Ofensa inexistente

Juiz livra Editora Globo de indenizar filha de tenente

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28 de setembro de 2001, 12h38

O juiz Fernando Bueno Maia Giorgi negou indenização por danos morais para a filha do tenente Hugo Reina. A ação contra a Editora Globo foi movida por causa da reportagem publicada na revista Marie Claire sobre a “Turma do Barão”.

A filha do tenente alega que a reportagem atribuiu a prática de crimes de advocacia administrativa e abuso de autoridade ao pai, que já morreu. Mas o pedido não foi aceito pelo juiz.

A reportagem intitulada “Ossos do Barão” relata alguns episódios vividos pelos membros da turma na capital paulista na década de 70. O seu irmão era um dos integrantes da “Turma do Barão”. Entre os fatos narrados na revista, estão histórias de brigas, envolvimento com drogas e sexo.

“A reportagem veiculada pela ré não excedeu os limites do direito de informação. Houve mero relato sobre a turma do barão, sem que a honra do falecido tivesse sido agredida. Não se pode acolher a alegação de que a ré teria imputado ao falecido a prática de crimes de advocacia administrativa e abuso de autoridade”, afirmou o juiz em sua decisão.

A Editora Globo foi defendida pelo advogado Luiz de Camargo Aranha Neto. Em 1999, ele conseguiu extinguir processo por danos morais referente à mesma reportagem. Na época, o filho de Hugo Reina pedia indenização de R$ 200 mil.

Veja a íntegra da decisão

Poder Judiciário

São Paulo

32ª Vara Cível Central da Capital

Processos nº 98.466.491-9 – Vistos.

Cuidam os autos de ação ordinária de indenização ajuizada por Regina Alves Reina em face de Editora Globo S/A.

Alegou que é filha do finado primeiro tenente Hugo Reina que integrou a Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial. Trata-se de pessoa que recebeu vários elogios e medalhas em sua carreira. Ele foi tratado pela ré como um criminoso numa reportagem da revista Marie Claire, em que se lhe atribuiu a prática de crimes de advocacia administrativa e abuso de autoridade.

O pai da autora seria integrante da “gangue do barão”, encarregado de livrar os demais membros da punição criminal. Porém, seu pai nunca participou da “guerra suja” travada contra brasileiros durante o regime militar. Quem lesse a matéria concluiria que o pai da autora seria integrante de um grupo de delinqüentes juvenis envolvidos com drogas e que viviam da prática de crimes.

O finado seria o “garantidor” de todo um cenário de tráfico de drogas, assassinatos, AIDS e brigas. A matéria teria recebido maior destaque que as demais, inclusive pelas técnicas gráficas e cores. Aduziu que foi submetida a uma situação vexatória, pois seu pai foi tratado como um marginal. Haveria, ademais, fotos de drogas junto da imagem do finado Hugo Reina.

Também foi ele promovido a coronel, somente para envolver um oficial de alta patente em fatos escabrosos. Invocou o abuso no direito de informar, bem como o prestígio social como bem a ser tutelado. Teceu considerações sobre a responsabilidade civil subjetiva. Invocou a responsabilidade civil com fulcro no Código do Consumidor. Teceu considerações sobre os danos morais. Bateu-se pela procedência do pedido, com a condenação da ré a pagar indenização por danos morais, com juros compostos e correção monetária desde o evento danoso.

Juntou documentos (fls. 45-65 e fls. 72). Emendou a inicial a fls. 74-75.

Sobreveio a r. sentença de fls. 78-79, indeferindo a inicial, declarada por meio da decisão de fls. 88. A apelação foi provida pelo v. acórdão de fls. 117-119, que determinou o regular prosseguimento do feito.

A ré foi citada e ofereceu contestação (fls. 142-162). Alegou, em preliminar, ilegitimidade ativa. Requereu a denunciação da lide ao jornalista responsável pela matéria. Invocou a direito à liberdade de imprensa. Negou que a reportagem trouxesse uma imagem negativa do finado Hugo Reina.

