O segundo filho

Entra em vigor, na China, a lei do controle populacional.

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2 de agosto de 2002, 7h13

Um senhor de mais de 80 anos e residente em Nanjing, província de Jiangsu, processou a esposa no ano passado por não respeitar seu direito de ter filhos. A demanda causou um verdadeiro rebú nos círculos sociológicos e jurídicos. Segundo o ancião, sem pedir consentimento a esposa fez três abortos durante a idade fértil, temendo que os filhos de seu ex-marido nascessem com problemas mentais. Privado do direito ser pai, o homem foi à justiça contra ela por não ter descendentes que zelem por ele na velhice.

Casos similares aconteceram também na província de Sichuan, em Beijing e outras regiões do país. Devido à carência de leis que dêem direito aos cidadãos masculinos de exigirem filhos legalmente, os tribunais locais tiveram que recorrer às estipulações pertinentes na Lei de Matrimônio e no Código Civil.

A lacuna legal acabou, finalmente, dia 29 de dezembro de 2001, quando o Comitê Permanente da Assembléia Popular Nacional aprovou a Lei de População e Planejamento Familiar da República Popular da China. Entra em vigor dia 1º de setembro próximo.

Com sete capítulos e 47 artigos, esta é a primeira lei que regula o planejamento familiar na China. Estipula que os cidadãos devem se planejar nas formas da lei e tanto o marido como a esposa têm responsabilidades comuns nesse sentido.

A lei proclama que, independentemente do sexo, ambos gozam de igual direito de ter um filho. Segundo essa disposição, a descendência é uma questão de vínculo igual, marido e mulher, e nenhum deles pode decidir em separado sobre o nascimento ou não de um filho.

O programa nacional de planejamento familiar entrou em vigor nos princípios da década de 70. Foi declarado política básica de Estado nos anos 80, e incluído na Constituição.

Durante muitos anos, no entanto, o programa foi aplicado através de medidas regionais e os regulamentos ditados conforme as particularidades de cada local, para atender às normas do governo central. Nesse período de mais de 30 anos, os resultados foram sendo observados para o decreto de uma lei nacional.

A Lei de População e Planificação Familiar foi aprovada depois de complicado e lento processo. Passou por mais de 40 revisões desde 1977.

As discussões estavam centralizadas em dois aspectos: a dificuldade de adaptar legalmente as políticas, normas administrativas e regulamentos para um rápido controle do crescimento populacional.

Devido às diversidade locais ocorreram distintas aplicações da política de planejamento familiar. Milhares de famílias de camponeses deixam de registrar o segundo filho para não sofrer multas.

O número não entra na estatística e o povoado não é punido com corte de verbas. No final da década de noventa começaram a compreender que o êxito da China no controle da população era uma contribuição para o mundo. Nos 30 anos, a aplicação desta política evitou 300 milhões de nascimentos, e isso aliviou a pressão do crescimento demográfico sobre os recursos financeiros e do meio ambiente. Mas afeta a tradição familiar de grande parte das etnias chinesas.

A superpopulação sobrecarrega os recursos naturais. O lençol de água subterrânea no país desce, em média, dois metros mas alguns lugares chega a baixar dez metros, anualmente.

O programa de Mao Zedong, de incentivar as famílias chinesas a terem filhos fez, os 500 milhões de habitantes em 1950, procriarem para depois de 50 anos, oficialmente chegarem a 1,297 bilhão de pessoas. Autoridades da época justificaram como uma proteção para o país: eles têm a bomba atômica e nós temos a bomba populacional, que poderia garantir a sobrevivência do estado chinês mesmo que fosse atacado com artefatos nucleares de qualquer das potências de então.

O programa de planejamento familiar da China se concentra na manutenção de um baixo índice de natalidade e a melhora da qualidade de vida da população, segundo a Comissão Estatal de Planejamento Familiar da China. O motivo para estabelecer como lei nacional o programa é dar respaldo às medidas adotadas regionalmente durante os últimos 30 anos, evitando possível discrepância jurídica no futuro.

