As dificuldades da Justiça para cumprir eficazmente sua missão não estão restritas aos países em desenvolvimento. As falhas são visíveis também no Primeiro Mundo e, por isso, é necessário repensar o papel do Estado e da Justiça na sociedade. Essa foi a reflexão do presidente do Superior Tribunal de Justiça e do Conselho da Justiça Federal, ministro Nilson Naves, na abertura do XIX Seminário Roma-Brasília, nesta quinta-feira (22/8).
“Os acontecimentos de 11 de setembro, bem como os atos políticos dele decorrentes revelam uma grande verdade, verdade que é premência, premência que se chama vida: urge sejam repensadas as funções estatais, mormente a Justiça, entendida como instituição à qual incumbe garantir o Estado democrático de direito”, acrescentou.
Nilson Naves destacou que, no caso brasileiro, o Judiciário tem vários problemas, mas há grandes avanços que devem ser comemorados. Um deles, é o reconhecimento da opinião pública da credibilidade da Justiça, dados da pesquisa do Instituto Vox Populi, de final de 1998 e do Datafolha, de agosto de 2001.
“Isso é uma decorrência natural da nova Constituição Federal, cuja promulgação fortaleceu o Estado democrático, assegurando o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e na internacional com a solução pacífica das controvérsias”, afirmou Nilson Naves.
O presidente do STJ disse que essa mudança constitucional abriu as portas do Judiciário para milhares de pessoas que antes não se atreviam a buscá-lo. Os dados do STJ provam isso: no primeiro ano de instalação do Tribunal, em 1989, os julgamentos chegaram a 3.711 processos. No ano passado, esse volume superou 198 mil processos. “A verdade é que nosso Judiciário, conquanto tenha muito caminho a percorrer rumo à efetivação do estatuído na Constituição, vem-se aperfeiçoando dia a dia, graças ao trabalho de equipes capazes de seminais pessoas espalhadas pelas três funções do Estado”.
O evento está acontecendo no auditório do STJ e as palestras e debates prosseguem até sábado (24/8). O tema escolhido para a 19ª edição do seminário é “Justiça, cortes internacionais e globalização”. O seminário já consta do calendário acadêmico e jurídico nacional e reunirá conferencistas internacionais, juristas e estudantes de Direito.
Neste ano, foram mais de 1.200 participantes inscritos. A palestra inaugural foi proferida pelo ministro José Moreira Alves, do Supremo Tribunal Federal, com o tema “O acesso à Justiça”. Em seguida tem início os painéis que serão presididos pelos ministros do STJ.
Nos três dias do seminário serão realizados nove painéis. “Justiça não Judiciária”; “Cortes Internacionais e Globalização – A Corte Internacional de Justiça e o Tribunal Penal Internacional”; “Acesso à Justiça e Jurisdições Especiais – A Justiça Eleitoral; Cortes Internacionais e Globalização”; “Cortes Internacionais – As Cortes de Direitos Humanos”; “Acesso à Justiça Jurisdições Especiais”; “Acesso à Justiça e Jurisdições Especiais e Justiça Não-Judiciária”; “Justiça e Dívida Externa” e “Justiça e Crise dos Três Poderes”.
O vice-presidente do STJ, ministro Edson Vidigal, fará o encerramento do evento no sábado. O evento tem a coordenação científica dos ministros do STJ, Milton Luiz Pereira, coordenador-geral da Justiça Federal e diretor do Centro de Estudos Judiciários (CEJ), Sálvio de Figueiredo, Fontes de Alencar, Ruy Rosado de Aguiar, Carlos Alberto Menezes Direito, e do professor Pierangelo Catalano, da Universidade de Roma Pierangelo Catalano e do vice-presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Fernando Mathias de Souza.
Leia o discurso do ministro Nilson Naves:
“Seguindo tradição que se vem fortalecendo no correr dos anos, paramenta-se o Superior Tribunal de Justiça para acolher o Seminário Brasília, já na XIX edição Roma.
Assim o tem feito porque fortes os elos que unem o Brasil à pátria de Cícero e de Virgílio: dos latinos haurimos a cultura, em cujo bojo estavam insculpidos princípios jurídicos dos quais emanaram as fontes do Direito brasileiro; insculpida, também, estava a língua, herança maior, fator permanente dessa irmanação, pois, enquanto não se consumarem os séculos, aqui haverá alguém utilizando-se da “última flor do Lácio, inculta e bela”, com isso evocando imagens das nossas mais remotas raízes.
A tão fortes razões sobrepõe-se a relevância do tema que capitaneará o conclave. Expertos das duas nações estarão esquadrinhando os meandros da justiça à luz da conjuntura dos novos tempos, em que a globalização, marcante no dia-a-dia dos povos, impele os Estados à busca de ordenamentos jurídicos que os façam conviver em harmonia, resguardados os direitos individuais e a soberania nacional.
