Questão de competência

Justiça Federal deveria julgar crimes contra os direitos humanos

Autor

12 de agosto de 2002, 8h45

Está em pauta, no âmbito da reforma do Poder Judiciário que tramita no Congresso Nacional, a proposta de transferir à Justiça Federal competência para julgar crimes contra os direitos humanos. Tal proposta encontra eco em diversas entidades da sociedade civil que se dedicam à defesa dos direitos humanos. Estas demandas se originam da percepção de que os mecanismos hoje existentes para apuração e punição de violações a direitos humanos no Brasil são ineficientes, e por isso merecem ser aprimorados.

A transferência da competência para processar e julgar atos de violação aos direitos humanos à Justiça Federal é apontada como uma medida que acarretará o melhor funcionamento do sistema judicial, como expuseram os professores Paulo Sérgio Pinheiro e Paulo de Mesquita Neto: “Quando (…) puder ser sancionado o projeto de emenda constitucional proposto pelo governo federal para dar à Justiça Federal competência para julgar crimes contra os direitos humanos, o PNDH terá conseguido assegurar instrumentos jurídicos decisivos para debelar a impunidade.”(3)

Foi nesse mesmo sentido a intervenção de Carlos Guedes do Amaral Júnior, advogado da RENAP/MST, na oficina organizada pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), para discussão do tema, no 2º Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, em fevereiro de 2002.

Deve ser referenciado também artigo de Hélio Bicudo, vice-prefeito de São Paulo e ex-integrante da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (1998-2001), publicado em número especial da Revista Caros Amigos, dedicado ao julgamento relativo ao homicídio de 19 trabalhadores rurais, no conflito com a polícia militar do Estado do Pará, em 17.4.1996 (caso “Eldorado de Carajás”).

Após discorrer sobre o cenário de impunidade, no qual “formam-se quadrilhas de pistoleiros conjugadas com efetivos da Polícia Militar, responsáveis pela eliminação de importantes lideranças de movimentos populares, como, por exemplo, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra”, o autor conclui: “A verdade é que os crimes contra os direitos humanos deveriam ser submetidos, desde sua apuração até o julgamento dos fatos, à Justiça Federal, isenta de injunções político-corporativas, como lamentavelmente ocorre na maioria dos Estados da Federação. (…) Assim se cumpriria o princípio de que os réus devem ser julgados por uma justiça autônoma e imparcial”. (4)

Adotando outra linha de argumentação, estudiosos do fenômeno da internacionalização da proteção aos direitos humanos defendem também a federalização em foco. Apresentam como justificativa teórica a possibilidade de responsabilização do Estado Brasileiro em nível internacional por violação de direitos humanos. De fato, cabe à União arcar com eventual responsabilização perante Cortes Internacionais em decorrência de mau funcionamento dos recursos internos de prevenção e repressão nos casos de agressões aos direitos humanos.

Neste passo, o presente artigo se estrutura em torno da hipótese de que é juridicamente possível e necessária a adoção de proposições tendentes ao alcance, em alguns casos, da federalização da competência para o julgamento de crimes contra os direitos humanos. À luz do debate travado no Congresso Nacional a partir de 1996, o conteúdo de tais proposições será analisado e serão apresentados os posicionamentos dos autores.

A PROPOSTA DE FEDERALIZAÇÃO E O PRINCÍPIO FEDERATIVO

Para uma adequada compreensão desta dimensão do tema, é fundamental superar uma visão mitificada acerca do federalismo, concernente a uma suposta autonomia absoluta dos entes subnacionais. Esta visão distorcida está na base de muitos discursos contra a preconizada federalização(5), daí o relevo desta abordagem.

Mesmo que nos marcos do chamado federalismo dual fosse praticada tal autonomia rígida – o que não é verdadeiro -, o fato é que aquele foi progressivamente substituído por um outro paradigma, o federalismo cooperativo, consoante a trajetória exposta doravante.

Entre 1776 e 1787, os Estados americanos, recém-independentes da Inglaterra, agruparam-se em uma Confederação, de modo que conservaram suas soberanias. Por conseguinte, produziam leis livremente, tinham moeda e Forças Armadas próprias e – frequentemente – protagonizavam conflitos recíprocos em torno, por exemplo, de questões fiscais. Como órgão de exercício de poder central havia somente o Congresso Continental, destituído de força para impor suas deliberações sem que houvesse a aquiescência de nove dos treze Estados, ou até mesmo de todos – no caso de mudanças constitucionais.