Segundo Zhao Baige, diretor do Departamento Internacional de Cooperação da Comissão Estatal de Planejamento Familiar, o mundo agora entende a aplicação de um rígido controle no planejamento familiar. Desde que a província de Guangdong, com 69,6 milhões de habitantes, promulgou seu regulamento para o planejamento familiar na década de 80, todas as províncias, regiões autônomas e municípios da China, com exceção de Xinjiang e Tibet, formulam suas próprias normas, muitas delas consideradas cruéis pela cultura ocidental, para atender aos números exigidos pelo governo central. Os números em uma sociedade podem ser usados para maquiar a realidade e esconder a verdade de muitos, como foi o caso recente em Wall Street.


Após estes 10 anos de experiência sob norma publicada, os legisladores da Assembléia Popular Nacional têm informação suficiente, adquirida com os incontáveis métodos aplicados em todo o país, conforme as características regionais e agora estão aptos para votar a lei.

Segundo Zhang Huaixi, do Comitê Permanente da Assembléia Popular Nacional e subdiretor da Comissão de Educação, Ciência, Cultura e Saúde subordinada à Assembléia Popular Nacional, a norma permitirá dar continuidade às políticas de planejamento familiar para garantir o desenvolvimento sustentável e coordenado da população, da economia e do meio ambiente.

Dada a multiplicidade regional, a Lei de População e Planejamento Familiar foi discutida nas últimas três reuniões anuais do Comitê Permanente da Assembléia Popular Nacional antes de sua promulgação. Seu artigo 18 é o foco da preocupação popular. O dispositivo determina ao governo que mantenha a política atual de população, estimule os cidadãos a contrair matrimônio, conceber somente na fase madura do casal e ter um único filho.

Os que satisfizerem as normas da lei nacional e dos regulamentos regionais podem obter a permissão para ter um segundo filho. As normas específicas neste sentido serão formulados pela assembléia popular ou comitê permanente de cada província, região autônoma e município diretamente subordinado ao governo central.

As 55 minorias étnicas, representando 9% da população do país também devem praticar o planejamento familiar, mas com algumas regalias. Uma delas é a de poder ter dois filhos. Segundo essa disposição, os da maioria Han (91% da população), que desejam um segundo filho conseguem a permissão quando a situação financeira, social e familiar esteja dentro dos regulamentos legais fixados pelos governos locais.

O artigo condensa as políticas anteriores para o controle da natalidade, segundo Zhang Chunsheng, da Comissão de Trabalho Legislativo da Assembléia Popular Nacional que afirma: “A política obrigatória de um só filho não é de modo algum a política do governo”.

O governo leva em conta a realidade e tenta adequar as leis, o máximo possível, à cultura e ao anseio da população.

Em 19 províncias permitem ao casal que mora na zona rural ter um segundo filho se o primeiro for do sexo feminino. Em 27 províncias e regiões autônomas, permite-se dois filhos se um dos pais é o filho único da família.

Trinta e uma províncias, municípios e regiões autônomas estipulam que o casal pode ter um segundo filho se o primeiro é deficiente físico ou mental e não possa trabalhar. Segundo disse o parlamentar, em entrevista à agência de Notícias Xinhua, o planejamento familiar não significa que cada casal deve, de modo indiscriminado, renunciar a ter outro filho ou não tê-lo.

As assembléias devem levar em conta as questões futuras dos residentes rurais, como a falta de mão de obra e o cuidado com os idosos. O planejamento familiar deve também permitir uma coordenação entre o crescimento da população e o desenvolvimento social para assegurar a sustentabilidade do país como um todo. Um ponto de ênfase reside em harmonizar a mão de obra disponível com as necessidades do desenvolvimento econômico e social. Os legisladores locais devem prever a escassez da mão de obra que pode se dar em poucos anos.

A nova lei também fez um reajuste das políticas anteriores de controle da natalidade. A China tem na atualidade, mais de 80 milhões de filhos únicos registrados. Segundo a nova lei, muitos casais vão ter permissão para um segundo filho.

Uma pesquisa feita pela Associação Nacional para o Planejamento Familiar indica que jovens casais das cidades não desejam ter filho. Essa situação é típica em Shanghai, onde o crescimento natural da população tem caído para seis por mil.

