Interatividade

Interatividade: convergência, regulamentação e usuário

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7 de agosto de 2002, 9h23

As convergências entre suportes e media eletrônicos, da ordem do dia, prometem mudanças assombrosas no cotidiano das pessoas. Seu produto-chave, a TV Digital, surge como o formato que estabelecerá novos padrões no consumo de bens, e sobretudo, nas possibilidades de uso e distribuição das imagens. Seus atrativos seriam a possibilidade de “interação” com o aparelho, mas também a possibilidade de se ver os programas a hora que se bem entendesse, no lugar que se desejasse. Tudo isso com qualidade de áudio e imagem superiores, claro.

Com a quebra do padrão de difusão de imagens para massas indistintas (modelo da TV aberta), dado que a TV Digital opera com a segmentação (muito canais, fragmentando os montantes sobrenaturais de Ibope de um só programa), é de se perguntar de onde sairiam os valores de financiamento de um tecnologia que, caríssima, aparentemente rompe com o modelo de financiamento atual das TVs, donas de 57% do bolo publicitário.

A palavra mágica é: Interatividade. Parceira da convergência, é quem explica de onde virá a bufunfa nesse novo modelo de transmissão. Possibilitando ao telespectador comprar os gadgets que lhe são apresentados, e somada a isto verdadeiros portais de consumo e prestação de serviço, esse suporte promete atingir o consumidor com máxima eficiência. Canal de esportes? Anuncie chuteiras. Sem dispersão: clique, pague e consuma.

Com a quebra das empresas ponto com, o computador deixou de ser o suporte chave deste processo de massificação tecnológica. Tal é agora creditado à TV Digital interativa, um misto de TV, PC e telefone, de preferência celular. A idéia da convergência, aliada a de interatividade, surge como o ovo de ouro para expansão deste mercado em situação bastante complicada. O problema é o que estas premissas escondem. Para usuários de computador, que prezam por uma capacidade de alteração e de gerenciamento daquilo que usam e fazem, talvez estas novas tecnologias não se mostrem um oásis digital, como querem aparentar.

A interatividade proposta pela TV Digital, bem como a ‘internetificação’ associada ao celular, trabalham de forma direta e objetiva com o consumo, tanto em ato quanto em idéia. Netbanking, compras em supermercado online, download de filmes na locadora BlockBuster virtual e assim por diante são metas da TV Interativa, que funcionam sobre o auspício de acesso mais rápido e confortável aos bens de consumo. Em contrapartida, as redes baseadas no que ficou conhecido como internet trabalham (ou trabalhavam) com outra ordem de interesse. Compartilhar música, vídeos, textos. Conversar, fazer amigos, dar e receber ajuda são características estruturais e estruturantes das redes, que não funcionam sobre um princípio mercadológico, do consumo imediato e acachapante. O que a TV interativa e a geração celular entende como receptor é nada mais que um consumidor, em verdade tão passivo como sempre, em oposição às redes que acabam por permitir uma área de manobra do usuário incomparavelmente maior. O que estas sutilezas técnicas escondem, encobertas na neblina tecnológica, é que de um lado fala-se de usuário, de outro, consumidores. Ou seja, enquanto temos num cenário o indivíduo, no outro ele vira mala-direta, sumariamente.

Vale reproduzir este trecho de Mayra Gomes, em Atrator Estranho Nº 14 (1):

Parto do princípio de que aquilo que chamamos de TV interativa não tem nada de propriamente interativo. Se tomarmos a concepção normal do termo interativo, de troca e interferência, ela de fato não existe. Isto porque essa centralização se refere justamente a isto: uma equipe, vamos supor, lhe oferecendo possibilidades de escolha. Não importa que elas sejam vastas e múltiplas, você está delimitado, e não é isso que está por trás do conceito de interatividade. O discurso que convida à interatividade é revelador, é sintoma e se estrutura de uma forma tal a mostrar a nossa situação face à tecnologia e nossa situação em termos de um contexto social geral. Do ponto de vista de Arlindo Machado, existe mais interatividade em uma novela – pois ela é constantemente ancorada em checagens de Ibope e audiência – do que em um programa como o ‘Você Decide’, em que existe uma escolha que nem sequer é múltipla, é biunívoca e ponto final, você não tem interatividade alguma.

