Discurso de posse

Veja a íntegra do discurso de posse do novo presidente do STJ

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3 de abril de 2002, 15h42

O Superior Tribunal de Justiça ainda não está nos trilhos. A afirmação é do novo presidente do STJ, ministro Nilson Naves. Para o ministro, as questões infraconstitucionais devem ser decididas definitivamente pelo STJ, de modo que “nasçam, desenvolvam-se e morram no Tribunal”.

Nilson Naves defendeu, ainda, serem necessários instrumentos para que o STJ não fique julgando “bagatelas, ninharias”, tais como discutir valor de aluguel. Ele afirma que pretende buscar a solução em conversações com o Senado, a Câmara e com o Poder Executivo.

Veja a íntegra do discurso de posse de Nilson Naves

Ultimamente ando contemplativo e flertando um pouco mais com as eternas virtudes e os perenes valores fundamentais, por isso, quando me sentei para escrever estas breves e oportunas palavras de encerramento de tão inesquecível cerimônia, haveria de primeiro me lembrar, até porque há tempos andam comigo, das idéias, dos símbolos e das preocupações de ontem, de agora, mais que nunca, e de todo o sempre, que vigem, valha-me Sófocles, desde os tempos mais remotos, sem que se saiba quando surgiram, haveria de me questionar acerca das coisas do dia-a-dia do juiz, indagando-me, de imediato, da justiça, inscrita entre as virtudes cardeais e os valores supremos e universais da alma humana e do Estado.

Idéias e saberes, categorias e símbolos que inquietaram o homem antigo e ainda instigam o homem moderno foram pensamentos e conceitos perturbadores de espíritos, mas foram dignos de bons combates – a fé e a esperança, por exemplo, constantes preocupações de Paulo, a verdade, a prudência e a justiça, que haveriam, antes, de se converter em tema central de toda a filosofia de Platão -, daí idéias ao redor da verdade e da justiça haveriam de se fazer tão recorrentes a ponto de Kelsen, dedicando-lhes páginas e páginas, dizer que questão nenhuma foi tão passionalmente discutida no curso da História e que pela justiça – eterna questão da humanidade – foram derramados lágrimas amargas e muito sangue precioso.

Se a imagem da justiça e a preocupação com a verdade têm sido assim desde tempos imemoriais, não pecaria eu se afirmasse que foi a de julgar, entre as tradicionais funções do Estado, a função que surgiu em primeiro lugar. Antes mesmo da existência de um órgão capaz de executar eventuais preceitos e administrar eventuais negócios públicos, já havia indícios da arte e do engenho de julgar, diante disso, deveras inconcebível uma sociedade sem juízes, embora, sem leis, seja possível a sua existência, porquanto, não as havendo, em todo o tempo fora admitido sentenciar, valendo-se de outros elementos como os princípios gerais e os costumes.

Quando a História registrou as funções de administrar e de julgar, confundindo-se ambas em únicas e mesmas mãos, a de julgar, relevante e prestigiosa, quase divina, era a função desempenhada com mais presteza e sabedoria, David se fez rei para exercer a justiça, Salomão pediu ao seu Deus discernimento para ouvir e julgar, distinguindo-se, rei e sábio, não pelo ofício de administrar, mas pelo de julgar, exemplar e emblemática se revelaria tempo adentro a sua sentença no caso das mulheres que disputavam a posse de uma criança, era em razão do exercício da justiça que o seu povo lhe demonstrava veneração e tamanho acatamento. Tal aconteceria, antes, na civilização babilônica, quando a consolidação do novo reino dependeu exatamente de um corpo de juízes.

Ora, não é de hoje que as coisas da justiça vigem, tiveram e têm eficácia e validez, são assuntos imemoráveis, vieram primeiro, tanto primeiro vieram que, na ordem de precedência das funções estatais, vieram à frente, e a função de julgar honraria e revelaria a sabedoria dos que a exerceram, então haveria eu, ao me sentar para escrever, de meditar a observação, tendo-a diante de mim, a sábia observação da cozinheira Eulda Ribas de Oliveira, que ilustra o calendário organizado pelo Superior: “Imagine como seria se não existisse a Justiça; seria uma verdadeira miséria para o povo!”

