Reincidência

Brasil é processado na OEA pela 3ª vez em 40 dias

Autor

28 de setembro de 2001, 19h42

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA está processando o Brasil pelo assassinato de um trabalhador rural no município de Codó, em 1991, no Maranhão. A denúncia foi feita pela Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) e o Centro de Justiça Global. Este é o terceiro caso que a OEA abre sobre o Maranhão em apenas 40 dias.

Esse tipo de caso é levado ao conhecimento da Organização dos Estados Americanos quando se entende que o poder público local ou nacional compactua ou é complacente com a violência.

Para a SMDH e o Centro de Justiça Global, a morte do trabalhador rural não é um caso isolado de violência no campo, faz parte de um contexto de violações sistemáticas aos direitos humanos no Maranhão.

Segundo as instituições, esse padrão mantém-se através da impunidade vigente nos casos envolvendo violência aos trabalhadores rurais e na falta de medidas preventivas, por parte das autoridades estaduais, quanto à ação armada de pistoleiros e fazendeiros contra os trabalhadores rurais.

No inquérito policial está indicado que o crime foi cometido a mando de um fazendeiro local. Mas, apesar das provas, os acusados não foram punidos. O processo está parado na Justiça do Maranhão.

Em 1991, pistoleiros atiraram contra dois trabalhadores que estavam indo para casa. Eles estavam armados com espingardas cartucheiras. Um deles, o alvo do atentado, morreu no local.

Após receber denúncia do MP em 1997, o juiz da 2ª Vara Criminal da Comarca de Codó, julgou a ação improcedente por falta de provas.

O Maranhão é marcado por um significativo número de conflitos agrários. Em geral ocorrem entre diferentes categorias de trabalhadores rurais (posseiros, pequenos arrendatários, pequenos proprietários, sem-terras) de um lado. Do outro lado estão os grandes proprietários rurais, empresas agropecuárias, madeireiras e sídero-metalúrgicas e empresas de reflorestamento.

Veja a íntegra da petição

DENÚNCIA PERANTE A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

São Luís (Maranhão), Rio de Janeiro e São Paulo

18 de julho de 2001

Sr. Embaixador Jorge Taiana

Secretário Executivo

Comissão Interamericana de Direitos Humanos

1889 F Street, NW

Washington, D.C., EUA 20006

Prezado Sr. Embaixador Taiana:

A Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) e o Centro de Justiça Global vêm através desta denunciar o homicídio do trabalhador rural Francisco de Assis Ferreira, ocorrido no dia 05 de novembro de 1991, na gleba Conceição do Salazar, povoado de Pitoró, Município de Codó, Maranhão. Assim, apresentamos esta petição contra o Estado do Brasil, conforme o disposto nos artigos 44 e 46 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e 23, 28, 32, 33 e 34 do Regulamento da Comissão.

As provas colhidas no inquérito policial indicam que o crime foi cometido por João Felício de Oliveira e Francisco de Sousa Lobão, contratados por Natal José de Sousa, a mando de Jonas da Cruz Rocha. Apesar das provas contundentes da responsabilidade desses acusados no homicídio, hoje – quase dez anos após o crime – o processo encontra-se parado da Justiça do Estado do Maranhão.

Os fatos narrados a seguir constituem violações, por parte do Estado brasileiro, à Declaração Americana dos Direitos Humanos, em particular aos artigos I (direito à vida), e XVIII (direito à justiça), bem como aos direitos assegurados na Convenção Americana sobre Direitos Humanos nos seus arts. 4 (direito à vida), 8 (direitos ao justo processo legal) e 25 (direitos à proteção judicial), em conjunto com o disposto no artigo 1.1. (Obrigação de garantir e respeitar os direitos estabelecidos na convenção).