Desta maneira, é evidente que os núcleos de poder estavam nos Estados. Tal cenário justificava-se pelo predomínio da visão de ser necessário reduzir ao máximo a esfera de atuação do Governo, a fim de manter a liberdade dos cidadãos. Dever-se-ia, assim, rejeitar uma instância central de Governo – vista como dificilmente controlável pelo povo -, mantendo o poder circunscrito a espaços territoriais de reduzida dimensão (os Estados). Nestas unidades, o povo poderia acompanhar direta e cotidianamente as atividades das autoridades, minimizando a possibilidade de abusos de poder contra os direitos individuais.

Ocorre, contudo, que – em decorrência da forte concentração de poder nos Legislativos estaduais – estes passaram a adotar medidas que punham em risco um dos principais direitos naturais e inalienáveis dos indivíduos, segundo a ótica liberal, qual seja, o direito de propriedade. Com efeito, posteriormente a 1776 foram aprovadas leis estaduais confiscando propriedades, cancelando dívidas ou impedindo suas cobranças por intermédio dos Tribunais. Gerou-se, então, uma situação em que a ausência de uma instância de controle sobre os Estados implicava a negação de idéias primordiais preconizadas pelo liberalismo.

Um sistema estatal com tais falhas não estava cumprindo a sua missão, daí ter se consolidado a tese de criação e fortalecimento de órgãos centrais de poder, capazes de funcionar como contraste aos poderes estaduais e garante dos direitos individuais dos governados. Esses podem ser apontados como os principais fatores que conduziram à Convenção da Filadélfia – resultando na nova Constituição americana – como fica evidenciado em várias passagens de “Os Artigos Federalistas”.

Completou-se, desta forma, o desenho do modelo de Estado Federal hoje conhecido como federalismo dual, baseado “en la concepción de dos áreas de poder mutuamente excluyentes, que se limitan recíprocamente y cuyos titulares (cada uno dentro de su ámbito de competencia rígidamente definido) se encuentran en pie de igualdad“.(6)

Já o federalismo cooperativo origina-se da crise do Estado Liberal clássico, nas primeiras décadas do século XX, sobretudo em face da pujança de duas grandes demandas a ele destinadas, que evidentemente são interrelacionadas:

a) a imperatividade de uma maior intervenção estatal na arena econômica, regulando e dirigindo o mercado;

b) a fixação da igualdade social como uma das metas a serem perseguidas pelas políticas de Governo.

O atendimento dessas demandas exigia um aparato burocrático-administrativo maior, mais complexo e mais centralizado. No entanto, não mais se cuidava de fortalecer o poder central precipuamente para conter os abusos dos Governos Estaduais. Esta dilatação dos poderes federais derivava da assunção pelo aparelho estatal de funções prestacionais e de fomento, que deviam desenrolar-se de modo a realizar ao máximo o ideal de igualdade que distinguia o “Welfare State” – entronizado em lugar do Estado Liberal como paradigma no mundo ocidental.

Políticas de âmbito puramente local não dariam conta destes objetivos, inclusive porque não enfrentariam as desigualdades regionais, também repudiadas pela teoria do Estado do Bem-Estar, como ensina Enoch Alberti Rovira: “…la doctrina alemana pone de relieve cómo el ciudadano medio no está dispuesto ya a recibir, por razón de su domicilio, un trato distinto en materia de previsión social, fiscalidad, posibilidades de educación, promoción económica y profesional, u otros aspectos de incidencia directa en su vida. El principio social confiere, pues, al derecho a la igualdad una dimensión nueva: la interdicción de la discriminación territorial, como uno de sus contenidos específicamente nuevos”.(7)

Neste momento do federalismo, a União assumiu crescentemente mais competências, algumas absolutamente novas – decorrentes do agigantamento das funções estatais -, outras deslocadas do âmbito antes conferido às entidades subnacionais. Assentou-se, simultaneamente, a idéia de cooperação entre as diversas esferas federativas, que passaram a atuar de modo consorciado, visando a melhor consecução dos objetivos comuns. Não havia mais lugar para uma definição rígida de competências, característica maior do federalismo dual.