Seria sim, Eulda. Ainda bem que a justiça existe, vigora há muito, embora aquele indignado camponês do fato notável contado por Saramago no último Fórum Social de Porto Alegre tenha feito o sino dobrar a finados pela morte da justiça (Correio Braziliense, 7.2.2002), mas não acredite não, Eulda; apesar da sábia advertência, creiamos que a imagem usada pelo grande escritor português e notável prêmio Nobel tenha sido apenas virtual, foi o impulso de um movimento por uma outra ordem mundial. A justiça foi, desde o passado mais remoto, objeto de profundas reflexões, espantou espíritos, honrou e angustiou, e angustia, nos dias de hoje, corações e mentes como os nossos, de juízes e jurisdicionados, talvez, Eulda, não seja, entre nós, a justiça dos seus anseios, aquele eterno anseio das pessoas por felicidade, não é, confesso-lhe, a dos meus sonhos e, sei de ciência certa, não é a dos desejos do Superior Tribunal de Justiça.


Há esperança de dias melhores, no aguardo de que a projetada reforma do Judiciário resulte em inteira sola nova e não em meia-sola. Não é que propõem, em relação ao Superior, apenas a meia-sola? Veja, Eulda, que o nosso exótico sistema de competências admite quatro graus, por exemplo, para o habeas corpus, mesmo quando nele se discute mero defeito de caráter ordinário do procedimento. No plano das coisas lógicas, tal é admissível? Será que ninguém se dispõe mais a escutar?

Senhoras e Senhores:

Virtude cardeal e valor supremo, exaltada nas filosofias de ontem e de hoje, a justiça foi tão essencial na organização do Estado que precederia às duas outras funções institucionais, por isso, ao comemorá-la como valor universal, haveria eu, nas minhas reflexões, de indagar, após: a quantas anda a Justiça brasileira? e haveria logo, logo de me lembrar das palavras de Campos Salles, de 1890: “De poder subordinado, qual era”, dizia o ministro da Justiça e futuro presidente da República, o Judiciário “transforma-se em poder soberano, (…) a fim de manter o equilíbrio, a regularidade e a própria independência dos outros poderes, assegurando ao mesmo tempo o livre exercício dos direitos do cidadão”. A despeito de ser tido, no Império, como Poder subordinado, não faltaram, entretanto, vozes do porte da de Levi Carneiro, entendendo que foi o Tribunal do Império que não exercitara, com largueza, as suas prerrogativas de Corte política deixando que os outros Poderes dominassem o Judiciário, anulando-o.

Naqueles instantes iniciais da República, eram de fato proclamadas as boas novas – a soberania do Judiciário -, todavia através do tempo a realidade revelar-se-ia diferente. Oriundos de bons pregoeiros, sempre foram cativantes os anúncios formais e expressos do princípio da independência e harmonia – a separação, o equilíbrio, a colaboração -, porém isso se realizou apenas teoricamente, o Judiciário permaneceu o menos independente, não obstante a função judicial seja como a que historicamente primeiro surgira.

Supondo tratar-se, aquela promessa, de soberania total, dali em diante tem-se em vão andado no encalço da prometida transformação, iniludível que do seu pleno reconhecimento é que adviriam condições melhores ao Judiciário, quando assim poderia ele cumprir a contento os seus misteres, essencialmente de proteção às pessoas e à sociedade, assegurando àquelas os bens da vida e afastando desta os males.

Onde anda a lenta soberania?

A Justiça irmana a todos, exercê-la e distribuí-la é que tem sido tarefa assaz espinhosa. Por certo não haverá democracia que valha a pena sem a existência de um Judiciário forte e independente, rápido e eficaz, atuante e prestante, mercê das suas próprias qualidades e sem benefício de quem quer que seja.

Impõe-se, portanto, que se acabe com estranha e maldosa campanha, quando ao Judiciário se negam aqui e ali os indispensáveis recursos financeiros, quando se resiste tenazmente a cumprir decisões após o esgotamento de todos os recursos processuais, quando se abusa do direito de recorrer, o que é feito com intuito manifestamente protelatório, quando aqui e ali, com raposice, se mexe na distribuição das competências.

A quantas anda a nossa Justiça?

