Fúria legislativa

Professor discute excesso de normas jurídicas no país

Autor

15 de abril de 2002, 11h55

Definitivamente estão sendo sepultados todos os mitos (de Rousseau) que procuravam (no século XIX) dar credibilidade às leis (a lei é expressão da vontade geral, o legislador legisla com justiça e só atende os interesses gerais etc…).

Temos em vigor hoje no nosso país cerca de 28 mil normas jurídicas. Mais de 10 mil são leis ordinárias. Milhares de medidas provisórias. A fúria legislativa é incessante: desde a promulgação da Constituição Federal (5/10/88) até 28/2/02 foram editadas (nos três níveis da Federação: Federal, Estadual e Municipal) 1.787.248 normas (incluindo-se emendas constitucionais, leis, medidas provisórias, decretos e normas complementares etc.).

Só no âmbito federal tivemos (até 28/2/02): 6 ementas de revisão, 35 emendas constitucionais, 2 leis delegadas, 55 leis complementares, 2.738 leis ordinárias, 653 medidas provisórias, 5.491 medidas reeditadas, 7.181 decretos e 78.422 normas complementares (portarias, instruções, atos normativos, ordens de serviço etc.) (cf. levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, Curitiba, in O Estado de S. Paulo de 14/4/02, p. A12).

Acabou, há muito tempo, a sábia lentidão do legislador (que demorava para fazer uma lei, para que ela fosse bem feita). La sage lenteur foi substituída por um turbilhão de leis mal elaboradas, retóricas, demagógicas, desconexas e puramente simbólicas (só são aprovadas para enganar a população). O caos normativo a que chegamos não tem nada de similar na nossa História.

Pior é que, nesta era da descodificação, as leis vão sendo “fabricadas” diuturnamente (dessa linha de produção estão saindo 41 normas a cada dia) e nem sequer codificadas são. São leis esparsas (especiais), que estão se amontoando sem nenhuma organização. Há tempos (nós, professores críticos) estamos denunciando esse descalabro no nosso país e cada vez mais nos estão dando razão.

Terrível é constatar que esse desastre está se transformando em hecatombe em virtude da mentalidade positivista legalista (a lei é a dimensão do Direito e dos direitos) que ainda predomina no ensino jurídico do nosso país assim como na maioria das decisões dos nossos juízes. Desconhecem a dupla normatividade (legal e constitucional) do Estado Constitucional e Democrático de Direito, bem como suas naturais antinomias.

O horror ganha extensão incomensurável quando o professor ou o juiz transmite aos alunos e à população a execrável lição de Kelsen no sentido de que a “justiça” é um ideal irracional; não é acessível ao conhecimento. A justiça está no direito positivo (nas leis vigentes); a teoria pura do Direito o explica tal como ele é (tal como ele é dado pelas leis); pergunte-se pelo Direito real e possível, não pelo Direito justo (…).

Temos que sepultar (para sempre) essas lições de Kelsen. As leis que nossos legisladores não dão (em geral um conjunto de palavras desconexas e ininteligíveis) já não se correspondem ao Direito que nos damos (ou que devemos nos dar). A verdade, o direito e a justiça, como diz Georges Duchén, não podem depender de “algumas bundas majoritárias que se levantam diante de outras que ficaram sentadas”.

Neste princípio de terceiro milênio já não há espaço para o jurista com a mentalidade do segundo. É preciso reconhecer que a sabedoria legislativa acabou, que a coerência das leis desapareceu. As leis que nos dão são fontes de muitas incertezas, confusão e crise. Jurista sábio, nesta era, é o que conhece e aplica os princípios gerais do direito, que é nossa tábua de salvação.

Justiça principiológica é a que aplica os princípios básicos e elementares do Direito. Só assim se consegue alguma coerência na aplicação dessa enxurrada de leis. De multitudo legum, unum ius!. Mais importa a justitia normans que o ius normatum (mais importa a justiça de cada caso concreto que as leis escritas).

A lei, em suma, é o ponto de partida para se descobrir o justo em cada caso, mas nem sempre é o ponto de chegada, que exige bom conhecimento dos valores constitucionais assim como dos princípios gerais do Direito.

Autores

  • Brave

    é mestre em direito penal pela Faculdade de Direito da USP, professor doutor em direito penal pela Universidade Complutense de Madri (Espanha) e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!