Diante da gravidade dos fatos e da inoperância da justiça e das autoridades competentes até o momento, os peticionários solicitam, em conformidade com o artigo 48 da Convenção, que a Comissão entenda por bem abrir este caso contra o Estado brasileiro e dar prosseguimento imediato aos trâmites cabíveis. Solicitamos também que a Comissão condene o estado brasileiro e ordene que este proceda imediatamente à administração da justiça e a condenação dos responsáveis, providenciando o devido arbítrio de indenização para as vítimas.

I. Fatos Antecedentes

No Brasil, além do aumento considerável do êxodo rural nos últimos anos, a falta de políticas agrárias tem levado à intensificação do processo de concentração da propriedade da terra. Baseando-se em dados cadastrais do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, estudos apontam que, entre 1995 e 1999, 4,2 milhões de pessoas deixaram o campo. Entre 1992 e 1998, o território dos latifúndios com mais de 2000 hectares foi ampliado em 56 milhões de hectares .

Concomitante a esta situação, vem se agravando o quadro de violência na zona rural, principalmente a partir do ano de 1995. Entre 1992 e 1994, o número de conflito de terra situou-se na média de 376 casos por ano. Entre 1995 e 1999, registrou-se a média anual de 666,8 conflitos, o que equivale a um aumento de 82,2% entre os dois períodos analisados . Este aumento se deve, em boa medida, à falta de apuração, julgamento e condenação na esmagadora maioria dos casos de violência rural dos anos anteriores.


O Estado do Maranhão é marcado por um significativo número de conflitos agrários, que em geral ocorrem entre diferentes categorias de trabalhadores rurais (posseiros, pequenos arrendatários, pequenos proprietários, pescadores, assentados, sem-terras) de um lado, e grupos não camponeses interessados na terra (grandes proprietários rurais, empresas agropecuárias, madeireiras e sídero-metalúrgicas, empresas de reflorestamento), de outro. Dentre as situações verificadas com freqüência, existe o conflito que atinge famílias que detêm, imemorialmente, a posse das terras, onde residem e cultivam, sem qualquer direito a títulos de domínio reconhecido pelo Estado. Nesses casos, os pretensos proprietários buscam expulsá-los por meio de ações de despejo e de reintegração de posse, com emprego de policiais militares e pistoleiros, nas quais registra-se a prática de diferentes atos violentos contra aquelas famílias de trabalhadores rurais (prisões, lesões corporais, homicídios, etc.).

No presente caso, o conflito fundiário ocorreu numa área de 2.000 ha, onde 300 famílias de trabalhadores rurais tentam obter o reconhecimento de sua posse justa e secular frente ao pretenso proprietário, Jonas da Cruz Rocha . Em setembro de 1989, eclodiu o conflito fundiário naquela área, com a expulsão de duas famílias. Em 1990, o fazendeiro sr. Jonas da Cruz ingressou na justiça com Ação de Reintegração de Posse (no. 485/90), objetivando efetuar o despejo judicial dos lavradores dos povoados Pitoró, Resfriado e Precateira, todos situados na gleba Conceição do Salazar. A medida liminar de reintegração, na referida ação, foi indeferida pelo Poder Judiciário da comarca de Codó, por insuficiência de provas apresentadas pelo suposto proprietário. No mesmo ano em que foi negada a liminar, houve o acirramento do conflito tendo o latifundiário Jonas da Cruz se utilizado de milícias privadas para bloquear as estradas de acesso dos trabalhadores às suas roças.

Em 04/10/91, Agripino Lima Rocha, morador do lugar, fez uma grave denúncia ao delegado de Peritoró, município de Coroatá na qual pedia segurança de vida por ter sido ameaçado de morte por Natal José de Sousa, em virtude de ter-se recusado a juntar-se a este para, a serviço de Jonas da Cruz Rocha, assassinar moradores de Pitoró como forma de obrigá-los a desocupar a área em conflito (Anexo 1).

Em virtude da iminência de um possível conflito e temerosas das conseqüências que poderiam advir do acirramento da situação, em 24.10.91, várias entidades da sociedade civil entregaram ao Secretário de Segurança do Estado um documento solicitando medidas preventivas no sentido de desarmar os pistoleiros para evitar mais derramamento de sangue na região (Anexo 1).