O funcionamento do Judiciário desinquieta mais a nós próprios, tanto nos desassossega que tem saído de nós, juízes, uma série de iniciativas, acolhidas algumas, desacolhidas outras, infelizmente, no sentido de aprimorá-lo e em busca mesmo da soberania perdida, não é crível, por conseguinte, debitar-se aos juízes a responsabilidade pelas apregoadas deficiências na administração da Justiça brasileira, entre elas, a indigitada errônea distribuição de competências constitucionais, a carência de recursos financeiros, o formalismo processual, o déficit de juízes, os cargos vagos, a baixa remuneração e a lentidão – esta, ao certo, não é defeito apenas nosso, trata-se do grande mal da justiça em todo o mundo. Segundo relatórios internacionais, a nossa lentidão diria respeito ao número de juízes, abaixo da média do existente nos países mais desenvolvidos.

Note-se que, ao colocarmos nas mãos do Senado Federal as sugestões para a projetada reforma, foi com satisfação que ouvi ao presidente daquela augusta Casa que devemos alterar o texto da Constituição, “mas, Ministro”, dizia-me S. Exª, “o que o Judiciário precisa mesmo é de mais recursos financeiros e de menos recursos processuais”.

Vamos lá, Senador Ramez Tebet, pois essas são também as nossas, digamos, primeiras preocupações. Veja V. Exª que recentemente Estados como São Paulo e Mato Grosso enfrentaram longas greves de servidores do Judiciário, e eis o que há pouco foi aprovado, em reunião dos juízes brasileiros: “O Estado, que deve deter o monopólio da Justiça, tem a obrigação de fornecer os meios suficientes para o bom funcionamento do Poder Judiciário e para a efetividade da atividade jurisdicional.”


Ora, se há defeitos, há perfeições, se há carências, há virtudes e também há, estampadas nos rostos dos juízes brasileiros, vontade teimosa e esperança sem limites, querendo todos e todos esperando que, sem tardança, ocorram as prometidas alterações na estrutura da administração da Justiça, corrigindo-se-lhe os males, suprindo-se-lhe as omissões e retificando-se-lhe os erros e inexatidões. Permitam-me, pois, viver continuamente em esperança, não comungando das vozes que falam em falência do Judiciário.

As deficiências são antigas, dúvida não há. Ao se pensar, com efeito, pela primeira vez, em emendar a Constituição de 1891 para lhe corrigir defeitos da adotada forma republicana de governo, igualmente se cogitou de alterar preceitos relativos à Justiça a fim de livrá-la da morosidade, como constou da mensagem presidencial de Bernardes, de 1925. Alguns males foram removidos e outros muitos não o foram, nas tentativas que se seguiram.

Ora, se os males e os defeitos, entre os quais se destaca a impiedosa morosidade, de tão antigos acabaram tornando-se, na feliz expressão de Xavier de Albuquerque, de 1981, em deficiências crônicas, o Judiciário, conquanto tenha muito caminho a percorrer no intuito de se livrar, de uma vez por todas, das suas próprias deficiências, vem-se aperfeiçoando dia a dia, isso graças ao trabalho de equipes capazes e seminais de abnegadas pessoas espalhadas pelas três funções do Estado. Propostas é que não têm faltado! O que se quer em primeira mão é apressar os passos do processo.

Nós, do Superior, fomos convocados, tempos atrás já o fomos, constantemente o somos, e esperamos de agora em diante não trabalhar embalde, visto que, havendo disposição de nos ouvirem, estaremos dispostos a buscar alternativas e a catar soluções, sem trégua, vejam que, falar, falamos e agimos, vejam que as sugestões do Superior Tribunal para a projetada reforma que há dez anos caminha pelo Congresso Nacional foram saudadas e comemoradas pela imprensa como valiosas. Eis tópico do editorial do jornal “O Estado de S. Paulo” (22.10.2001): “… tornando mais eficiente e mais rápido o trabalho da Justiça brasileira – o que, sem dúvida, haverá de melhorar sua imagem e aumentar a confiança que nela deposita a população.”