Neste sentido, Enoch Alberti Rovira, dissertando sobre o conceito de federalismo cooperativo, assinala que: “…la interdependencia de todos los sectores y materias objeto de la acción estatal y el sobredimensionamiento de los problemas impiden una división nítida de funciones, competencias y responsabilidades, una clara y tajante separación entre dos esferas de gobierno, recíprocamente independientes“.(8)

Como se constata, não há somente um modelo de federalismo, nem uma só maneira de implementá-lo.

Neste contexto, fica evidente que a proposta de excepcionalmente ocorrer a federalização da competência para julgamento de crimes contra os direitos humanos objetiva a aplicação, neste campo, de um sistema de exercício cooperativo de competências jurisdicionais, o qual aliás não constitui novidade(9). No caso, esta cooperação seria desencadeada quando, em determinadas conjunturas históricas, as instâncias de poder dos entes subnacionais se revelassem insuficientes para cumprir os objetivos inscritos na Constituição, convocando-se então órgãos federais para atuar – conforme regras que proporemos mais adiante.

Outrossim, frise-se que no âmbito de nossa Federação o chamamento da União para viabilizar a tutela aos direitos humanos, quando os Estados não agem adequadamente, já está previsto na vigente ordem constitucional positiva, de acordo com o art. 34, inciso VII, alínea b, da Constituição Federal. Tal dispositivo prevê a possibilidade de intervenção federal nos Estados para assegurar os “direitos da pessoa humana“, de modo que a proposta ora abordada pode ser vista como uma derivação desta sistemática.

Em reforço a tais argumentos, reveladores da compatibilidade entre a pretendida federalização e o sistema federativo, importante invocar o que disse o ministro Francisco Resek sobre este aspecto da discussão: “Em geral, nas federações os crimes dessa natureza, os crimes previstos por qualquer motivo em textos internacionais, são crimes federais e da competência do sistema federal de Justiça. Isso tem várias vantagens, como uma jurisprudência uniforme, uma jurisprudência unida, a não tomada de caminhos diversos segundo a unidade da federação em que se processe o crime. É vantajoso e é praticado em outras federações“.(10)

A RESPONSABILIZAÇÃO INTERNACIONAL POR VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

Após a 2ª Guerra Mundial, a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10.12.1948, foi um marco no processo de reconstrução do movimento de proteção de direitos humanos, introduzindo a preocupação de conferir a eles proteção internacional.

Começou a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, integrado por diversos sistemas normativos que coexistem. Assim, temos um sistema normativo global (no âmbito das Nações Unidas), sistemas regionais (como exemplo, o sistema americano) e sistemas nacionais de proteção.

Examinemos, exemplificativamente, como funciona o Sistema Interamericano de proteção aos Direitos Humanos.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi criada em 1959, com a atribuição de promover os direitos proclamados na Declaração de 1948. Com a aprovação do Pacto de San José da Costa Rica, em 1969, a Comissão foi alçada à condição de órgão investigador de violações aos direitos humanos. A Convenção instituiu ainda a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com atribuição de interpretar e aplicar seus preceitos e de “julgar casos de supostas violações de direitos humanos consagrados na Convenção.”

O Sistema Interamericano adota o seguinte procedimento:

1) A Comissão é provocada por petição escrita da vítima ou de terceiros, inclusive de Organizações Não Governamentais.

2) A petição é submetida a exame de admissibilidade.

3) Admitida a petição, há uma fase conciliatória.

4) A Comissão elabora um primeiro relatório concluindo se houve ou não a alegada violação. Se o relatório for favorável ao Estado, encerra-se o procedimento, não cabendo recurso desta decisão para a Corte.

5) Se o relatório constatar a violação, fará recomendações ao Estado violador, que devem ser cumpridas em prazo fixado pela Comissão.

6) Não acatado o relatório, se o Estado violador não reconhecer a jurisdição da Corte, é elaborado um segundo relatório. Não cumpridas as recomendações, a Comissão encaminha o caso para apreciação da Assembléia Geral da OEA, pois a Comissão não tem o poder de aplicar sanções aos Estados violadores de direitos humanos.

7) Se o Estado reconhece a competência da Corte, não cumpridas as recomendações constantes do primeiro relatório da Comissão, esta aciona a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

8) Ao final, a sentença da Corte pode assegurar à vítima o gozo do direito violado e fixar uma indenização pelos danos sofridos.

O art. 63 da Convenção explicita que o Estado tem o dever de cumprir integralmente a sentença da Corte, não podendo optar por indenizar a vítima em substituição à obrigação de fazer ou não fazer fixada para sanar a violação do direito.