Em reportagem do jornal O Estado do Maranhão, de 27.10.91 (dez dias antes do assassinato), com o título “Sociedade dos Direitos Humanos alerta sobre conflito em Codó”, a SMDDH (antiga sigla da entidade peticionária) denunciava o surgimento de um novo conflito na gleba Conceição do Salazar caso o fazendeiro Jonas não desbloqueasse as estradas vicinais que davam acesso à área, cujos moradores vinham sendo vítimas das violências praticadas por jagunços desde 28 de setembro de 1991 (Anexo 2).

Apesar das denúncias e alertas, as autoridades não tomaram as providências necessárias para evitar uma ação violenta por parte do latifundiário.

B. A emboscada

No dia 05 de novembro de 1991, por volta das 11:30 horas da manhã, pistoleiros, mediante emboscada, alvejaram com tiros de espingarda cartucheira os trabalhadores Francisco de Assis Ferreira e Francisco das Chagas Sousa, quando estes voltavam da roça para suas casas. Francisco de Assis, alvo do atentado, levou o primeiro disparo no peito e o segundo tiro na região lombar, morrendo no local. O segundo tiro também atingiu Francisco das Chagas no braço esquerdo .

Em depoimento prestado à policia no dia 07.11.91, a vítima que sobreviveu, sr. Francisco das Chagas, assim relata o momento da atentado:

“QUE, por volta das 11:30 horas ASSIS chamou o declarante para ir almoçar, tendo os dois saído em direção às suas residências, seguidos logo atrás por RIBINHA; QUE, logo na saída da roça, o declarante foi surpreendido com um estopido de espingarda de grosso calibre, que atingiu no peito de ASSIS, tendo este gritado: “Oh meu Deus”; Que, logo em seguida foi efetuado outro disparo que atingiu novamente ASSIS, desta vez nas costas e também o declarante no braço esquerdo” (Anexo 3).

C. As Investigações no Brasil

1. Envolvidos

Segundo as provas colhidas no inquérito policial, instaurado em 06 de novembro de 1991, o crime foi cometido por João Felício de Oliveira e Francisco de Sousa Lobão, contratados por Natal José de Sousa, a mando do fazendeiro Jonas da Cruz Rocha.

A testemunha ocular do crime, José Ribamar Ferreira Morais, afirmou em seu depoimento à polícia, às fls. 22 e 85 do inquérito policial e também no auto de reconhecimento , reconhecer João Felício de Oliveira, vulgo “João do Boi”, como um dos autores do assassinato porque, ao ouvir os tiros, foi para o local, e este ainda se encontrava com a arma do crime nas mãos, uma espingarda, tempo em que olhava para o corpo da vítima.


A testemunha Maria José Arruda declarou em seu depoimento no dia 07.11.91, às fls.34, do Inquérito Policial (Anexo 3) , que logo após ouvir dois disparos de arma de fogo observou João Felício de Oliveira e Francisco de Sousa Lobão, cada um armado com espingarda cartucheira, vindo correndo do local onde se deu o crime. Disse ainda o seguinte:

Perguntado pela autoridade se existe alguém interessado na morte dos moradores de Pitoró, respondeu afirmativamente, apontando o nome do fazendeiro Jonas da Cruz Rocha. Perguntado em que se baseia para fazer tal acusação, respondeu que no mês passado, não sabendo precisar a data, quando encontrava-se em uma praça na cidade de Codó, ouviu uma conversa em que Jonas falou que pegaria os “bandidos” do povoado Pitoró, citando os nomes de Assis, Marizete, Otávio, Luciano (filho de Assis) e Neca.

Em outra oportunidade a referida testemunha presenciou uma conversa no povoado Independência, quando Francisco de Sousa Lobão, vulgo “Corda” declarou que estava recebendo Cr$ 5.000,00 (Cinco mil cruzeiros), por mês de Jonas Rocha para fazer aquele SERVIÇO (fls.34, Inquérito Policial, Anexo 3).