“Já era mais que hora de o Superior ter a iniciativa”, escreveu o editorialista, e acrescentou que o Superior tem respaldo constitucional para tanto. Sim, o Superior foi feito órgão representante e órgão convergente das Justiças comuns, verdadeiro estuário da Justiça brasileira e ponto do seu desaguamento, inclusive da Justiça especializada, do Superior hão de advir, podem crer – veja o ilustre professor Joaquim Falcão, da Fundação Getúlio Vargas (Jornal do Brasil, 17.2.2002), que aqui também trabalhamos com os olhos voltados para o jurisdicionado, isto é, “com o foco do cliente” -, hão de advir, sem cessar, propostas e encomendas, sugestões e orações com o escopo de amenizar e riscar das nossas diárias preocupações o que o editorialista denominou “efeitos perversos de um Judiciário lento, congestionado e emperrado”.

De tal porte e de tal maneira é a inquietação do Superior consigo mesmo, de um lado e, de outro, com a Justiça brasileira e com os jurisdicionados ou clientes, que os Ministros desta Casa não perderam tempo, aliás, nunca o perderam; todas as coisas já foram ditas, no entanto ninguém as escuta. Quem é que está à procura do tempo perdido?

Recomendamos, naquelas valiosas sugestões, por exemplo, primeiro, se tracem melhor as competências da instância de superposição, purificando em conseqüência o sistema oriundo dos constituintes de 1987 e 1988, pois é inadmissível não termine toda questão infraconstitucional nos cancelos do Superior; segundo, se evitem os desnecessários, injustificáveis e até popularmente incompreensíveis andamentos dos processos por dois graus ordinários na instância de superposição; terceiro, se substitua o inquérito policial pelo juízo de instrução para crimes que se cometem com sofisticação, como os contra a ordem tributária e o sistema financeiro nacional – eis o juízo de instrução como um apropriado tema de estudos em momento de geral preocupação com a segurança pública -; sou, no particular, de opinião que duvida da eficácia do agravamento das penas; quarto, ao invés do impiedoso e sem esperança precatório, interminável e sem congênere na literatura jurídica mundial, que se adote o título sentencial, emitido pelo juízo da execução e de livre circulação no mercado; seria uma maneira de se realizar a execução um pouco mais no interesse do credor, de se satisfazer o julgado sem tardança.

Será que se não dispõem a nos ouvir?

Há mais, contudo. A mim em todo o tempo pareceu desmedida qualquer restrição à competência do Superior, devendo-se-lhe, outrossim, conferir outros instrumentos e outras ferramentas, já indicados às claras (ações civis públicas, interpretação em tese etc), a fim de que ele sem peias possa eficazmente zelar pela guarda da lei federal, pela autoridade da lei, conquanto se não negue a função construtiva dos juízes. Neste aspecto político-institucional, até que ultimamente fomos ouvidos. É tempo de agradecer à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal: muito obrigado! Quem mais agradece são os jurisdicionados, os clientes.


De outra parte, sempre teve a minha comunhão o sensível aspecto relativo ao controle do Judiciário. Idéia de inspiração francesa, a ela me vinculei desde os originários trabalhos constituintes, quando com proveito se criou o Conselho da Justiça Federal, composto de membros deste Tribunal e dos Regionais, cujos poderes, por proposta do Superior, estão sendo agora ampliados, dando-se-lhe os correicionais e o transformando em órgão central do sistema. Acho que todos estamos percebendo quão benquista será a mudança! Quanto ao Conselho Nacional de Justiça, que ora está sendo instituído, é, em si, uma excelente idéia. O ponto de partida de toda a polêmica gira em torno da sua natureza.

Há dois anos, o Ministro Costa Leite, neste impecável salão, preconizava fosse o Conselho integrado tão-só por membros do Poder Judiciário, à semelhança do que aconteceu no âmbito da Justiça Federal. É e sempre foi esse o meu particular pensamento, é o pensamento da Casa, de acordo com as nossas sugestões ao Congresso Nacional.

Além disso, entendo às claras deva o Conselho ter amplos poderes, inclusive o de determinar a perda de cargo. Isso se me afigura de suma importância. Andam, todavia, a mexer tanto e tanto na idéia, querendo saber em demasia a causa do seu mistério, que tenho receio venha o Conselho, roto, baço, estranhamente composto e sem poderes suficientes, a sucumbir em mãos afeitas a outros misteres, qual veio a sucumbir a mosca azul machadiana nas mãos daquele insensato poleá, espantado e tristonho.

