A Medida Certa

Assédio sexual: Luiza Eluf mostra que nova lei revelou crime antigo.

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12 de abril de 2002, 22h35

Quando, há cerca de dez anos, iniciou-se no Brasil a discussão sobre a incriminação do assédio sexual, muitos se posicionaram contra, com o argumento de que não havia “assédio sexual” em nosso país.

Essa idéia não passava de conceito importado dos Estados Unidos, onde a moral puritana impedia que as pessoas se comunicassem umas com as outras usando de comportamento informal. Os debates sobre o tema envolviam exemplos de brincadeiras que no Brasil seriam normais e que em outro país poderiam ser consideradas falta de respeito.

Foi difícil superar as resistências dos cegos, dos conservadores, dos preconceituosos, dos criminalistas excessivamente liberais. Como todo o crime em que a grande maioria das vítimas é mulher, sempre havia a insinuação de que a pessoa que sofresse assédio teria culpa pelo ocorrido.

Afinal, a vítima poderia ter provocado a situação…

Fiz parte da primeira Comissão de Reforma da Parte Especial do Código Penal, nomeada pelo então ministro da Justiça, Maurício Corrêa, e quando falava em assédio sexual durante as reuniões era imediatamente contestada por outros membros da ilustre Comissão, que achavam absurdo querer tornar crime uma conduta tão inofensiva ou mesmo inexistente.

O tempo, a voz das mulheres e os meios de comunicação mostraram que o assédio sexual, bem como outros crimes contra a liberdade sexual, eram muito mais comuns do que se podia imaginar nas altas esferas do direito penal. As mulheres, cada vez mais participantes do mercado de trabalho, eram constantemente desrespeitadas por patrões, chefes, colegas. A Justiça do Trabalho passou a ser procurada com freqüência para se pronunciar sobre casos de abordagem sexual impositiva no ambiente de trabalho, que, muitas vezes, terminavam com a demissão das vítimas. Ficou claro que sexo e poder andam juntos; quem está em posição de superioridade às vezes abusa mesmo.

Enfim, em maio de 2001, um projeto de lei da deputada federal Iara Bernardi (PT-SP), incriminando a conduta do assediador e estabelecendo para ele uma pena de detenção de um a dois anos, foi votado e aprovado no Congresso e sancionado com alguns vetos pelo presidente da República. Transformou-se no art. 216-A do Código Penal.

Graças à evolução de nossa sociedade, ficou visível algo que, anteriormente, era percebido por poucas pessoas. A violência sexual praticada em várias instâncias de nossa sociedade estava acobertada por um pretenso liberalismo de costumes, que nada mais era do que uma forma de desrespeito amedrontador e repressor sobre as mulheres e as crianças.

O recente caso do médico pediatra Eugênio Chipkevitch, suspeito de ter abusado sexualmente de cerca de 35 pacientes em seu consultório, é um exemplo importante do risco de impunidade que uma legislação ultrapassada pode significar.

É verdade que, no caso do médico, não se tratou exatamente de assédio sexual, mas de conduta mais grave, tendo em vista relatos de que ele sedava os pacientes adolescentes ou crianças e depois praticava atos libidinosos com eles, inclusive o sexo anal.

Em nosso Código, essa conduta é classificada como “atentado violento ao pudor”, punido com reclusão de seis a dez anos. No entanto, haverá casos em que a conduta do agente poderá ficar restrita a insinuações, ameaças, tentativas de toque, configurando o assédio sexual. Felizmente, já se pode punir o comportamento do agressor também nessa fase, evitando-se, muitas vezes, que o desrespeito evolua para sua forma mais grave: o estupro ou o atentado violento ao pudor.

Outros fatos recentemente trazidos ao conhecimento público pelos meios de comunicação são as práticas pedófilas por parte de padres católicos. As denúncias foram tantas e tão graves, envolvendo vários níveis na hierarquia da Igreja em todo o mundo, que a revista Time de 01/04/2002, em matéria de capa, pergunta Can the Catholic Church save itself? (Pode a igreja Católica salvar-se?).

A indagação tem total cabimento porque, além dos numerosos casos de abusos cometidos contra crianças e adolescentes, na maioria do sexo masculino, a reação da Igreja tem sido tentar esconder os fatos da opinião pública.

A conclusão a que se chega é de que a hipocrisia não serve a ninguém, apenas evita que as medidas certas sejam tomadas.

Com tantos exemplos de abuso sexual ocorrendo em consultórios, escritórios, empresas, escolas, templos religiosos etc, é importante perceber como o Brasil andou no caminho certo ao incriminar o assédio sexual.

Ficou provado que ele existe há muito tempo, só não estava sendo punido.

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    é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

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