Em Beijing, a pesquisa mostrou que cerca de 10% dos habitantes da cidade em idade de engravidar, escolheram não ter filho.

Em meados de janeiro deste ano, a Comissão Estatal de Planejamento Familiar anunciou oficialmente a extinção do sistema de multas para quem tivesse filhos não autorizados; em seu lugar o casal paga os gastos sociais de criação, segundo a disposição do artigo 41 na nova lei.

Jiang Yiman, diretora da Comissão Estatal de Planejamento Familiar, prega que o pagamento das obrigações sociais de educação é uma compensação dos casais com filhos desautorizados à sociedade, porque os nascimentos adicionais conduzirão a uma pressão adicional sobre os recursos públicos, incluindo a educação, a assistência médica e o bem-estar.

Ela considera esse meio eficaz para o planejamento familiar e tem evitado nascimentos imprevistos ou adicionais. Quando a lei sobre população e planejamento familiar entrar formalmente em vigor, todas as taxas e obrigações sociais serão depositados nas contas do Tesouro Nacional, longe do controle dos departamentos regionais de planejamento familiar.


Mao Zedong, quando proclamou a República Popular da China em 1949, decretou, entre outras, duas leis importantes, uma sobre a propriedade da terra e a outra sobre a liberdade de escolha dos parceiros e a igualdade entre o homem e a mulher.

Nos anos 50, seu governo impôs um programa de controle de nascimentos que foi abandonado durante a revolução cultural. Mao acreditava que o controle de natalidade era uma arma do capitalismo para deixar a China fraca, não tendo mão de obra suficiente no campo. Esse, talvez, seu maior pecado.

O plano original previa, para 2000, uma população de 1,250 bilhão, e permitir um controle de natalidade e mortalidade natural até a população chegar a 700 milhões. Agora, com a política de planejamento familiar, as mulheres perderam ainda mais a liberdade adquirida no decreto de 1949, o que deveria ser o contrário, pois são em número inferior, quase 140 homens para 100 mulheres em alguns lugares, geralmente em áreas onde a política de planejamento familiar é mais severa.

No campo, culturalmente, o homem é o preferido há séculos. E não só na China. A mulher dá a mesma despesa de manutenção, é mais frágil para o trabalho pesado e, depois, quando casa, acompanha o marido, e deixa os pais. O filho mais velho chinês deve tomar conta dos pais.

Com a política familiar de um só filho, quando nascem crianças do sexo feminino, em alguns casos, acabam não vingando. Por outro lado, isso faz da mulher camponesa um trunfo financeiro, pois o casal pede altos dotes pela moça da família, mas depois ficam sozinhos.

Em outras regiões remotas, de etnias minoritárias, onde existe a possibilidade de ter dois filhos, e até três se os dois primeiros forem moças, ocorre o contrário. Elas saem em busca de trabalho nas grandes cidades e acabam muitas vezes sendo raptadas e depois vendidas a famílias, que querem casar o varão de uma região distante com falta de noivas.

O “comércio” é feito culturalmente há centenas de anos, mas essa política pode estar alterando os pontos de equilíbrio de uma sociedade, que no censo do ano 746, durante a dinastia Tang, contabilizava a existência de 45 milhões de habitantes.

Uma das poucas explicações para essa enorme população é a comida chinesa. Mas a China pode. São milhões de trabalhadores para a construção civil. O país é um mar de gruas, segundo o jornalista e historiador Heródoto Barbeiro, em recente viagem ao país.

Tem mão de obra barata para produzir, poucas leis trabalhistas, e grandes empresas transnacionais com investimentos bilionários (só a Pierre Cardin tem 15 fábricas instaladas), que podem acabar transformando o país no maior parque industrial do mundo.

O governo do regime socialista chinês impôs um controle político rígido com uma economia livre e aberta. A transformação da sociedade leva tempo, e tem preço. Os dirigentes chineses redescobriram que é melhor dar dois passos à frente e um para trás, para consertar o rumo. Aqui tudo entra, mas sai somente o permitido. Esse povo todo come todos os dias. Remete a uma reflexão sobre o Brasil, que possui a maior área disponível para a agricultura no planeta.

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