Não é de hoje, nem remonta a meros séculos a preocupação do homem com a justiça. Prende-se o fato às origens da raça humana, quando, ainda em estado embrionário de civilização, ajuntamentos que só em guerra instituíam e acatavam um chefe procediam, em tempo de paz, a julgamentos e condenações. Era a justiça, pujante, presente, atuante, regulando grupos que, embora desprovidos de um órgão capaz de formular preceitos e gerir negócios públicos, subsistiam mercê das asas protetoras da mesma justiça.
A propósito, emblemático se tornaria, tempo afora, o exemplo de Salomão. Interpelado por seu Deus, roga-lhe tão-só um coração entendido para julgar o povo, para discernir, prudentemente, entre o bem e o mal. Conquanto nomeado rei, sua extrema inquietação residia mais no julgar que no governar.
Não pecaria eu em afirmar, por conseguinte, que a justiça, tema central da filosofia de Platão e virtude cardeal na concepção aristotélica, foi, registrada, no curso da História,das funções estatais, a primeira a surgir como relevante e prestigiosa, quase divina.
O que é, afinal, justiça? Para Kelsen, nenhuma questão “foi tão passionalmente discutida; por nenhuma outra foram derramadas tantas lágrimas amargas, tanto sangue precioso; sobre nenhuma outra, ainda, as mentes mais ilustres – de Platão a Kant – meditaram tão profundamente”. E acrescenta: “O anseio por justiça é o eterno anseio do homem por felicidade”.
Mesmo convictos de que a milenar pergunta continua sendo o maior enigma de todas as épocas, poderíamos, à luz de Kelsen, indagar: Seria a justiça a própria felicidade? Ou o caminho mais propício para alcançá-la? Como exercer a justiça para, então, mitigar a sede que dela tem o homem?
Senhoras e senhores, conseguíssemos nós entender o que é o bem, isto é, a essência da justiça sob a óptica grega, sem dúvida conseguiríamos dar a ela uma definição acabada, realizando façanha não atingida pelos expoentes da sabedoria antiga. Tarefa quiçá impossível, tanto mais no exíguo tempo reservado a este seminário, debrucemo-nos, então, sobre outra questão, de igual modo profunda e complexa: Não obstante seu status de função primaz do Estado, estaria a justiça, mormente nas últimas décadas, cumprindo sua missão a contento?
A conturbada ordem social de todo o mundo, da qual somos não só espectadores, mas quase sempre protagonistas, parece responder-nos negativamente. Exemplos temos a mancheias. Permitam-me buscar um, a princípio, em passado recente: chega até nós, cidadãos do século XXI, o horror das guerras do último século, como se vozes das indefesas vítimas clamassem neste momento por justiça. Bradem os céus de júbilo porquanto, motivada por tamanha ignomínia, proclamou-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos, vislumbre de esperança num mundo em agonia.
Nos dias que correm, ainda a exemplo, atentados terroristas em larga escala, ações perversas do império do narcotráfico e ondas de seqüestro – a que se somam a delinqüência juvenil e o descaso reservado às camadas menos favorecidas das sociedades – são fatos incontestáveis, entre muitos, da convulsão que se alastra qual massa vulcânica incandescente. Ademais, segundo estimativas da ONU, existem cerca de 200 milhões de pessoas em todo o planeta, direta ou indiretamente, vitimadas pela escravidão. Vejam bem: o número é mais ou menos igual à população dos países lusófonos juntos.
A par dessa amostra, os acontecimentos do onze de setembro norte-americano, bem como os atos políticos dele decorrentes, tão conhecidos do seleto auditório, revelam uma grande verdade, verdade que é premência, premência que se chama vida: urge sejam repensadas as funções estatais, mormente a Justiça, entendida como instituição à qual incumbe garantir o Estado democrático de direito.
O que mais nos inquieta nessa conjuntura é a constatação de que a problemática não se restringe aos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento; marca presença também no Primeiro Mundo. Entretanto, para alívio nosso, não podemos, nem devemos, dobrar os sinos a finados pela morte da justiça, como o fez o indignado camponês florentino do fato narrado por Saramago no II Fórum Social, em Porto Alegre. Mil vezes não! A justiça vive! Creiamos tenha sido a imagem do Nobel português apenas retórica – impulso de um movimento por uma ordem mundial mais condizente com os anseios do povo.
Tanto vive a Justiça, embora nem sempre cumprindo eficazmente sua missão, que aí está a bem-sucedida experiência italiana. Quem não se recorda da Operazione Mani Pulite (Operação Mãos Limpas), levada a efeito há uma década? Empreitada hercúlea, se não desarraigou o crime organizado, com certeza o fragilizou em extremo e dignificou a justiça. Lamentável é que tenha custado vidas de homens como os ilustres e destemidos Giovanni Falcone e Paolo Borsellino. Nesse ponto, válido relembrar palavras do juiz Falcone ditas ao desembargador Marcus Faver, hoje presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ora reproduzidas: A magistratura de meu país precisa mostrar ao mundo que a Itália não é a máfia.