Já a testemunha Francisca de Antônia Sales, disse em seu depoimento que:

“tem conhecimento de que a vítima Assis vinha sofrendo várias ameaças de morte por parte do fazendeiro JONAS ROCHA….Que, diante das evidências das evidências e das constantes ameaças que vinha sofrendo o Assis aponta o fazendeiro JONAS ROCHA como mandante do crime que lhe tirou a vida, tendo como principal comparsa o elemento conhecido como Natal”. (fls.36, Inquérito Policial, Anexo 3)

2. Primeiras Medidas

Na data do assassinato, 05.11.91, o delegado da investigação nomeou dois peritos para realizar o exame cadavérico. No mesmo dia o laudo foi realizado, e segundo este, Francisco de Assis fora assassinado com tiros de espingarda cartucheira . No dia seguinte, 06.11.91, em virtude do assassinato, deslocou-se para a área uma comitiva de diversas entidades, advogados, deputados, que foi acompanhada de agentes da polícia civil e do delegado nomeado para o caso. Neste dia, na estrada que dava acesso à área do crime, no povoado Bacuri, foram presos em flagrante quatro suspeitos que se encontravam fortemente armados. Assim, juntamente como os suspeitos, foram apreendidas várias espingardas de cal. 12 e 20, as quais poderiam ter sido utilizadas na prática do crime .

A partir do auto de prisão em flagrante, instalou-se o inquérito policial. Em despacho de 08.11.91, considerando-se os fortes indícios de envolvimento sobre a pessoa do sr. Jonas da Cruz Rocha, o delegado resolve indiciá-lo.

O fazendeiro Jonas da Cruz Rocha foi interrogado pelo Delegado de Polícia em 14.11.91. Em seu depoimento, Jonas limitou-se a dizer – quando perguntado sobre suas ligações com o crime e onde estava quando ocorreu o fato – que nada tinha a declarar. No mesmo dia, em relatório do inquérito policial, o delegado Júlio César Amaral afirma estar convencido de que o crime foi cometido sob encomenda de Jonas da Cruz Rocha, em decorrência dos depoimentos colhidos , da apreensão das armas, e da grave denúncia de Agripino Lima Rocha, feita em 04/10/91, ao delegado de Peritoró, na qual pedia segurança de vida por ter sido ameaçado de morte pelo indiciado Natal, em virtude de ter-se recusado a juntar-se a este para, a serviço de Jonas da Cruz Rocha, assassinar moradores de Pitoró como forma de obrigá-los a desocupar a área em conflito . Ainda assim a investigação policial omitiu-se em realizar perícias fundamentais para precisar os autores do crime, como o exame de balística, exame do local do crime.

Os autos foram encaminhados ao Ministério Público, e este, em 23.11.91, considerando imprestável o exame de corpo de delito que havia sido realizado por pessoas não especialistas , requereu diligências para, entre outras coisas, suprir a falta de exame pericial. Somente em 10 de novembro de 1992 (ou seja: passado quase um ano), os autos retornaram ao Ministério Público sem que as diligências tivessem sido cumpridas, ocasião em que o promotor renova aquele pedido.

Em 30.03.93 foram ouvidos as duas pessoas nomeadas com peritos e que fizeram o exame cadavérico de Francisco de Assis, os quais não souberam informar sobre a quantidade de tiros efetuados e a extensão exata das lesões sofridas .

Em 04.08.93, o representante do Ministério Público oficiou ao juiz da comarca de Codó, informando que faltava a requisição das testemunhas para que estas especificassem a quantidade de tiros que foram desferidas contra a vítima, local da entrada e saída dos projéteis, calibre da arma que causou a lesão, tudo isso para suprir a falta de exame pericial . Em 12 de julho de 1994, depuseram novamente Francisco das Chagas Sousa, José Ribamar Ferreira Morais e Maria e José Arruda, que reafirmaram o que já haviam dito nos autos quanto à autoria e envolvidos no crime , sendo que José Ribamar Morais confirmou ter ouvido dois tiros, um de espingarda calibre 12 e outro de espingarda calibre 20.


