadêmicos que mantinham, à base de voluntarismo idealístico, a rede no ar desde que ela era formada por umas poucas dezenas ou centenas de máquinas. Não deveria ser surpresa que tem inimigos, poucos, é verdade, mas capazes de promover um barulho infernal, pela atenção que recebe da mídia americana. Talvez devesse ter mais inimigos do lado de cá do Rio Grande, já que é, sem dúvida americana demais: que outro organismo de âmbito mundial é uma corporação privada de qualquer país?

A ICANN, na verdade, vem cumprindo seu papel paulatinamente, se estabelecendo no cenário à medida em que se desembaraça dos nós e armadilhas impostos pelo seu processo de criação e crescimento e prepara a si própria e a rede para o salto que sem dúvida ocorrerá, na internet, nos próximos anos. O número de dispositivos on-line facilmente ultrapassará a barreira dos bilhões e os usuários humanos do sistema certamente serão sobrepujados por máquinas e dispositivos de todos os tipos, a nosso serviço, interconectados pela infra-estrutura mundial de redes. E a infra-estrutura, serviços e aplicações que ainda vemos de forma tão explícita, hoje, irão migrando para o “background” de forma sutil mas irrefreável, até que a rede, em si, passe a ser parte indistinguível do ambiente em que vivemos. Se der certo, boa parte do crédito terá que ser dado a ICANN.

Entre os diretores da companhia, um brasileiro: Ivan Moura Campos, coordenador do Comitê Gestor da Internet/BR e diretor da Akwan, ex-secretário nacional de Política de Informática e mineiro de Ciência e Tecnologia, um dos membros “at large” (eleito por votação aberta na rede) da diretoria, representa a América Latina e Caribe na gestão da ICANN. Ivan é membro do Comitê de Finanças, o que o torna um dos responsáveis por equacionar as receitas e despesas da organização, algo nada fácil em start-ups, especialmente quando seu espectro de atuação e potenciais áreas de atrito e conflito com forças interessadas em outras visões de articulação e coordenação da internet do que as que a ICANN vem tentando, com razoável sucesso, imprimir.

Ivan Campos está na internet desde quando o número de computadores na rede podia ser contado nos dedos das mãos: no começo dos anos 70, foi para o doutoramento em computação na UCLA, onde os dois primeiros computadores da rede foram ligados (UCLA e SRI, mais ou menos às 10:30 do dia 29 de outubro de 1969). Antes, Ivan custeou sua graduação em engenharia mecânica na UFMG como guarda noturno do Banco do Brasil e mecânico da scuderia de Toninho da Matta, multi-campeão brasileiro (e pai de Cristiano) e ainda fez um mestrado em informática na PUC-Rio.

Nesta entrevista exclusiva concedida ao site Meira.com, Ivan faz uma viagem ao centro da internet e fala da atuação, realizações e dificuldades da ICANN até agora, dos problemas com os Estados Unidos (país e empresas) e os “25 contra” e da importância de brasileiros atuando em instituições como a ICANN, essenciais para formulações de políticas e padrões mundiais que, depois, têm impactos econômicos e sociais gigantescos.

Ivan, como se poderia resumir a atuação da ICANN, em grandes linhas, desde que você entrou para a diretoria até agora?

A Icann ainda é, em muitos sentidos, uma startup, isto é, uma empresa ainda em processo de evolução e maturação. É, em vários sentidos, um experimento ímpar, o de se fazer gestão participativa, internacional, na iniciativa privada, de um bem comum: o sistema de nomes de domínios, os endereços e os protocolos da Internet. A trajetória destes quase dois anos foi também bastante típica de empresa jovem: estamos discutindo os limites de sua missão, estamos reformulando seu estatuto, foram feitos lançamentos de produtos (sete novos TLDs), seu orçamento e suas fontes de receita recorrente ainda não estabilizaram, etc. Apesar de todas as incertezas e dificuldades, uma experiência absolutamente fascinante e enriquecedora.


Desde sua criação em 1998, quais foram as principais realizações da Icann, ou seja, o que funcionou?

A Icann herdou uma situação de total monopólio de registro dos domínios genéricos por parte da (hoje) VeriSign. Desde então, e em grande medida pela introdução de um regime competitivo entre registrars, o preço médio de um nome de domínio para o consumidor final caiu de US$50 para US$10 por ano.