Espantados sim mas alegres fomos nós que ficamos com os recentes juizados. “Da entrada da ação”, escreveu o Jornal do Comércio (20.2.2002), “até a decisão final, foram apenas 33 dias”, ora, a lei que instituiu os juizados especiais no âmbito da Justiça Federal, saudável esforço dos três Poderes, saiu das operosas mãos do Superior, de mãos e mentes preocupadas com os usuários ou os clientes da Justiça brasileira. Os juizados são a ousadia que deu certo, não é, presidente Baldino Maciel, da Associação dos Magistrados Brasileiros? (Jornal do Comércio, 29.1.2002). Foi a sulina ousadia de sonhar alto e foi a pioneira lei de 1984, resultante do anteprojeto Cândido Dinamarco, de 1982, de cuja revisão modestamente participei, ao lado de ilustres juristas.

Por essas e outras várias iniciativas como, por exemplo, a que recomendou a maior interiorização da Justiça Federal, o Ministro Costa Leite também teve, entre as paredes do Superior e fora delas, a ousadia de sonhar. Não só de sonhar; ainda mais de realizar. “A vida não basta ser vivida”, poetou o também gaúcho Quintana, “é preciso ser sonhada.” Costa Leite viveu e sonhou a Justiça brasileira, sonhou-a e a viveu tão intensamente, que lhe deu melhor postura e maior dignidade. Cá os seus colegas lhe ficam gratos, acolá toda a magistratura lhe fica gratíssima.

Pelo jeito, parece que nos estamos despedindo: estamos sim, a contragosto, de antemão anunciada a aposentadoria. Dela não farei crônica; não obstante quisesse escrevê-la para lhe dar desfecho diferente, limito-me a registrar que a magistratura brasileira sentirá saudade do juiz Costa Leite, e o Superior Tribunal, muito mais.

Gaúchos e mineiros sempre foram bons amigos. No seu discurso de posse, V. Exª, Ministro Costa Leite, referindo-se a mim, lembrou passagem de João Neves, e eu vou recordar Guimarães Rosa. Foram eles tão amigos, que Neves aludia a Guimarães como a sua consciência mineira. Repare, Ministro, que o mineiro também iria suceder ao gaúcho. Nas cerimônias da sua recepção na Academia Brasileira de Letras, disse Guimarães Rosa, no seu discurso, que João Neves, “Até ao final, montou guarda”. Relendo ambos, então me lembrei de Weber, falando de si próprio: “Era o que havia para fazer – e fiz.”

Tentando traduzir os sentimentos dos seus colegas, creio, Ministro Costa Leite, que posso fazer uso dos aludidos motes, porque, até o final, V. Exª também montou guarda, e era o que havia para fazer, e V. Exª o fez. Seja feliz e leve consigo o reconhecimento do seu Superior Tribunal, e aqui nos quedamos com as sentidas saudades do magistrado exemplar.

Senhores e Senhoras:

Nesta agradável tarde, certamente haveria eu de pensar de mim para comigo, de indagar de mim para os eminentes membros do Congresso Nacional e de mim para as Senhoras e Senhores a propósito da criação e da alta missão constitucional do Superior Tribunal de Justiça.

Instalado no outono de 1989, receberia o Superior, naquele ano, 6.103 processos e julgaria 3.711. Ao final de 2001, quando completava treze anos de vida trabalhosa e útil, profícua e glamourosa, mágica e judiciosa, havia recebido 848.671 feitos. Diante de tantos processos, por que não haveríamos, nestas salas e auditórios niemeyerianos, onde o homem, conforme o fragmento de Protágoras, é a medida de todas as coisas, não haveríamos de padecer de aflições, receosos de que nos falte a tranqüilidade necessária para que o Tribunal continue a desempenhar com presteza e dignidade tudo quanto podem fazer as nossas mãos, tal em principal homenagem àquelas virtudes e àqueles valores fundamentais pelos quais se pode e se deve, colocou Cervantes na boca de Dom Quixote, aventurar a vida?


