Prazeres sumiram

É preciso saber usufruir os pequenos prazeres

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11 de agosto de 2002, 9h31

Nossa sociedade é tão obcecada pelo dinheiro, pela ostentação e pelo hedonismo que a vida das pessoas transformou-se em eterna angústia. Em nome do poder econômico, tudo foi destruído: o meio ambiente, a decência, a integridade moral e física do ser humano. Já em nome do sexo, que se tornou obrigação, alguns obstinados se matam em academias enquanto outros se mutilam em sucessivas cirurgias plásticas, sem falar nas dietas constantes que transformam o ato de alimentar-se em frustração ou culpa.

O resultado disso é que muitos já não sabem mais como usufruir dos pequenos prazeres. Um copo de suco de laranja natural, um encontro casual com alguém interessante, uma refeição em família, uma árvore, um jardim, um rio de águas limpas, um momento de descanso, um livro, um filme. O cotidiano é mais importante do que os grandes feitos, os encantos da vida estão justamente no que é bom e acontece sem dificuldade. O equilíbrio emocional só é alcançado quando, em cada dia, é possível encontrar um pouco de beleza e amor. A felicidade resulta da paz, da harmonia interior e da integração com a natureza.

Viver em um local limpo, arborizado e com um mínimo de estética pode significar um grande salto de qualidade de vida. No entanto, por incrível que possa parecer, a população brasileira não consegue perceber a importância desse fato. Com tantas belezas naturais, não é exagero considerar que poderíamos, apesar da pobreza, viver no paraíso. A preservação do meio ambiente, das áreas verdes e das águas poderia significar a diminuição das doenças, da violência e da fome. Mas nem os governantes nem a sociedade parecem se incomodar com isso.

Basta abrir-se uma nova estrada que a vegetação dos arredores é destruída desnecessariamente. Em pouco tempo, o que era bonito torna-se horrível, desértico. A noção de pureza das águas tampouco existe. O brasileiro, quando vê um rio, logo arruma um esgoto clandestino para poluí-lo. Depois toma banho e escova os dentes com a mesma água, sem tratamento. Os agricultores, desde os empregados até os proprietários das terras, não perdem tempo em buscar alternativas para as queimadas. Quando chega o inverno, o país fica em chamas de norte a sul.

O ar torna-se irrespirável, a fumaça negra causa acidentes nas estradas, o pó reina absoluto. As doenças respiratórias se multiplicam. Junto com tudo isso, ainda é preciso suportar a feiúra incomensurável do que, anteriormente, era belo. As cidades, grandes ou pequenas, estão cada vez mais desagradáveis, por falta de vegetação, limpeza e estética.

Há poucos dias, notícias de televisão informavam que parte do que restou do pantanal matogrossense está sendo aniquilada pela poluição dos rios da região. Nossa população, dos mais ricos aos mais pobres, não consegue enxergar a beleza que a cerca e transforma as áreas que ocupa em lixões mal cheirosos, de paisagem desoladora. Como a cidade de São Paulo, por exemplo. Por que esse gosto macabro pela destruição?

O problema social não é justificativa. A razão verdadeira de tantas mazelas é a ignorância, a herança dos colonizadores, a falta de responsabilidade dos governantes, a deturpação do conceito de coisa pública. Acima de tudo, talvez, a incapacidade de valorizar os encantos da vida que não estejam ligados ao dinheiro, à ostentação e ao sexo.

Há muito tempo, brasileiros ilustres vêm apontando os perigos decorrentes da destruição ambiental. Na visão do ecologista maranhense Coelho Neto, que publicou vários textos entre os anos de 1898 e 1928, a baía da Guanabara não passava de uma “grande fossa”. A cidade do Rio de Janeiro, por ser a mais importante do país, era a capital das depredações ambientais. Sua população, além de devastar e poluir, ainda importava pássaros e plantas para se transformar em “metrópole européia”. Em apoio às posições de Coelho Neto, há escritos de Euclides da Cunha, João Pedro Cardoso, Pereira Brito, Marechal Rondon, dentre outros. Não adiantou nada.

É de se perguntar: o que falta para que nossos conterrâneos valorizem o patrimônio que receberam da natureza? Talvez a resposta esteja, justamente, na percepção dos pequenos prazeres.

A felicidade de um povo, se isso existir, só pode estar naquilo que é de todos e não pode ser adquirido por ninguém. São coisas que não nos pertencem individualmente, mas das quais podemos usufruir para ter harmonia, estabilidade emocional, saúde, satisfação, alegria de viver. Nada pode ser melhor do que morar em uma cidade-jardim, ou à beira de um rio de águas claras, ou em área rural arborizada. Isso tudo é possível, basta que haja inteligência e empenho.

O autor francês Pascal Bruckner, em seu último livro, discute os conceitos de felicidade no mundo ocidental. Segundo ele, “as pessoas obcecadas em conquistar a felicidade como uma propriedade sofrem em dobro e se distanciam das pequenas alegrias da vida“. Haja antidepressivo para corrigir isso!

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    é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

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