Todas estas informações estão contidas nos autos de Inquérito Policial, cuja cópia foi juntada a esta petição (Anexo 3).

Finalmente, em 24.11.94, passados 03 anos do crime, o representante do Ministério Público denunciou os indiciados como incursos nos crimes previstos nos art.121, §2º, I e IV (homicídio qualificado) e 288 (formação de quadrilha), ambos do Código Penal Brasileiro. (Anexo 4).

D. A Fase Processual

A denúncia foi recebida no dia 15.11.95, isto é, somente um ano após ter sido proposta a denúncia criminal pelo Ministério Público e passados mais de quatro anos da data do assassinato.

Todos os acusados foram interrogados, apresentando defesa prévia. Durante a instrução criminal foram arroladas cinco testemunhas de acusação e cinco de defesa. Os depoimentos das testemunhas de acusação mantiveram os relatos precisos que apontavam João Felício, Francisco Lobão e Luís Silva como executores dos delitos (Anexo 5) .

Nas alegações finais, o representante do Ministério Público, em 12.12.96, afirmou que a combinação dos depoimentos revelava que os disparos foram efetuados pelos pistoleiros João Felício e Francisco Lobão, os quais mediante paga e de emboscada executaram os delitos, contratados por Natal José, a mando de Jonas da Cruz (Anexo 6).

Assim, afirma textualmente o promotor, nas alegações finais, às fls. 169-172 (Anexo 6):

” o réu Jonas da Cruz Rocha, visando ao fim dos conflitos por via oblíqua, associou-se ao réu Natal José de Sousa que intermediou a contratação de João F. de Oliveira, vulgo “J Boi; Francisco de Sousa L e Luis Silva F., vulgo Walter, os quais de emboscada no dia, local e horário já conhecidos dispararam tiros de espingarda que ceifaram a vida de Francisco de A. Ferreira e lesionaram a integridade física de Francisco das C. Sousa”.

Em outra parte das alegações finais o representante do Ministério Público ainda ressaltou o caráter de liderança da Francisco de Assis, do qual decorreria o interesse do sr. Jonas na morte da vítima:

“Cumpre ressaltar que a vítima Francisco de Assis Ferreira era um líder comunitário, influente na região em que vivia e parte passiva na Ação de reintegração de posse movida pelo réu Jonas Rocha, conforme certidão de fls. 06. Aliás, referido réu não conseguiu provar seu desinteresse na morte da vítima, seu desconhecimento em relação ao demais réu e, portanto, sua inocência. Ao contrário, os indícios depõem em seu desfavor”. (Anexo 6)

E. A impronúncia e o arquivamento

Tendo recebido a denúncia, em novembro de 1997, o Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal da Comarca de Codó (MA), julgou improcedente a denúncia do Ministério Público por falta de provas, deixando de pronunciar (a pronúncia significa o encaminhamento dos indiciados para julgamento no Tribunal do Júri) os acusados e arquivando o processo após transitado em julgado da sentença (Anexo 7).

Ocorre que o assistente de acusação não foi citado de tal decisão , razão pela qual interpôs recurso em sentido estrito (Anexo 8) ao Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, em 30 de maio de 2000. Até o presente momento o recurso não foi julgado pelo Tribunal.

II. ADMISSIBILIDADE DO PEDIDO

A Comissão é competente para conhecer o presente caso, conforme os artigos 33, (alínea a) e artigo 41, alínea f) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, aprovada em San José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969 e ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992. Embora os fatos narrados tenham ocorrido em 05 de novembro de 1991, portanto antes de o Brasil ter ratificado a Convenção, o referido Estado não se exime da responsabilidade pelos atos violatórios dos direitos humanos ocorridos antes da ratificação, pois os direitos garantidos pela Declaração são de caráter vinculante. Isto se reforça, tendo em vista o disposto no art. 23, do novo Regulamento da Comissão.