Todas estas inovações tecnológicas acima descritas, decerto dependem da produção de empresas que atém seus interesses em nada ou quase nada do universo público, daquilo que respeita ao interesse coletivo. Perfeitamente, dado que a técnica e a ciência, companheiras que explicam bastante uma da outra, são em boa medida financiadas pelo capital de empresas privadas, que visam o lucro e a multiplicação de seu capital. Mas isso não implica, como desavisadamente pode-se levar a crer, que o interesse investido no campo tecnológico é de exclusividade de empresas e corporações. O contrário já foi verdade. Mas em tempos em que setores que eram tidos como ‘estratégicos’ são deixados ao decidir do desenvolvimento estritamente privado, é comum encontrar a concepção de que o que vier está bom, e não estando, nada pode ser feito. É a já velha idéia de que a economia e seus fins é um assunto particular entre produtores e consumidores, ao que se pode contrapor, perguntando-lhes se o assassinato também é um affair particular entre assassino e assassinado.


É o discurso dos nossos tempos, que esvazia do Estado sua interferência em assuntos de interesse público. Assim, tudo parece um emaranhado chato que empresas e empresários devem resolver, por que tiram daí seus lucros. A nós, público, basta esperar que o melhor virá, pela seleção mágica do mercado. De forma nem tão surpreendente, já se barganha a escolha do padrão de TV Digital (que é um verdadeiro pega para capar) por regalias comerciais, redução de tarifas alfandegárias e outros escambos do mais alto interesse ao usuário.

Para tanto, todos apostam nas agências reguladoras, que possibilitariam a mediação entre interesse público e privado. Mas tratando-se de Brasil, aonde a própria agência de comunicação está atrasada em 14 anos, a perspectiva não é das melhores. Tomando como referência a Anatel e os casos recentes do embate Telefonica (Speedy) e Procon-SP/Idec, podemos vislumbrar o que espreita lá fora. De um lado, conglomerado que nunca se viram maiores, de outro, usuários com pouca possibilidade de atuar no desenrolar legal do uso destes media. No meio, as agências reguladoras, especializadas que são na prática do empurra-empurra. O que se perde nessa mediação fracassada é possibilitar o desenvolvimento do meio de forma que preserve sua característica pública, universal, que foi o que fez da grande rede sua característica diferencial.

A necessidade de compreender a grande rede como espaço público, e não como planeta a ser desbravado por piratas mercadológicos, é a necessidade de afirmar a primazia da sociedade frente ao interesse de corporações. A riqueza da Internet trespassa sua constituição enquanto meio inovador, e repousa no seu conteúdo público, plural, mundial. Tal é a herança que deveria ser protegida por aquele que responde pela importância e função de Estado. Não uma atuação do Estado que lembre um devaneio nacionalista, estatizante e burocrático. Mas cumprindo com o que é sua função, que é proteger o interesse coletivo, não apenas o privado. Enquanto estes meios forem capitaneados exclusivamente pelo interesse da reprodução do lucro, como vimos e estamos revendo nos sucessivos booms e quebras do campo tecnológico (2), será impossível imaginá-los como espaço e bens coletivos, mas somente como nicho de mercado, tal como tem sido tratado nas discussões e controvérsias entre agências reguladoras, empresas e usuários.

Vale reproduzir este trecho de Florian Rötzer, em Espaço virtual ou espaço mundial? (3):

Desregulamentação e retrocesso do Estado como poder de controle sempre foram, desde tempos idos, as palavras mágicas do liberalismo econômico, com exceção naturalmente do asseguramento da propriedade, dos contratos e do lucro, pelos quais apela-se com prazer sempre ao Estado. Agora, contudo, delira-se pela liberdade desestatizada e sem burocracia do ciberespaço, que por um lado pertence ao ‘povo’ mas, por outro, deve assegurar a posição dos EUA com seus conglomerados. (…) Desregulamentação é a única máxima da felicidade. A esfera pública não desempenha nenhum papel se não trouxer dinheiro. Os indivíduos, que são tão respeitados, precisam impor-se e lucrar, senão estarão perdidos e relegados ao esquecimento como o foram outrora os índios. Liberdade é apenas uma coisa: liberdade do mercado, ou seja, concorrência.

Claro que as políticas de regulamentação do meio não se resumem a polaridades simples, mas as tentativas de organização da grande rede deram margem a aberrações bastante grandes. O caso da legislação especial americana, denominada Digital Millennium Copyright Act (DMCA), uma peça de lei promulgada e assinada pelo ex-presidente Bill Clinton em 1999, seu penúltimo ano de mandato, é exemplar. Tal peça de lei teria em sua origem o intuito de agregar as leis anteriores e modernizá-las, adaptando-as aos novos tempos de forma que pudessem regular os meios digitais de armazenamento (internet) tanto no respeitante ao e-commerce como no que despeita ao usuário. O que se viu deste recurso foi uma disposição que permitia, legalmente, que o governo americano se empenhasse nas mais sórdidas campanhas, não longe mesmo de intuir legislar além de suas fronteiras, intervindo em sistemas legislativos de outros países e pressupondo, baseado sabe-se lá em que, que a Constituição e as leis dos Estados Unidos reunissem a redenção jurídica do globo (4).