Quanto às eventuais obrigações de indenizar, a sentença será objeto de execução forçada “de acordo com os procedimentos internos de execução de sentenças contra o Estado” (art. 68.2). Ou seja, no caso do Brasil, tal sentença ensejaria ação de execução contra a União, perante a Justiça Federal. Mas e quanto às obrigações de fazer, quais as medidas coercitivas passíveis de serem adotadas em caso de inadimplemento pelo Estado violador da obrigação fixada na sentença?

André de Carvalho Ramos(11) registra que há previsão no art. 65 da Convenção de que a Corte inclua os casos nos quais os Estados não acatam suas sentenças no Relatório dirigido à Assembléia Geral da OEA. Entretanto, observa o autor que tal mecanismo político de coerção dos Estados tem se mostrado insuficiente, porque a OEA não adota medidas específicas para sancionar os Estados faltosos.

Então, uma das sugestões por ele apresentadas, para tornar efetivas as decisões da Corte, é possibilitar que a sentença seja executada em sua integralidade perante os Tribunais internos, ampliando-se a permissão observada no art. 68, 2, da Convenção Americana(12). No caso brasileiro, como a União seria a parte executada isso só poderia ser feito por intermédio da Justiça Federal, fortalecendo ainda mais o seu papel neste campo.

Finalmente, ainda observando a seara internacional, é importante anotar que já há um debate a propósito especificamente da proposta de federalização, no Brasil, da competência para julgamento de crimes que agridam direitos humanos tutelados internacionalmente. Como informa o embaixador Gilberto Sabóia, ao apreciar o relatório brasileiro acerca do Pacto sobre Direitos Civis e Políticos(13), o Comitê de Direitos Humanos “reconheceu o engajamento do governo federal para adotar medidas que assegurem o respeito aos direitos protegidos e acolheu favoravelmente as medidas legislativas adotadas recentemente (…) e as medidas tendentes a permitir que o Ministério Público Federal avoque à Justiça Federal casos de violações de direitos humanos.” Em seguida, o embaixador Sabóia, ainda tratando de tal relatório, acentua: “um dos aspectos mais significativos foi a relação entre o sistema federativo da Constituição brasileira e o cumprimento das normas do Pacto.

A autonomia dos Estados no que diz respeito à organização da polícia e ao sistema judicial é um fator importante, segundo os membros do Comitê, pelas deficiências e pela falta de uniformidade de aplicação dos dispositivos do Pacto no Brasil. Apesar dos esforços, o Governo Federal, responsável perante o direito internacional pelo cumprimento das obrigações adquiridas como parte do pacto, não tem ainda podido, segundo aquele órgão, vencer esses obstáculos. (…)

O Comitê dedicou grande atenção aos possíveis meios para superar tais obstáculos. Os peritos interessaram-se pelas medidas que tendem a reforçar os poderes do Ministério Público e do CDDPH, bem como pelo projeto de emenda constitucional relativo à federalização dos crimes contra os direitos humanos, assim como pela transferência para a justiça ordinária do julgamento dos crimes cometidos pelos policiais militares.” (14)

A ATUAL SISTEMÁTICA CONSTITUCIONAL E AS PROPOSTAS DE MUDANÇA

A competência da Justiça Federal para julgar crimes previstos em tratados internacionais, estabelecida no art. 109, V, da Constituição Federal, refere-se tão somente às hipóteses dos chamados “crimes à distância” (quando o início da execução é no país e o resultado ocorre ou devesse ter ocorrido no exterior, ou vice-versa). Veja-se, por exemplo, que o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de que é competência da Justiça Comum Estadual julgar policial militar ao qual é imputado crime de tortura(15). Ou seja, apesar de o Brasil ter aderido a convenções específicas para prevenção e repressão da tortura(16), como tal crime não é executado “à distância”, mas integralmente no território nacional, não se aplica o art. 109, V, da Constituição Federal.

Se considerarmos que foi o critério da repercussão internacional que levou o Constituinte a estabelecer – no caso do art. 109, V – a competência da Justiça Federal, não há lógica em restringi-la às hipóteses ali mencionadas. O fato em si de o país ter se comprometido a reprimir determinadas ofensas a direitos humanos por intermédio de convenções específicas, como é o caso do crime de tortura, já deveria ser tido como suficiente para presumir a repercussão internacional decorrente da prática de tais crimes, implicando a competência da Justiça Federal – aliás como estabelecia a Constituição de 1967.