Conforme explicado recentemente pela Comissão, no caso Guerrilha do Araguaia, todos os Estados membros da Organização dos Estados Americanos estão sujeitos à jurisdição da Comissão e que, nos termos do artigo 20 de seu Estatuto, esta deverá examinar as comunicações que tratem de presumidas violações da Declaração Americana. Portanto a Comissão tem jurisdição ratione temporis para determinar se no período anterior a 25 de setembro de 1992, data da retificação da Convenção pelo Estado brasileiro, houve violação da Declaração Americana .

A. Esgotamentos dos recursos internos

A presente petição é admissível apesar de não se haver esgotado previamente os recursos jurisdicionais internos, por verificar-se uma demora injustificada na condução do inquérito policial bem como na fase processual, o que configura a exceção prevista no artigo 31.2, alínea c) do Regulamento da Comissão. A análise deste ponto será desenvolvida detalhadamente quando da análise do mérito (seção III, A.).

B. Prazo para interpor a petição

Esta petição é apresentada dentro do prazo de 09 anos e 5 meses a partir da data das violações que alegamos, com o processo judicial ainda em andamento, o que faz com que não seja necessário esgotar os procedimentos jurisdicionais internos. Com efeito, o tempo transcorrido deve ser considerado razoável pela Comissão para determinar que se configure a exceção prevista no artigo 32, parágrafo 2º do Regulamento da Comissão. As circunstâncias excepcionais que justificam esta exceção encontram-se detalhadas ao longo deste pedido. Isto posto, solicitamos à Comissão que declare admissível esta petição por ter sido apresentada dentro do prazo regulamentar.

III. DO MÉRITO

A. Análise dos recursos internos

Os peticionários neste caso entendem estar eximidos do requisito de esgotamento dos recursos da jurisdição interna. Isto decorre da análise da apuração dos fatos realizada pelas autoridades, onde existe uma demora injustificada verificada quer na fase indiciária quer na fase processual.

De acordo com a legislação brasileira, o prazo para conclusão do Inquérito Policial é de 30 dias, podendo ser prorrogado por mais 30 dias, desde que autorizado pelo Juiz. No caso em questão, verifica-se que uma demora de mais de 2 anos e nove meses além do prazo legal admitido para conclusão do inquérito. Além disso, o inquérito foi conduzido com uma série de irregularidades, tais como a ausência de perícias imprescindíveis para atestar a autoria do crime: não houve exame de balística nas armas apreendidas, o laudo de exame cadavérico foi considerado imprestável, por ter sido realizado por quem não era especialista. A ausência desses laudos implicou na necessidade de se ouvir mais de uma vez várias testemunhas, fato que contribui com o atraso considerável no andamento do inquérito.

Também na fase processual houve demora excessiva para a sua conclusão. Em regra, para processos criminais desta natureza, a fase de pronúncia deve ser concluída no prazo de 81 dias. O processo relativo ao presente caso demorou cerca de dois anos e meio para ser concluído.

Ineficácia dos recursos internos: violação sistemática aos direitos humanos e impunidade no Maranhão

A morte do trabalhador rural Francisco de Assis não deve ser considerada como um caso isolado de violência no campo, mas como emblemática de um padrão de violação aos direitos humanos estabelecido no Estado do Maranhão. Tal padrão mantém-se através da impunidade vigente nos casos envolvendo violência aos trabalhadores rurais e na falta de medidas preventivas, por parte das autoridades estaduais, quanto à ação armada de pistoleiros e fazendeiros contra os trabalhadores rurais.

Segundo dados do Setor de Documentação da Comissão Pastoral da Terra, em 1995, ocorreram 23 conflitos no campo no Maranhão, envolvendo 11374 pessoas, e ocasionando 03 assassinatos . No ano de 1996, foram registrados 29 conflitos de terra e 04 assassinatos de trabalhadores rurais .