Limitou-se a expor um grupo de jovens rebeldes, imaturos e despreocupados com seu tempo e seu futuro. A reportagem procurou separar os acontecimentos reais daqueles que seriam pura lenda. A matéria foi publicada por sugestão, inclusive, de alguns dos integrantes da turma.

As informações sobre o pai da autora foram passadas pelo irmão dela, Walter. O fato de o pai da autora ter tirado alguns membros da delegacia não seria desabonador. Aduziu que muitos fatos narrados são notórios. Asseverou que seria necessária a prova cabal dos danos morais. Teceu considerações sobre a fixação de eventual indenização. Bateu-se pela improcedência da ação.

Juntou documentos (fls. 163-224).

Não houve réplica (fls. 226 vº). As partes especificaram provas, e houve audiência de conciliação, em que as partes não se compuseram (fls. 232).

É o relatório. Fundamento e decido.

Passo a proferir sentença desde logo, pois não há necessidade de se produzirem provas em audiência.

A prova oral requerida pelas partes é completamente inútil para o desfecho do feito. Impõe-se seu indeferimento, na forma do artigo 130 do Código de Processo Civil.

Realmente, a prova documental já demonstra que a ré não praticou nenhuma conduta ilícita, bem como que não houve nenhum dano moral. A prova oral requerida pelas partes seria uma completa perda de tempo e recursos, já que em nada alteraria a conclusão do Juízo.

Afasta-se a alegação de carência de ação.

A autora é parte legítima ativa, pois pleiteia indenização por danos que ela própria teria sofrido em razão de supostas ofensas à memória de seu finado pai.

Não há necessidade de o espólio ou todos os herdeiros integrarem o pólo ativo. Não se pleiteia direito que pertencia ao morto; a autora busca a tutela de direito dela própria.

A denunciação da lide ao jornalista fica indeferida. Essa procedência em nada contribuiria para o desfecho do feito. Eventual direito de regresso pode ser pleiteado pelas vias ordinárias. E, até mesmo pela solução dada à causa, a providência é inútil.

Observo que não existe nenhuma relação de consumo na hipótese dos autos, razão pela qual não se cogita da aplicação da Lei no 8.078/90. Realmente. a hipótese não é de responsabilidade pelo fato do produto, mas de responsabilidade civil comum.

O pedido deve ser julgado improcedente. Não houve nenhuma conduta ilícita da editora; ademais, os fatos invocados pela autora não são hábeis a causarem danos morais.

Volto a observar que a prova documental constante dos autos é absolutamente suficiente para a solução da questão. A prova oral pleiteada é de uma inutilidade manifesta, e não traria nenhuma influência no resultado do julgamento.

A reportagem veiculada pela ré não excedeu os limites do direito de informação. Houve mero relato sobre a “turma do barão”, sem que a honra do falecido tivesse sido agredida.

Não se pode acolher a alegação de que a ré teria imputado ao falecido a prática de crimes de advocacia administrativa e abuso de autoridade.

Realmente, o contexto histórico em que os fatos ocorreram era peculiar. O fato de o falecido ter comparecido a delegacias de polícia para resgatar companheiros era, na conjuntura do momento, plenamente legítima.

Ademais, trata-se de atos praticados em defesa de interesses de amigos e familiares. Nada há de ofensivo nessa descrição.

A própria reportagem faz referência expressa a esse momento histórico do país, na parte inicial de seu texto: “O Brasil acaba de saber que seu presidente será outro general, Ernesto Geisel. A ditadura militar faz 10 anos, e a festa está animada” (fls. 96 vº).

Tais fatos – proteção a amigos e parentes em delegacias – não são aptos a causarem danos à reputação do falecido e, por conseqüência, não trazem danos morais à autora.

Veja-se que foi o próprio Waldir, irmão da autora, quem narrou tais fatos: “Uma vez meu pai esmurrou a mesa do delegado. Ele era durão em casa, mas fora nos defendia” (fls. 97 vº).