Assim delineada a competência da Justiça Federal para julgamento de crimes previstos em tratados internacionais, consoante a Constituição Federal de 1988, vejamos as propostas apresentadas ao Congresso Nacional para ampliação daquela, no que tange ao assunto em questão.

A primeira proposição de emenda constitucional prevendo a atribuição à Justiça Federal da competência para julgar crimes contra direitos humanos partiu do Governo Federal. Trata-se da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 368-A, de 1996, de iniciativa do Poder Executivo, encaminhada por ocasião do lançamento do Plano Nacional de Direitos Humanos em 13.5.96, assim escrita:

Art. 1o São acrescentados dois incisos no art. 109 da Constituição, de números XII e XIII, com a seguinte redação:

“Art. 109. [Aos juízes federais compete processar e julgar:]

XII – os crimes praticados em detrimento de bens ou interesses sob a tutela de órgão federal de proteção dos direitos humanos;

XIII – as causas civis ou criminais nas quais órgão federal de proteção dos direitos humanos ou o procurador-geral da República manifeste interesse.”

É interessante relembrar trechos da exposição de motivos que acompanhou esta proposição: (…) a despeito do cuidado da Constituição em assegurar os Direitos Humanos, a realidade é que a violação desses direitos em nosso País tornou-se prática comum, criando um clima de revolta e de insegurança na população, além de provocar indignação internacional. É que o Estado brasileiro, ao cuidar de bem definir os ordenamentos que asseguram tais direitos descurou em relação a instrumentos capazes de assegurar o seu pleno exercício. De fato nenhuma mudança substancial foi estabelecida na competência e na organização das polícias pela Constituição de 1988 (…)

Com isso, constitucionalmente, as lesões aos Direitos Humanos ficaram sob a égide do aparelhamento policial e judicial dos Estados Federados que, em face de razões históricas, culturais, econômicas e sociais têm marcado sua atuação significativamente distanciada dessa temática. Esse distanciamento apresenta-se ainda mais concreto e evidente nas áreas periféricas das cidades e do campo, em que fatores econômicos e sociais preponderam indevidamente na ação do aparelhamento estatal.

Essa fragilidade institucional criou clima propício para cada vez mais freqüentes violações dos Direitos Humanos em nosso País, que ficam imunes à atuação fiscalizadora e repressora do Estado. Esse quadro de impunidade que ora impera está a exigir medidas destinadas a revertê-lo, sob pena dos conflitos sociais se agravarem de tal forma que venham fugir ao controle do próprio Estado.

Por estas razões e visando a realização, em concreto, dos Direitos Humanos em nosso País, julgamos necessário incluir na competência da Justiça Federal os crimes praticados em detrimento de bens ou interesses sob a tutela de órgão federal de proteção dos Direitos Humanos, bem assim as causas civis ou criminais nas quais o mesmo órgão ou o procurador-geral da República manifeste interesse. A fórmula consiste na inserção de dois novos incisos no art. 109 da Constituição.

Sem dúvida, a Justiça Federal e o Ministério Público da União, no âmbito das suas atribuições, vêm se destacando no cenário nacional como exemplos de isenção e de dedicação no cumprimento dos seus deveres institucionais. Por outro lado, cumpre destacar que a própria natureza dessas duas Instituições, com atuação de abrangência nacional, as tornam mais imunes aos fatores locais de ordem política, social e econômica que, até agora, têm afetado um eficaz resguardo dos Direitos Humanos.”

A Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), em sintonia com a PEC oferecida, aprovou uma redação alternativa no seu 15º Encontro Nacional, realizado no Rio de Janeiro em 1998, acrescentando na competência da Justiça Federal:

“XII – os crimes praticados em detrimento de bens ou interesses sob a tutela de órgão federal de proteção dos direitos humanos;

XIII – os crimes praticados contra direitos humanos, como tal definidos em cláusulas de tratados que vinculem o Brasil. “

A PEC nº 368/96 acima citada foi posteriormente apensada à de nº 96/92, de iniciativa do então deputado Hélio Bicudo, que veicula uma reforma constitucional no Poder Judiciário cuja tramitação já ultrapassa dez anos. Diante da maior extensão e complexidade desta última PEC, o referido apensamento acabou se revelando altamente nocivo para o andamento da proposição objeto do presente estudo. Com efeito, sua tramitação foi paralisada exatamente no momento em que estava clara a ampla maioria parlamentar que a apoiava, à vista da convergência entre partidos do Governo e da oposição acerca da matéria.