Além disso, e no nível de registries, sete novos domínios genéricos foram selecionados e implementados: .pro, .aero, .museum, .biz, .info, .coop, e .name, criando alternativas para criação de novos nomes de domínios, tirando a concentração quase que absoluta sobre o .com.

Foi também produzida, com ampla participação da comunidade, a chamada UDRP (Uniform Dispute Resolution Procedure), através da qual, com rapidez e baixo custo, resolvem-se extra-judicialmente disputas envolvendo nomes de domínios e marcas. A UDRP diminuiu dramaticamente a prática de registro de nomes para posterior negociação, atividade anteriormente muito presente na Internet.

Além disso, é um feito não desprezível o que já se conseguiu em termos do envolvimento crescente da comunidade internacional, observável não só através da presença de diretores oriundos das diversas regiões do planeta, mas também pelo aumento da participação internacional nos conselhos das organizações de suporte (ASO, PSO, DNSO). A Icann terá um futuro mais promissor quanto maior for o envolvimento e a participação bem-informada de pessoas de diferentes países em sua gestão.

E o que deu errado?

Eu diria que ainda não deu tempo para se declarar que isto ou aquilo ‘deu errado’. Prefiro falar em termos do que ainda não está funcionando bem, uma vez que os desafios presentes são perfeitamente ‘encaráveis’. É preciso lembrar que a Icann foi criada para que se evoluísse de um regime com forte herança acadêmica, não comercial, comandada por um indivíduo apenas (Jon Postel), para um outro, necessariamente mais plural e complexo, em que a Internet não lembra nem de longe a romântica rede não-comercial dos primeiros tempos. Os interesses comerciais e financeiros presentes hoje são consideráveis, ninguém deveria esperar ‘céu de brigadeiro’ nesta fase inicial.

Não obstante, o maior desafio de curto prazo ainda não resolvido é a distorção advinda da dominação quase que absoluta da ‘agenda’ por parte de cidadãos americanos, empresas americanas e o próprio governo dos Estados Unidos.

Como assim?

Para começar, há um pequeno grupo de militantes, em torno de vinte e cinco, a maioria ou é professor universitário, funcionário de ONG de direitos civis ou advogado, todos cidadãos dos Estados Unidos. Dentre eles, vários participaram de um esforço concorrente à Icann, perderam a concorrência para ‘ser’ Icann, até hoje não se conformaram com a derrota. Não há nada que a Icann faça que eles considerem ao menos razoável, tudo é péssimo, e vêem conspiração em tudo. Aparentemente têm muito tempo à disposição, alguns deles têm na Icann o tópico de suas pesquisas, orientam teses de mestrado e doutorado, publicam livros sobre a Icann, etc. e, com isso, são um grupo de militantes articulados que consegue bastante atenção da mídia. Mas é só lá, raramente se vê este tipo de mobilização fora dos Estados Unidos.

E o excesso de ‘presença’ de empresas americanas? Que empresas?

O maior protagonista nesta vertente é a VeriSign. Ela tem o monopólio dos domínios .com, .net e .org (este último ela perderá em poucos meses). A Icann é o único, digamos, obstáculo entre este monopólio e um clima de maior ‘laissez-faire’. Às vésperas de mais uma data de renovação do ‘Memorandum of Understanding’ entre Icann e o Departamento de Comércio dos Estados Unidos, que ocorrerá em setembro, a VeriSign tem um pedido pendente na Icann para modificação de seu contrato, para que ela, VeriSign, possa passar a oferecer um serviço de ‘lista de espera’ por domínios.

Este serviço poderá gerar receita adicional considerável para a empresa proponente, e os opositores da proposta alegam que estariam sendo varridos do mapa na oferta deste serviço (que alguns já oferecem, não necessariamente igual). É necessário analisar com toda a cautela, ouvir as mais diversas opiniões, e assim está fazendo a Icann. Há vários segmentos contra, vários a favor e, como sempre, caberá ao Board tomar a decisão após produzir toda a instrumentalização necessária e analisá-la. Entrementes, a VeriSign está ativamente fazendo lobby no Senado americano, argumentando, dentre outras, que a Icann está ultrapassando o mandato para a qual foi criada, etc. Argumentação nada original ou surpreendente, diga-se de passagem. O problema é o tratamento ‘paroquial’ da questão, no congresso americano, fazendo lobby sobre um assunto que, a rigor, é de escopo e interesse internacional.


E o governo norte-americano?

