Transferência de poder

Advogado trabalhista critica MP da transcendência

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28 de setembro de 2001, 17h07

Enquanto na Europa duas ditaduras se digladiavam, uma delas, a então União Soviética, começava a reverter a tendência da 2a Guerra Mundial. A já então poderosa democracia da América pronunciava seu êxito final, permitindo antever o avanço de suas idéias liberais e a projeção futura da nação.

Mas num país distante, numa faixa inexpressiva do planeta, seu ditador, que paradoxalmente entrara na guerra em defesa da liberdade, promulgava – também por paradoxo através de decreto – lei a mais democrática das normas de seu “reino”: a CLT – Consolidação das Leis do Trabalho. E por maior contradição, inspirada, em parte, no direito fascista, que era o objetivo final dos exércitos aliados que preparavam a invasão da Europa.

Dizemos em parte porque o Decreto-Lei nº 1o de maio de 1943, revela duas faces que se contrapõem e, por isso refletem a época e a origem de seu texto. Apesar de tais paradoxos e contradições – ou exatamente em razão deles, a CLT serviu ao País, tanto no totalitarismo quanto na democracia, e aos dois pólos da relação trabalhista: empregado e empregador.

Para o Estado e para as empresas foi o canalizador do confronto sócio-industrial que viera até nós trazido pelo sindicalismo anarquista e socialista proveniente de nações européias, em especial Itália e Espanha, e que tanto atormentava a classe dominante, desde a República Velha.

Para os trabalhadores foi a mais democrática das Leis do “reino” de Vargas. Mais porque a lei democrática estende cidadania às pessoas, e quanto maior a abrangência de pessoas, mais democrática é a lei. E em matéria de democracia abrangência é profundidade.

A recepção à nova lei não terá sido das melhores. Lembremo-nos ou imaginemos como era o mundo jurídico nos idos de 1943. Homens sérios, ternos escuros, circunspeção e formalismo eram as regras mais cultura e – muito mais – preconceitos.

De repente, surge a CLT, e nela o parágrafo único do Artigo 850 dizendo que o juiz proporá aos juizes classistas a solução do litígio, e que, somente se estes tiverem votos opostos ele, togado, proferirá o seu, desempatando o feito. Vale dizer que o estado – Juiz será chamado se as partes não encontrassem, por si, solução, o que até aqui todos concordam.

O problema é que, para alcançar-se tão democrático objetivo, foi preciso colocar a representação classista ao nível e à frente do juiz togado, o que uns nunca aceitaram e outros não corresponderam. Foi pena!

Em apertada síntese, a CLT trasladou para o Direito do Trabalho princípios quase sagrados de direito, de há muito inseridos nas leis das denominadas nações civilizadas.

Afinal, de nada valem as garantias do direito de propriedade, do direito adquirido ou do ato jurídico perfeito a quem não é proprietário, não adquiriu direitos nem praticou ato jurídico relevante a ser preservado. Porém, agora, tudo virou custo Brasil…Que pena!

Mas, a legislação consolidada trabalhista tem um outro conteúdo: o totalitário. Nisso a lei obreira é mesmo fascista. Retrata o “estadolatria” do regime, para o qual o Estado é o princípio e o fim da atividade social.

Ao dispor sobre a estrutura dos sindicatos, a CLT é cópia da “Carta del Lavoro”. Seu artigo 524, “ou o AI-5 dos trabalhadores” no dizer do juiz paulista José Arlos Arouca, previa, permitindo, intervenção nas entidades sindicais através do Ministério do Trabalho, com a deposição da Diretoria eleita e nomeação de interventor. Assim, assegurava ao Estado o controle do movimento sindical, pretendendo afastá-lo da ação anarco-sindicalista e socialista, politizada demais para o gosto dos governantes.

Finda a guerra, mudado o mundo e deposto Vargas, seria de esperar-se a alteração radical de nosso modelo de sindicato, que afinal de contas havia sido copiado da legislação dos fascistas e estes haviam sido vencidos, internamente e nos campos de batalha. Ademais suas leis haviam sido revogadas no país de origem, a Itália.

Surpreendentemente, porém isso não ocorreu. Apesar de a Constituição de 1946 ter sido a até então mais democrática de nossas Cartas Políticas, a estrutura sindical subsistiu até a Lei Maior de 1988. Serviu, pois, a dois períodos democráticos de 1946/1964 e 1984/1988, e a duas ditaduras, a de Vargas e dos militares, revelando-se valioso instrumento de controle social, do qual sucessivos governos não se dispuseram abrir mão.

Somente com a Constituição de 1988, que revogou o artigo 524 da CLT, os sindicatos se libertaram do jugo do Estado. Tal dispositivo previa, permitindo, intervenção nas entidades sindicais, através do Ministério Público do Trabalho, com a deposição da diretoria eleita e nomeação do interventor.

Muitas outras leis trabalhistas foram então erigidas a textos constitucionais e hoje, passados quase treze anos, tem-se a impressão que o constituinte de 1988 tinha informações precisas, ou aguçada premunição acerca da onda futura de liberalismo econômico que levaria de roldão as garantias jurídicas, antes apenas consolidadas.

Muitos de nós, lidadores do direito, pensamos, à época, que havia excesso de minudências por parte do constituinte, que poderia levar à estagnação do direito. Porém, agora, assistindo à avalanche de “flexibilizações” (eufemismo de direitos), somos levados a concluir que ainda bem que assim se procedeu, embora até aqui nada tenha detido o ímpeto legiferante e sumulista com que se vêm flexibilizando direitos.

E assim a CLT vai se extinguindo em outro gritante paradoxo. Ela que, fascista, outorgou e consolidou direitos fundamentais, os tem suprimidos por obra de um governo democrático, eleito em oposição a e após longo ciclo totalitário, e capitaneando por um sociólogo com biografia de esquerda.

No terreno legislativo, muitas leis vêm postergando avanços constitucionais, o que fazem com o beneplácito de uma jurisprudência gradativamente afastada dos princípios da Carta Política, preocupada que esta com sua própria viabilidade diante da avalanche dos descontentes que a procuram.

A completar-lhes a obra ai está a Medida Provisória nº 2226 publicada em 4/set/2001 que atribui ao Tribunal Superior do Trabalho o poder de escolher entre os recursos que lhe são dirigidos, aqueles que o Tribunal deve (quer) julgar, após avaliar a relevância (a que a MP dá a denominação esdrúxula de transcendência) da questão, no direito, na economia, na sociologia e na política.

É mais um passo no sentido da transferência do poder da Lei para o Estado, hoje, felizmente, para ser exercido através de uma de suas instituições. Esperamos, todos, que assim continue sendo.

Por essas e outras é que, enquanto a Constituição do Brasil dispõe, em seu artigo 1o, ter a República, por fundamento, entre outros valores, a dignidade da pessoa humana e do trabalho, e apesar do artigo 7o afirmar exemplificativo o quadro de direitos do trabalhador que enuncia, leis e julgados vêm derrotando os pilares básicos da segurança jurídica e econômica dos trabalhadores, como as garantias de jornada, salário e emprego.

Acentua-se a tendência nacional de valorizar mais as portarias do que os grandes princípios. Inverte-se a hierarquia das leis: primeiro a portaria do chefe; depois o decreto; abaixo a lei e por termo a Constituição.

Ela é meramente programática, ou como diria o poeta brasileiro Raul de Leoni: “um adiamento eterno que se espera, numa eterna esperança que se adia“.

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