Unificação questionada

'Unificação das polícias pode tornar-se obsoleta antes de nascer'

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30 de abril de 2002, 14h03

A Comissão de Segurança do Congresso aprovou a unificação das Polícias Civil e Militar e o assunto deve ser votado nos próximos dias na Câmara e no Senado Federal. O maior risco dessa unificação é tornar-se obsoleta antes de ser concretizada. Por quê? Porque as nossas duas polícias pertencem ao antigo e ultrapassado modelo “burocrático”, que nos países mais avançados estão cedendo lugar aos novos modelos de polícia (comunitária e de inteligência).

Estão pretendendo unificar (em oito anos) duas polícias reativas (que atuam quase que exclusivamente depois do crime, quando nossa vida já foi ceifada) e hoje se sabe que na verdade necessitamos de uma polícia proativa (polícia que atue junto com a comunidade antes do delito). Querem unificar duas polícias que atuam repressivamente, mas o ideal seria adotarmos o modelo preventivo. Melhor prevenir que remediar.

A unificação operacional das polícias pode até melhorar (um pouco) o rendimento delas em termos de repressão ao delito (hoje não mais que 2% dos crimes são efetivamente punidos; no futuro podemos chegar 2,5%, talvez). Mas o mais relevante hoje não é punir um pouco mais (isso a população pouco notará), senão saber quantos delitos foram evitados em virtude de uma política decisivamente preventiva.

A eficiência da polícia (de acordo com os novos padrões científicos e criminológicos) já não deve ser medida (só) pelo número de ocorrências registradas, de delitos investigados, de delitos esclarecidos, de indiciados, processados, condenados etc. (até porque uma das atuais tarefas de alguns setores das polícias tem sido a de maquiar as estatísticas), senão pelo número de delitos que deixam de ser cometidos (a experiência do Jardim Ângela, em São Paulo, parece promissora: até pouco tempo lá havia mais de 100 homicídios para cada 100.000 habitantes; hoje esse número reduziu drasticamente − em mais da metade − depois que se implantou o plano piloto da “polícia comunitária”).

Unificar as polícias para que elas continuem fazendo o que fazem (ainda que com um pouco mais de competência e de eficiência) pouco contribui para a radical mudança que se deveria concretizar. As nossas duas polícias, pertencendo ambas ao modelo “burocrático” clássico (que nasceu no final do século XIX), contam com limitações intransponíveis (que muito contribuem para a sua falta de eficiência). São elas:

(a) limitadíssimo acesso às informações sobre o crime (a população pouco contribui; ela não confia, em geral, no policial; este, por sua vez, a vê como fonte de problema; particularmente as classes baixas são vistas como mananciais de delitos; “gente de classe media ou alta não precisa cometer crime” −afirma-se−; hoje já são poucos os delitos comunicados (se comparados com o total dos que foram cometidos); em quase todos os países, 80% dos delitos são noticiados pelas vítimas (Bottomley e Coleman, 1981, citados por Diego Torrente, Desviación y delito, Madrid: Alianza Ed., 2001, p. 239) ; se elas não fazem nada ou não contribuem, a polícia fica inerte (praticamente); do total dos crimes comunicados a polícia investiga de 10 a 15%; no final, menos de 2% são condenados;

(b) o método de trabalho das duas polícias são ineficazes e muito parecidos (embora uma seja judiciária e outra ostensiva): são polícias reativas (atuam depois do crime) que agem basicamente sob patrulhamento seletivo (e muitas vezes discriminatório). Muitos crimes que a polícia descobre são frutos desse patrulhamento. Logo, se (só) patrulham as vias públicas, (só) encontram os crimes típicos das pessoas que vivem nas vias públicas. Isso é o que sempre ocorreu.

E por que a polícia apura poucos crimes das classes sociais médias ou altas? Porque patrulham muito pouco os locais ocupados por elas. Se a polícia patrulhasse os gabinetes ministeriais, o congresso nacional, escritórios, empresas ou suas próprias instituições, as igrejas, os fóruns etc. certamente os criminosos surpreendidos não seriam só os da classe baixa.

Uma polícia democrática e independente, que não atue discriminatoriamente como hoje e que volte sua atenção para a comunidade, fazendo com ela uma produtiva parceria no sentido de se evitar o crime, é muito mais que a unificação em debate neste momento no nosso congresso nacional. Unificar duas polícias burocráticas para que continuem atuando como atuam (reativamente) pouco ou nada descortina nesse infinito horizonte.

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