Quanto ao Judiciário nacional, repito indagação que fiz ao assumir a direção desta Corte: A quantas anda a nossa Justiça?
É bem provável que, na breve palavra de abertura do Brasília, não me seja adequado discorrer sobre os problemas quemagno Roma afligem nosso Judiciário – da teórica soberania à morosidade, pecha que lhe atiram em rosto sem piedade –, nem lhe fazer apologia em razão do novo relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, no qual o Brasil é posicionado na seção “Pessoas pobres, Justiça pobre”.
Não. Temos muito a comemorar. Em que pese às deficiências, pesquisas do Vox Populi, final de 1998, e do Datafolha, agosto de 2001, apontam o Judiciário, entre os Poderes da República, como o que desfruta de maior credibilidade perante a opinião pública.
Isso é uma decorrência natural da nova Constituição Federal, cuja promulgação fortaleceu o Estado democrático, assegurando “o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e na internacional, com a solução pacífica das controvérsias”.
Aberta, assim, a porta do Estado democrático de direito, alargava-se a porta do Judiciário para milhares de pessoas que antes não se atreviam a buscá-lo. Prova indiscutível são as estatísticas do Superior Tribunal de Justiça, criado pela mesma Carta. Em 1989, ano de sua instalação, julgou 3.711 feitos; em 2001, 198.613. E vejam que são números tão-só do Superior Tribunal. Mais se comprovaria o crescimento da demanda pela Justiça se examinados fossem os dados dos demais órgãos judiciais do País.
A verdade é que nosso Judiciário, conquanto tenha muito caminho a percorrer rumo à efetivação do estatuído na Constituição, vem-se aperfeiçoando dia a dia, graças ao trabalho de equipes capazes de seminais pessoas espalhadas pelas três funções do Estado.
Merece destaque nessa escalada a instituição dos juizados especiais federais, “a ousadia que deu certo”, fruto de lei oriunda das operosas mãos do Superior Tribunal, de mãos e mentes preocupadas com os jurisdicionados, para cuja aprovação concorreu o esforço dos três Poderes. A atuação dos promissores juizados, é inegável, tem levado as camadas humildes a procurar mais e mais a Justiça, tem desafogado os tribunais, com isso atenuando a chaga da morosidade e contribuindo para fortalecer a festejada credibilidade. Estaria tão pobre a Justiça brasileira como noticiou o relatório das Nações Unidas?
Há muito mais: a informatização dos procedimentos judiciais, presente em diversos níveis do Poder, os acordos celebrados, a reforma em andamento no Congresso Nacional e a mudança de mentalidade dos magistrados e das instituições, tudo tornando a Justiça forte e eficaz, atuante e prestante, condição imprescindível à consolidação do Estado democrático de direito e à consecução da cidadania sem exclusão.
Junto a tantos aspectos inerentes à justiça, há um outro que, nos dias atuais, traz preocupação a governantes de todo o mundo – a internacionalização do Direito e da própria justiça. No entender de Bobbio, “os direitos do homem só poderão ser verdadeiramente garantidos quando forem criados instrumentos adequados (…) também contra o Estado ao qual o indivíduo pertence…”.
A resposta a esse posicionamento do grande filósofo, parece-me, deve centrar-se no Tribunal Penal Internacional, fruto do Estatuto de Roma, instituição de caráter permanente destinada a processar e julgar os crimes de genocídio, os contra a humanidade, os de guerra e os de agressão internacional. Para o Itamaraty, isso “representa um marco na evolução do direito internacional contemporâneo, ajudando a ordenar e a normatizar os novos impulsos da sociedade mundial no campo da promoção e proteção dos direitos humanos e da segurança internacional”.
Assaltam-me, porém, preocupações sobre o tema deste encontro que, penso, são também as dos senhores, tais como: Prosperará iniciativa de tão visível acerto, à qual já aderiu o Brasil, se países de expressivo poder econômico não a acatarem? Dar-se-ia o caso de coexistirem harmonicamente os ditames da nova Corte e as constituições dos Estados-partes, preservados a soberania nacional e os direitos individuais?
Em momento propício ao debate sobre a justiça, visto que se vivem dias de globalização, concluo minha breve reflexão com pertinentes palavras do professor Benedito Hespanha: “Um dos aspectos mais relevantes da convivência pacífica entre países parceiros de Constituições diferentes é a tendência comunitarista de aproximação e de articulação do princípio universal de justiça, como prioridade no processo de integração.” Meus cumprimentos a todos e muito obrigado.”