Realmente, a reportagem faz referências mínimas ao falecido. É nítido o propósito de narrar as supostas tragédias que teriam dizimado a “gangue” que “passou a juventude procurando violência e paixão” (fls. 96 vº).

As referências ao falecido foram feitas pelo filho Waldir Reina. Ele era, segundo o texto, integrante da “gangue do barão”, e forneceu as informações para a reportagem.

Não existe nenhuma referência na reportagem a suposto envolvimento do falecido Hugo Reina com criminosos ou tráfico de drogas.

A reportagem jamais fez nenhuma sugestão nesse sentido. Há referências mínimas ao falecido no corpo do texto, que se resumem aos fatos mencionados a fls. 97 vº.

Como já se observou, influir, como militar, na liberação de amigos e familiares nada tem de ofensivo.

E a referência à Operação Bandeirante também não pode ser considerada ofensiva à memória do falecido. Esse movimento do exército brasileiro inseriu-se num contexto histórico próprio de sua época, e nada tem de negativo. O texto, ademais, não menciona nenhum combate a estudantes alcunhados de subversivos.

A reportagem jamais afirma que o falecido Hugo Reina fosse líder ou integrante da “gangue do barão”. A autora fez tal inferência sem nenhum fundamento.

O que a autora fez foi uma indução, ou seja, procurou transformar singelas referências a seu pai em uma contextualização comprometedora que, como se viu, não existiu. E tais referências foram feitas pelo próprio filho Waldir.

Não há, realmente, como se acolher a alegação de que qualquer leitor associaria o falecido a delinqüentes envolvidos com crimes. Essa alegação não se sustenta: a reportagem faz referências mínimas ao falecido Hugo Reina, sem associá-lo, nem mesmo minimamente, a crimes.

Não tem nenhum fundamento a afirmação de que a matéria teria recebido maior destaque. O fato de o título, na capa, ostentar letras amarelas e mais encorpadas demonstra singela preocupação da editora com o aspecto estético da publicação; não significa preocupação com suposto maior destaque.

Não existiu nenhuma calúnia nem difamação. A autora elencou supostas imputações “caluniosas, difamatórias e injuriantes” a fls. 08-09. Ocorre que, como já amplamente exposto, são referências aos integrantes da turma, e não ao falecido Hugo Reina, citado de forma mínima na matéria.

O mesmo se aplica à seringa que ilustra a matéria. Não há como se associar essa seringa ao pai da autora, pouquíssimo mencionado no texto, e apenas de forma passageira e secundária.

A autora também invoca suposta promoção indevida do falecido primeiro-tenente a coronel, o que seria uma justificativa para a narrativa envolvendo um oficial de alta patente nos acontecimentos.

Em primeiro lugar, o falecido Hugo Reina não foi pela ré “envolvido” nos acontecimentos, conforme já exposto amplamente.

Ademais, essa alteração da patente seria relevante se houvesse atribuição de patente inferior, com o intuito de denegrir a posição do militar. Isso não ocorreu.

A matéria, ao contrário, informa patente mais elevada, o que não ofende a honra do militar.

Como se pode notar, há dois fundamentos para se rejeitar o pedido da autora. Não houve prática de nenhum fato culposo ou doloso pela ré. Ademais, os fatos invocados pela autora não são hábeis a lhe causarem danos morais.

O que houve foi o seguinte: a autora procurou exagerar, de forma desproporcional, as referências mínimas que a reportagem fez a seu pai, tentou contextualizá-las, atribuindo-lhes dimensões inexistentes.

Não houve abuso do direito de informação.

O pedido fica rejeitado, pois.

Julgo IMPROCEDENTE a ação.

Condeno a autora a pagar as custas e despesas processuais, atualizadas, bem como honorários advocatícios arbitrados, conforme o artigo 20 do Código de Processo Civil, em 10 % (dez por cento) do valor atualizado da causa, observado o artigo 12 da Lei nº 1.060/50.

P.R.I.C.

São Paulo, 21 de setembro de 2.001.

Fernando Bueno Maia Giorgi

Juiz de Direito

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