Dados mais recentes permitem concluir que as violações a direitos humanos ligados à questões fundiárias continuam ocorrendo no Estado do Maranhão. Em 1999, foram registrados 16 conflitos, envolvendo 5475 pessoas, 01 assassinato, 01 tentativa de assassinato, 20 ameaças de morte e 02 torturados .

Em sua maioria, os homicídios dolosos contra trabalhadores rurais são praticados por meio de ações previamente planejadas e com a utilização de assassinos profissionais, sendo que muitos desses crimes são levados a efeito mediante emboscada como no caso de Francisco de Assis Ferreira.

B. Análise das Violações dos Direitos Humanos

A responsabilidade que atribuímos ao Estado brasileiro quanto à violência cometida contra os trabalhadores rurais no Estado do Maranhão – que resultou no assassinato de Francisco de Assis – pode ser identificada em dois momentos.

1. Direito à vida (artigo I da Declaração)

Falta de medidas preventivas

O primeiro ponto a ser destacado é a falta de medidas preventivas por parte das autoridades estaduais quanto à ação de pistoleiros contratados pelos fazendeiros locais. De maneira geral, as autoridades, quando avisadas de situações de tensão ou sobre áreas de risco, não tomam medidas efetivas para impedir a ação de jagunços. No caso específico do assassinato de Francisco de Assis, como assinalamos anteriormente, no dias 04.10.91, o senhor Agripino Rocha Lima fez uma grave denúncia ao Delegado de Pitoró, de que estava sendo ameaçado de morte pelo indiciado Natal, em virtude de ter-se recusado a juntar-se a este para, a serviço de Jonas da Cruz Rocha, assassinar moradores de Pitoró com forma de obriga-los a desocupar a área em conflito.

No caso Velásquez Rodríguez, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte) interpretou a obrigação positiva imposta pelo artigo 1.1, afirmando que o Estado possui o dever jurídico de prevenir, de forma razoável, as violações dos direitos humanos.

No caso específico do assassinato de Francisco de Assis, com assinalamos anteriormente, o sr. Agripino Lima Rocha fez uma denúncia, em 04/10/91, ao delegado de Peritoró. Na denúncia relata a situação na gleba:

“…o seu Natal estava fortemente armado junto com mais 50 pistoleiros de seu Jonas Rocha para matar todo povo da comunidade, e se eu não saísse de minha casa eu iria morrer também…”

Outro trecho também ilustra a intenção do fazendeiro quanto aos trabalhadores rurais:

“…o importante para nós é que nós não temos nada a ir matar ninguém para seu Jonas Rocha, como também eu nunca fui homem de brigar com ninguém especialmente com comunidade que não mora em terra minha”.

O sr. Agripino termina a denuncia solicitando proteção:

“Exmo delegado é que lhe pesso [sic] proteção de vida, pois eu não tenho coragem de brigar com ninguém e se tivesse eu não ia ajudar a matar esta comunidade se eles nunca me fizeram mal algum, como nunca vi eles fazendo mal a ninguém.”

Foi entregue também, ao Secretário de Segurança do Maranhão, documento retratando a situação de gleba Conceição do Salazar e a iminência de um conflito armado se estabelecer. Assim o documento relatava as últimas violências contra a comunidade de trabalhadores rurais antes do assassinato do líder camponês:

“Recentemente dez casas foram incendiadas e as famílias que moram na área estão sobressaltadas. Desde o dia 28 de setembro o Sr. Natal mantém pistoleiros em sua casa e proibiu os trabalhadores de utilizarem a estrada vicinal que liga o povoado S. Benedito do Valdemar ao distrito de Independência (…)A situação, enfim, está insuportável, pois os lavradores não podem entrar nem sair da área”. (Anexo 1)

O documento ressalta que “diante dos fatos, as entidades signatárias vêm, solicitar de V.Excia medidas preventivas que visem o desarmamento dos pistoleiros para evitar mais derramamento de sangue”. (Anexo 1).