Felizmente, até agora tem se mostrado suficientemente cauteloso e maduro, principalmente no Executivo, isto é, no Departamento de Comércio. No legislativo, excetuando-se um ou outro pronunciamento deste ou daquele senador, tão necessário para dar uma satisfação a um ‘folks back home’ genérico, não me parece que o governo dos Estados Unidos vá ‘comprar’ o discurso destes militantes domésticos, mesmo porque a batata quente ficaria nas mãos deles, governo americano, para produzir uma alternativa que não desagradasse a comunidade internacional. Mesmo assim, não é confortável ver a Icann tendo que ir testemunhar no congresso americano (e se, hipoteticamente, fossem convocados pelo Bundestag, como reagiria a mídia americana?), principalmente porque a razão principal da convocação é a barulheira produzida pelos tais vinte e cinco militantes mais uma empresa, todos norte-americanos. Em outras palavras, a Icann ainda não atingiu o grau de internacionalização que todos queremos.

O que mais? Há mais algum problema relevante não resolvido?

O outro maior problema ainda não resolvido é o de ‘funding’, isto é, ter um orçamento previsível, adequado em valor, e estável. A Icann nasceu órfã e, ainda no berçário, teve que ‘se virar’ para conseguir viabilizar seu orçamento. Continua assim até hoje, e alguns dos ‘contribuintes’, principalmente ccTLD managers da Europa, têm sido nada cooperativos nesta discussão. Creio que teria sido mais justo, menos ‘morro acima’, se um conjunto inicial de governos, ou o próprio governo americano (que concordou em instituir a Icann como uma ONG na Califórnia) tivesse provido um endowment, isto é, um capital inicial, que teria certamente evitado toda este círculo vicioso causado pelo orçamento insuficiente, que impõe contratar poucos funcionários, o que atrasa a análise de questões relevantes para os registries e registrars, que provoca instatisfações, que provoca resistência a contribuir para o orçamento, e assim vai.

Qual é a relação (há alguma?) entre o que eventualmente deu errado e as críticas que a ICANN recebe, no momento?

Sim, existe relação. Uma das críticas com que concordo é que o processo decisório na Icann é frequentemente moroso. Isto é causado principalmente por se ter menos staff que o necessário, o que é causado por orçamento insuficiente, como já disse. Outra razão é porque é necessário ‘consultar as bases’, lá representadas pelas três organizações de suporte (ASO, PSO, DNSO), dentre outras, e isto toma tempo. Processos de decisão onde a expectativa seja produzir consenso nem sempre convergem, e a Icann aprendeu isto ‘the hard way’.

O atual processo de re-estruturação e reforma foi disparado pela própria Icann exatamente para eliminar estes problemas crônicos de discussões intermináveis, processos não-convergentes e frustração recorrente. Os novos processos em discussão têm, entre outras características, mecanismos de timeout, isto é, as sugestões e os possíveis consensos terão que ser apresentadas ao Board para decisão dentro de um certo tempo, pré-definido.

Dá pra se fazer uma lista de quem são os inimigos da ICANN e por que tal inimizade parece tão séria?

Eu sempre gosto de dizer, em tom mais ou menos jocoso, que são uns vinte e cinco. É por aí. A maioria é ou professor universitário, ou funcionário de ONG de direitos civis ou advogado, como disse. São todos americanos e, de novo, há uma surpreendente presença de advogados. Antes que você me peça, já digo que NÃO vou listar os nomes, por motivos óbvios. É fácil descobrir quem são: toda matéria anti-Icann que sai na imprensa americana tem como fonte um deles. São sempre os mesmos, basta contar.

Quanto à possível seriedade desta oposição, e para ser equânime, alguns destes indivíduos são bem intencionados. O que lhes falta, além de senso de humor, naturalmente, é a mais elementar noção de que o mundo não é os Estados Unidos, que as prioridades deles não são necessariamente as nossas, etc. Esta atitude de ‘olhar para o umbigo’ tem aumentado visivelmente nos últimos tempos, e a atual administração não está fazendo nada para aliviar a impressão de arrogância que geralmente vem geminada com este US-centrism.

Os inimigos da ICANN estariam trabalando para a ITU assumir o lugar da ICANN ou querem, simplesmente, a continuidade de um status quo que interessa apenas a algumas instituições e indivíduos americanos?