Nesta guerra de interesses e políticas de regulamentação, qualquer aceno de certezas parece distante, sobretudo tendo-se em vista a ‘internet invisível’ que já vem se apresentando. Se regulamentar o uso dos cabos e redes para internet parece complicado, o que imaginar então quando qualquer notebook possa utilizar banda disponível para enviar e receber sinais numa dada freqüência, como já vem fazendo o movimento Wi-Fi (5)? Nessa discussão feita de desacertos e desalinhos, o viés de Lawrence Lessig (6) é altamente interessante: Libertem as comunicações de qualquer ingerência, pois o risco é claro e caro: compartimentação, fim da inovação e da liberdade, numa palavra: normatização.


Lessig se preocupa com a riqueza do espaço cyber e sua capacidade de gerar conhecimentos de interesse geral, alertando para o que lhe parece ser uma ameaça preocupante nestes dias: o controle deste espaço. Utilizando a palavra commons para designar tanto um bem comum quanto uma área pública aberta, acaba por instituir uma palavra-chave explicativa de que os locais de fomento ao bem público na atualidade se dão também em espaços ou objetos mínimos, não mais nos amplos e exclusivos espaços da modernidade. Defendê-los é proteger o campo de inovação que este meio proporciona.

O ponto de vista de Lessig é de fato o de quem defende o meio contra interesses particularistas. Não há dúvidas de que a auto-regulamentação, de que é defensor, seria uma excelente forma de preservar a criatividade no meio, bem como possibilitar a existência de agregações menores frente ao monopólio mercadológico. Tal visão radical é tão brilhante quanto idílica. Novamente, e de forma pouco surpreendente, revemos o velho embate que crê que uma postura livre, de deixar estar, pode resolver, procurando um ‘meio-termo’ ideal. Ou seja, tal é a acepção sumariamente liberal. O problema, ao se pregar a total ausência de controle, não é como se pensa o caos destruidor. O problema é que não existe essa ausência idealista, pois pólos ansiosos por espaço e poder de difusão sempre se farão presentes. O que temos visto na versão americana da falta de ingerência foi a gerencia das corporações. Já no período Bush, por razões bastante claras, essa ingerência praticada como gerência virou legislação.

Pode-se aventar que o Brasil costuma adotar as medidas americanas como diretrizes universais, de forma que poderíamos ter como certa a política de cerceamento ianque entre nós. Mas este é um terreno menos sólido do que parece. Primeiro porque as medidas americanas podem de fato representar majoritariamente os interesses do capital, mas este não é exclusivamente americano. Não quero com isso engordar o discurso economicista, que falando em ‘capitais internacionais’ o tempo todo, parece por vezes esquecer que o internacional é, também, o nacional de algum lugar. O que nos parece importante é reforçar que as possibilidades de legislar sobre a grande rede são tão confusas quanto incertas, e se o órgão que fora responsável pela administração lógica do sistema, o ICANN (8), tornou-se mesmo uma instituição que defende quem não precisa de tanta defesa, as corporações, não se pode perder de vista que essas medidas penetram num emaranhado complexo de política e relações internacionais, onde não cabem unilateralismos e decretos imperativos. Não que estes não ocorram, e que não possam se tornar a regra, mas é que caso se tornem temos então um outro cenário.

O que a nós surge como problema é essa versão light do universo cibercultural que tomou forma pela exploração mercadológica desmedida. Portais e mais portais que, lembrando canais de TV, trazem para a grande rede a lógica de que a possibilidade de falar não implica na possibilidade de ser ouvido. Deixa-se de lado a possibilidade que as novas tecnologias por ventura tivessem de gerar um tecido social mais rico, produzindo novas formas de relação, de criação, de arte. O prefixo ciber se desvincula de William Gibson e impregna os gadgets banais dentro da lógica do ganhar.com. Um home banking fica simplório diante do ‘e-banco’ e seus celulares com e-moções, tanto quanto em suas variantes: ‘ciberlivros’, ‘cibersexo’, ‘ciber-carne-moída’, etc. etc.