A estiva e desestiva de prateleiras é instigante questão, contudo, a despeito da inquietação com os processos que chegam às braçadas, existe nestas salas e auditórios preocupação maior, porque diz respeito à razão de ser do Superior. Para o problema dos processos que vêm por atacado, decerto existem soluções, já as apresentamos, mais de uma vez, hoje com mais insistência que ontem, em conseqüência da tramitação da atual proposta, tendente a introduzir modificações na estrutura do Judiciário. Observe-se que acaba de ser aprovada, no Senado, a nossa sugestão de estabelecer em lei os casos de inadmissibilidade do especial.

A questão é outra.

Afinal, por que se criou o Superior Tribunal de Justiça? Eis onde reside a inquietação de maior fôlego, de maior ordem institucional, indagação de todos e objeto de discussões deveras acaloradas. Não foi o Superior criado para zelar, irrecorrivelmente, pela guarda da lei federal, dispondo, assim, de todo o contencioso infraconstitucional, ressalvada a competência da Justiça especializada? Se não foi com esse intento que foi criado, é melhor que tenha cerradas as suas portas – e eu mesmo aqui estaria disposto a entregar as suas chaves a quem de direito -, e que então retornemos ao passado. Ninguém de sã consciência crê que tamanha insânia se infunda em bons corações e boas mentes.

Éramos desde o final de 1889 o que o Judiciário foi até a Constituição de 1988: faltou pouco para um século. Naquele longínquo 15 de novembro, quando Rui Barbosa, já noite adentro, sentava-se para dar forma e esquadro à República, que de repente nascia, depois, quando revia e redigia as normas que viriam a formar a Constituição de 1891, bem como quando o ministro Campos Salles se metia a redigir o decreto de organização da Justiça Federal, fundamentalmente, ambos, federalistas de mão-cheia, tinham em mente as instituições norte-americanas, as quais acabaram nos servindo de total modelo, inclusive na organização do nosso Judiciário, donde a dualidade da Justiça e o Supremo à feição da Suprema Corte de lá, cabendo-lhe, como lhe couberam até o advento da atual Constituição, os dois contenciosos, a fim de garantir entre nós a supremacia da Carta e das leis federais. Sabiamente contam que o extraordinário em sentido lato é um instrumento em prol da Federação.

Essa historiografia sofreria, em termos de competência institucional, visíveis mudanças com a criação do Superior Tribunal. Herdando o contencioso relativo ao recurso extraordinário em sentido restrito, a crença é a de que herdava todo o contencioso infraconstitucional, por isso haveria o Superior de se apresentar aos corações e mentes como órgão de cúpula, não é à toa que tenho aludido à clef de voûte, referência à Corte francesa, como me seria lícito aludir a outras cortes européias. Vale dizer que hoje, em boa verdade, o nosso modelo não é inteiramente o norte-americano, aproximamo-nos do europeu, onde se pontificam as lições memorandas de veneráveis cortes constitucionais. Não é de hoje que se reclama essa posição – a da corte constitucional.

Mesmo no Império, esperou-se que o Tribunal da época, o Supremo Tribunal de Justiça, substituísse o Poder Moderador. Ofício dos mais nobres e missão das mais relevantes. Se quiserem um exemplo dos dias correntes, vejam o que fala a imprensa: “… o tumulto institucional estará criado (conflito entre Poderes). E terá que ser arbitrado pelo STF…” (O Globo, 18.3.2002). De dissertação recentemente apresentada ao curso de mestrado da Faculdade de Direito da UFMG, o jovem e talentoso professor Fernando Gonzaga Jayme tirou esta conclusão: “A implementação de uma reforma do Poder Judiciário, para ser eficaz, deve ter por objetivo a instituição de uma Jurisdição Constitucional, com competência exclusiva para julgar as questões constitucionais…”

Por não se tratar, as constitucionais, implícitas e explícitas, de esperanças vãs, traídas e sem lógica, é que nelas nos louvamos para entender que o atual sistema, delas resultante, novo e diferente, distingue o Superior e, ao fazê-lo, torna-o o Tribunal da convergência, representativo das Justiças comuns, de toda a magistratura brasileira.