Acho que ninguém, inclusive os tais desafetos da Icann, quer a ITU substituindo a Icann. Quando o Stuart Lynn (CEO da Icann) lançou um documento conclamando a comunidade para reformar a Icann, ele opinou que uma das formas de se obter representatividade internacional seria o maior envolvimento de países, que poderiam indicar representantes, etc. Esta idéia hoje já mudou bastante, e o GAC (Governmental Advisory Committee) se propõe a preencher em parte esta missão.

A minha impressão é que, entrementes, a ITU enxergou aí uma possibilidade para exercer um papel de representante de TODOS os países, na qualidade de organização internacional, sede em Genebra, etc., e assumiu uma atitude mais, digamos, pró-ativa. Não sei se a ITU irá eventualmente desempenhar um papel específico na estrutura da Icann. O que posso afirmar que ela não é avaliada por ninguém, pelo menos fora de seus próprios muros, como uma ALTERNATIVA à Icann.

Que progressos, do ponto de vista de reforma na ICANN, houve na reunião de Bucareste? Tal visão foi unânime ou houve dissidentes?

O maior resultado obtido na reunião foi, sem dúvida, a aprovação do ‘Blueprint for Reform’, documento aprovado com o voto unânime dos diretores. Antes que você pergunte, o Karl Auerbach não foi a esta reunião também e, em consequência, foi o único faltante às votações. Este documento estabeleceu as bases de um processo de evolução e reforma que terá seu ápice na reunião de outubro de 2002 em Shanghai.

Um dos pontos mais difíceis desta discussão é o casamento entre missão e representatividade no Board. O mais curioso nisto tudo é que as pessoas que defendem que a Icann deveria ter uma missão exclusivamente técnica, desprovida de policymaking, são as mesmas que querem eleições de caráter mundial, democracia de voto direto, etc.

Em minha opinião, e já externei isto publicamente mais de uma vez (em Bucareste também), se a missão fosse puramente técnica, não haveria necessidade de eleições, seriam até mesmo indesejáveis. A título de exemplo, ninguém gostaria de eleger as pessoas que definem os procedimentos para controle de tráfego aéreo. Todos querem que sejam escolhidos os melhores, com critérios técnicos, e não elegê-los com o voto direto de, por exemplo, todos os passageiros de avião do mundo. Mesmo esquecendo deste ‘detalhe’, o problema mais difícil, até agora sem solução, é como caracterizar a população votante, credenciá-la com ‘título de eleitor’ e ter eleições que não estejam sujeitas a manipulação, fraude ou captura. Este processo de discussão estava consumindo todas as energias da Icann, sem que se avançasse em produzir propostas factíveis.

Imaginando que a ICANN não consiga resolver a contento seus problemas atuais e tenha que ser desmontada, quem poderia assumir seu papel e quais seriam os riscos para a governabilidade da Internet?

A Icann está dando passos largos para resolver estes problemas e, em minha opinião, vai resolvê-los nos próximos meses. A reunião de outubro, em Shanghai, será definidora do cenário futuro. Não vejo outra instituição que possa assumir seu papel e, na improvável eventualidade de o Departamento de Comércio dos Estados Unidos decidir não renovar o Memorando de Entendimentos com a Icann, haveria fortes questionamentos internacionais quanto a US-centrism.

Quão importante está sendo, para Ivan Moura Campos, o Coordenador do Comitê Gestor da Internet Brasil, e para o próprio CG, sua presença na ICANN? O que temos aprendido? O que estamos evitando? O que estamos fomentando?

Pessoalmente, uma experiência muito enriquecedora, aprende-se uma enormidade. Além disso, há o privilégio de conviver, no Board, com pessoas daquele quilate. Mesmo discordando durante os debates, e o fazemos com freqüência, há sempre o prazer do argumento competente, bem articulado. Ninguém ali é trivial.

Institucionalmente, para o Brasil, isto é importante porque não ficamos alijados dos processos definidores de políticas, normas, padrões, e isto tem conseqüências mercadológicas importantes. Não se pode também esquecer a importância, do ponto de vista de imagem de país competitivo, de ter pessoas em cargos de liderança em nível internacional.

Além disso, tenho um prazer adicional de estar registrando a presença latino-americana, e em particular a brasileira, na instituição definidora das regras de funcionamento para a Internet em todo o mundo. O Brasil tem aumentado muito sua presença em organismos internacionais, afastando-se de um relativo absenteísmo de décadas anteriores, e me orgulho de fazer parte deste esforço.

(A entrevista foi publicada em 12/8 no Meira.com). Republicada sob permissão.

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