Somente em 2000 foi aprovada na Câmara dos Deputados a seguinte redação, transferindo para a Justiça Federal:

“V-A – as causas relativas a direitos humanos a que se refere o parágrafo quinto deste artigo;

Parágrafo 5o – nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.”

A inspiração desta deliberação da Câmara encontra-se em sugestão oferecida pela Associação Juízes para a Democracia (AJD), deste modo justificada: “Uma segunda hipótese de deslocamento de competência para a Justiça Federal, sem que com isso fossem feridas as normas de garantia referentes ao juiz natural e à proibição de juízos ou tribunais de exceção, seria a de violação massiva ou reiterada de direitos humanos, praticada por agentes públicos ou com sua conivência, quando no Juízo estadual competente estivessem comprometidos os meios internos para sua investigação, processo e julgamento, ou quando houvesse demora injustificada da prestação jurisdicional.

A medida se justifica em face da competência subsidiária das Cortes internacionais, que prevêem, nas hipóteses de esgotamento das vias internas ou de injustificável atraso na prestação jurisdicional, condição de procedibilidade das queixas apresentadas aos órgãos internacionais de controle e proteção de direitos humanos. Lembre-se ainda que o julgamento justo e imparcial, e em prazo razoável, é garantia fundamental do ser humano, previsto, entre outras, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, como garantia não só do acusado, mas igualmente das vítimas.

Afastando-se por completo qualquer hipótese de avocação, o texto constitucional deveria delegar às vítimas, ao Ministério Público, ou a quaisquer das entidades legitimadas constitucionalmente para a proposição de ações coletivas, a legitimação para suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, incidente para o deslocamento de competência, para que a Corte Superior, em regular processo e julgamento, decida se a situação define hipótese de violação de direitos humanos passível de responsabilização internacional do país e, portanto, afeta à Justiça Federal.”(17)

Subseqüentemente, no Senado, em março de 2002, a Comissão de Constituição e Justiça aprovou o seguinte acréscimo no rol de competências dos juízes federais:

“Art. 109 …………

V-A – as causas relativas a direitos humanos a que se refere o parágrafo 5º deste artigo;

V-B – os crimes praticados em detrimento de bens ou interesses sob tutela de órgão federal de proteção dos direitos humanos, nos termos da lei.

parágrafo 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.

A combinação de dois mecanismos conducentes à federalização da competência para julgamento de crimes contra os direitos humanos, tal como aprovado pelo Senado, resulta em um texto melhor do que aquele aprovado pela Câmara dos Deputados.

O incidente de deslocamento de competência tem muitos aspectos positivos. Em primeiro lugar, não paira qualquer dúvida quanto à sua compatibilidade com a independência do Judiciário, uma vez que seria um órgão judicial – o Superior Tribunal de Justiça – que poderia determinar o citado deslocamento.

Em segundo lugar, guarda perfeito paralelismo com a regra do esgotamento dos recursos internos como condição para que a questão possa ser levada ao conhecimento da Corte Interamericana – pois ambos são mecanismos marcados pela subsidiariedade, em que o órgão que primeiro tem competência para apreciar o fato funciona mal, e somente em decorrência deste “mau funcionamento” abre-se a possibilidade de submeter-se a questão a outra instância. Finalmente, tal incidente não é estranho ao direito brasileiro, pois é instituto bastante assemelhado ao desaforamento (deslocamento da competência do tribunal de júri, nos termos do art. 424 do Código de Processo Penal).

Não obstante, este mecanismo pode trazer alguns problemas, tais como:

a) o deslocamento poderia ser dificultado pelo desgaste político da “intervenção” da União no Estado membro. (18)

b) Como o deslocamento só se daria após julgamento do incidente pelo STJ, a investigação teria início perante os órgãos de segurança pública dos Estados membros. Entretanto, os casos mais emblemáticos de grave violação de direitos humanos, com repercussão internacional, são aqueles em que a violência é perpetrada pela própria Polícia dos Estados.

c) Segundo o texto aprovado pela Câmara e, até o momento, pelo Senado, a provocação do incidente dependeria exclusivamente do Procurador Geral

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!