É-nos sobremaneira honroso, em nome da Federação, assegurar, conforme a expressiva síntese de Pontes, “a inteireza positiva, a validade, a autoridade e a uniformidade de interpretação (…) das leis federais”, daí algumas normas do art. 102 da Constituição já estarem a merecer uma outra leitura; caso, porém, isso não seja admissível, espera-se com ansiedade o acolhimento, bem que sem tardança, no Congresso Nacional, das nossas propostas, as saudadas e valiosas sugestões do Superior, de forma que o habeas corpus originário só se legitimaria no caso de ofensa direta e clara, imediata e límpida, evidentemente não-reflexa e certamente não-oblíqua a preceito constitucional, o recurso ordinário seria extinto e os pressupostos do recurso especial, do art. 105, ficariam a cargo tão-só do Superior.


Não é lícito se tenha o Superior como Tribunal de passagem (a matéria infraconstitucional deve nascer, desenvolver-se e morrer no Superior). Perdoem-me, mas é um atentado à ordem natural, desperdício de tempo e de inteligência o habeas corpus de quatro graus. Impõe-se, também, se evitem anomalias como a de rejulgamento da questão federal fora das suas salas habituais.

Senhoras e Senhores:

Este é um bom momento para se viver: momento de compromissos, quiçá mais de renovação que de assunção de nova promessa, reiteração de compromisso com a Justiça brasileira e com o Superior, ali e aqui em busca do tempo perdido. Vivendo aturdido pela impressão de que ainda não foi de todo decifrado, o Superior não tem deixado passar as oportunidades de expor o seu enigma e recordar o seu inconformismo. “Todas as coisas já estão ditas”, espalhei-as a folhas tantas e tantas deste pronunciamento, entretanto, recordando um fragmento de Gide, “como ninguém escuta, é preciso recomeçar sempre”.

Tamanho o compromisso, que a labuta diária requererá ajuda. Sei que a terei dos meus amáveis e prestigiosos Colegas, que me elegeram segundo uma norma não-escrita, porém de valor maior que algumas escritas, de tal teor democrático que se recomendaria a sua adoção por todo o Judiciário brasileiro. Quero com eles dividir as tarefas: a de engrandecer ainda mais a magistratura; a de aperfeiçoar o Superior, dando-lhe perfeito corpo e a correspondente alma, de maneira que tenha precisas competências, sem subterfúgios; a de gerir esta Casa e o Conselho da Justiça Federal.

Mais de perto ajudar-me-á o Ministro Edson Vidigal. Aqui nos encontramos desde a instalação do Superior, antes, já nos achávamos, na mesma Seção, sustentando semelhantes combates no extinto Federal de Recursos. Bom amigo e colega talentoso, o maranhense Vidigal, permitam-me o informalismo, não é só um jurista, foi político, foi administrador e volta a sê-lo, foi jornalista, é autor de contos e poemas, nasceu em Caxias, onde também nasceu Gonçalves Dias, que cantou, como ninguém, as coisas brasileiras, encantando-nos: “Minha terra tem palmeiras,/ onde canta o sabiá…”. Você mesmo, caro Vidigal, escreveu que “Há mais segurança nas vontades,/ há mais firmeza nos passos,/ há mais certeza na esperança/ quando se volta a percorrer/ itinerários bem conhecidos”. Não é que estamos convocados a percorrer o itinerário conhecido, o das coisas ditas e que ninguém escuta? Mas, há esperança – certeza na esperança. Esperemos!

Os servidores desta Casa e os do Conselho da Justiça Federal terão em mim um amigo. Espero não lhes faltar e deles espero que não me faltem.

Sou agradecido às saudações que me foram feitas: em nome do Tribunal, pelo Colega Ministro Garcia Vieira, em nome do Ministério Público, pela Doutora Delza Curvello Rocha, Subprocuradora-Geral da República, em nome da Ordem dos Advogados do Brasil, pelo Presidente Rubens Approbato Machado. Foram palavras de encher os olhos, deixando-os lacrimosos, palavras de contentar o coração, deixando-o reconhecido. Muito obrigado!