Assim, as finalidades da TV Digital ‘interativa’, em suas infinitas convergências e variações, se enquadram perfeitamente dentro deste abismo de prazeres e desejos tecnológicos de última geração. Nessa perspectiva, não há nada que seja público e que se deva defender, já que tudo é para e tão somente o indivíduo, e o que lhe escapa não pode ter importância. Indivíduo este, podemos ver, desejoso em trabalhar numa paisagem paradisíaca com um notebook, fidedignamente nos conformes do imaginário hollywoodiano. Ou investir na Bolsa sem pagar a indefectível CPMF. Tudo graças à internet, que a isso deve servir.

Afinal, como se ouve com freqüência: “Pra quê que eu vou querer isso?”.

Notas de rodapé

(1) Gomes, Mayra. In: Revista Atrator Estranho Nº 14, TV Interativa, São Paulo: Ed. NTC.

(2) A própria falência da WordCom, a maior de que já se teve notícia, reflete em boa medida a lógica que impera nesta área. Menos preocupados com a estruturação física dos serviços a serem oferecidos, a megacorporação se fez por fusões e políticas de crescimento espertinhas. Tanto o boom das telecomunicações quanto a quebradeira que seguiu explicam bastante da lógica de lucro selvagem, aonde nem mesmo o próprio serviço importa, mas apenas a capitalização desmedida. O que se perdeu nesta correria, é o princípio fundamental de que o valor de um bem tem que corresponder à capacidade de utilização real da sociedade, a sua demanda. A mídia, por sua vez, não apenas participou como engendrou boa parte do frenesi deste boom. Sobre a relação da mídia com a bolha especulativa, ver: Cox News Service. Vilões de escândalos financeiros eram descritos como “gênios” pela mídia. 23/06/2002.

(3) Rötzer, Florian. Espaço virtual ou espaço mundial? In: Stiftinger, E./Strasser, E. (Org.) Binäre Mythen. Cyberspace als Renaissance der Gefühle/ Binary Myths. Ciberspace – The Renaissance of Emotions. Viena, Zukunfts – und Kulturwerkstätte, 1997, (pp. 50-78). Trad. Ana Célia Martinez. Supervisão: Ciro Marcondes Filho.

(4) Ver a respeito o bom artigo de Nehemias Gueiros Jr., A sanha do Império, disponível em: http://oglobo.globo.com/suplementos/informaticaetc/19002258.htm

(5) Para tanto, ver o artigo A liberdade nas ondas. Ciberativistas e a wireless-fidelity de André Lemos sobre o assunto. (Disponível em: http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/404nOtF0und). E também: Dávila, Sérgio. A revolução do acesso sem fio que vem com o padrão Wi-Fi. Jornal Folha de São Paulo, 12/07/2002.

(6) Lessig, Lawrence. Code and Other Laws of Cyberspace. New York: Basic Books, 1999. Lessig, Lawrence. A Internet em Estado de Sítio. Tradução de Omar Kaminski e Ana Paula Gambogi Carvalho. Inédito.

(7) “The larger story here is not about dark forces. It is about a blindness that affects our political culture generally. We have been so captured by the ideals of property and control that we don’t even see the benefits from resources not perfectly controlled…. This is not a conspiracy. It is a cultural blindness.” Lessig, Lawrence. The Future of Ideas: The Fate of the Commons in a Connected World. New York: Random House, 2001.

(8) A “ICANN” (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers) é o órgão que arquiva e administra os registros de domínio da Internet. http://www.icann.org/. Durante certo período foi grande a expectativa de que o órgão pudesse ensaiar certas práticas de uma democracia digital, dado que seus quadros eram eleitos por voto direto, dos próprios internautas espalhados ao longo do mundo. Contudo, no dia 28 de junho de 2002, o órgão que já vinha de várias podas ao usuário comum, decidiu, conjuntamente a outras medidas tão polêmicas quanto, extinguir os cargos do conselho antes reservados a grupos de internautas. Desde então, todos os 19 postos de comando da entidade só podem ser ocupados por especialistas, representantes de governos, empresas ou organizações sem fins lucrativos. Isso tudo apesar do brasileiro Ivan de Moura Campos, integrante do conselho, apregoar que se trata de uma manobra para “limitar o ingerência de empresas americanas sobre o órgão”. Ver em: http://www.istoedinheiro.com.br/254/mercadodigital/mercado_digital_3.htm

(Este texto é um excerto de “Aspectos da mediação entre usuário tecnologia”, originalmente produzido para o III seminário anual do Ciberpesquisa, Facom/UFBA.)

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