Significativo momento e momento de recordação, haveria, então, de recordar aqueles tempos de Lavras, as suas palmeiras e eternos ipês, as suas escolas, o Aparecida dos meus estudos, a rua Umbela, o bondinho que ia e vinha pela rua Direita, levando e trazendo consigo as nossas ilusões, sem elas já não se vivia naquela época, são as Minas, de presença suave, de que ninguém se esquece jamais, da liberdade ainda que tardia, oh! Minas Gerais, de mineiros, escreveram Drumond e Sabino, que esperam pela cor da fumaça e não dão passo maior que as pernas, e haveria de me lembrar da Turma de 1966 da centenária Casa de Afonso Pena, entremeada ao Ministério Público paulista, e não poderia deixar de me lembrar dos meus mestres e saudosos amigos Bilac Pinto e Leitão de Abreu, dos também saudosos bom irmão Jair, timoneiro tio Norberto e polemista amigo Corbiniano, e como não haveria de me lembrar do Nicodemos e da Júlia, tudo começou com eles, viveram pouco e tão atarefados, que nem tiveram tempo para sonhar, se o tivessem, saberiam, em sonhos, ele, boiadeiro, que boiadeiro era um rei, laço firme e braço forte, e ela, costureira, que era uma vez uma agulha e era uma vez uma linha, uma e outra iam andando orgulhosas em casa daquela rainha. Em sonhos, rei e rainha. Não foram lidos em Vandré nem em Machado, nem poderiam ter sido. Viveram pouco, sim, todavia o bastante para contar um montão de outras histórias aos seus filhos.

Mágico momento e momento de afirmação, em que recordei o passado sem nostalgia, embora ande triste, falei de males e de carências, mas falei de virtudes; falei de esperança, de tempo perdido e de sua busca, enfim, não deixei de falar de felicidade, tema recorrente e fundamental na história de todo o pensamento: quis, desse modo, falar-lhes da justiça como eterna virtude e perene valor fundamental e haveria agora de trazer à memória a imortal lição de Rui, a que aludia Lima Sobrinho em 1981, logo após a atitude de protesto do talentoso presidente da Ordem dos Advogados, o hoje senador Bernardo Cabral, a de que o papel da justiça é maior que o da própria legislação, ora, se a lei é justa, os juízes manterão a sua justiça, se injusta, corrigir-lhe-ão o grave defeito, de nada aproveitam leis, não existindo quem as ampare contra abusos; “e o amparo sobre todos essencial é o de uma justiça tão alta no seu poder, quanto na sua missão. ‘Aí temos as leis’, dizia o Florentino. ‘Mas quem lhes há de ter mão? Ninguém'”.

Quis falar-lhes da nossa Justiça e da sua crise, da sua crise, mas da esperança de reparo, e haveria agora de recordar o que escreveu o presidente Luís Felipe Salomão, isto é, da atuação dos juízes, cuja imagem cumpre defendermos, depende a garantia de um dos pilares do regime democrático. Quis falar-lhes deste Tribunal, do seu papel e do seu relevante trabalho, e por que não do desassossego com o seu próprio destino? Saibam que estamos atentos e vigilantes, procurando garantir a pureza do Estado democrático de direito.

A grandeza do Superior vem sendo reconhecida pelo uso das ferramentas institucionais de que dispõe, poucas, aguardamos por outras, a fim de assegurar bens e evitar males, inclusive os que atingem à imagem da própria Justiça. Se não fui feliz, perdoem-me! Se entrei em rota de colisão com convicções alheias, não me levem a mal. O que não me seria lícito era trair as minhas próprias convicções. A esperança é a de que as palavras serviram de alerta, que não seja preciso recomeçar sempre, já que falamos desde sempre.

Este bom momento para se viver, significativo momento e momento de recordação, mágico momento e momento de reafirmação, quero dedicá-lo à tão querida e sempre alegre Adélia e aos nossos filhos Guilherme e Pedro Henrique, grandes amigos – ao Guilherme, criança, quando os filmes estavam sempre nos melhores cinemas, ao Pedro Henrique, criança, quando tudo era para sempre (é pra sempre, pai?) -, na esperança de que continuem assim tão alegres e tão amigos e companheiros como sempre foram.

Sejamos fortes, trabalhemos enquanto temos luz e que sejamos felizes, a felicidade é sobretudo luz!

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