Além disso, em reportagem do jornal O Estado do Maranhão (o jornal de maior circulação no Estado do Maranhão) de 27.10.91, com o título “Sociedade dos Direitos Humanos alerta sobre conflito em Codó”, a SMDH pedia atenção para o surgimento de um novo conflito na gleba Conceição do Salazar se o fazendeiro Jonas não desbloqueasse as estradas vicinais que dão acesso à área, cujos moradores vem sendo vítimas das violências praticadas por jagunços desde 28 de setembro (Anexo 02). Apesar das denúncias e alertas, as autoridades falharam, se omitiram e não tomaram as medidas necessárias para coibir a violência denunciada, contribuindo para incentivar as ações do latifundiário.

Impunidade

O segundo ponto que destacamos diz respeito à impunidade que gozam os responsáveis por violações contra trabalhadores rurais. É na luta pela terra a área onde a incapacidade da tutela dos estados na punição dos crimes contra os direitos humanos tem sido demonstrada de forma mais clara. Em conflitos que custaram a vida de centenas de trabalhadores rurais no Brasil nas últimas décadas, na esmagadora maioria dos casos, os responsáveis continuam sem sofrer qualquer punição.

Segundo dados da CPT, entre os anos 1988-1999 foram assassinados em todo o Brasil 1.167 trabalhadores rurais, sendo que somente 86 destes casos foram julgados e 7 dos mandantes condenados. Isto evidencia o fato do Estado brasileiro não garantir a aplicação da justiça no campo.

No caso específico do Maranhão, no período compreendido entre 1964-1994, contabilizou-se 274 assassinatos de camponeses e índios em conflitos de terra no estado . O objetivo específico dessas ações violentas consiste em expulsar os camponeses posseiros das terras onde têm morada habitual e trabalho regular.

No período correspondente ao ocorrido (entre 1990 e 1991), verificou-se a morte de 15 trabalhadores rurais, segundo dados da SMDDH.

De acordo com os fatos aqui relatados, entendemos que o Brasil é responsável pela morte do trabalhador rural Francisco de Assis Ferreira por não ter impedido a ação dos jagunços a mando do fazendeiro, havendo recebido aviso prévio do que iria acontecer. O governo do Estado do Maranhão, que sabia da grave situação da Gleba Conceição do Salazar, não tomou as medidas necessárias para impedir a ação brutal de pistoleiros a mando dos latifundiários locais.

O artigo 1.1 da Convenção estabelece a obrigação fundamental dos Estados Partes de respeitar os direitos e liberdades contidas na Convenção e garantir a todas as pessoas sob suas jurisdições o livre e total exercício daqueles direitos e liberdades. Os Estados têm, portanto, uma dupla responsabilidade: uma negativa, não violar os direitos individuais, e uma positiva, garantir o pleno exercício destes direitos.

No caso Velásquez Rodríguez, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte) interpretou a obrigação positiva imposta pelo artigo 1.1, afirmando que o Estado possui o dever jurídico de prevenir, de forma razoável, as violações dos direitos humanos; de investigar com seriedade e com os meios que estiverem a seu alcance as violações que tenham sido cometidas dentro do âmbito de sua jurisdição a fim de identificar os responsáveis; de impor-lhes as sanções pertinentes, e de assegurar à vítima uma adequada reparação .

Neste caso, o governo brasileiro (mais especificamente, as autoridades do Maranhão) falhou tanto no que diz respeito à obrigação de prevenir quanto de investigar o episódio em questão. No entanto, essas falhas fazem parte de uma prática de descaso para com as denúncias encaminhadas pelos grupos que defendem os direitos dos trabalhadores rurais (denúncia encaminhada ao Secretário de Segurança – anexo 01 e denúncia perante a imprensa – anexo 02) fato traduz-se em falta de prevenção e de investigação dos crimes contra trabalhadores rurais.

Neste sentido, entende-se que o governo brasileiro violou o dever de garantir o direito à vida por não haver prevenido e, posteriormente, não haver investigado diligentemente a ação de particulares que ameaçam de modo constante os trabalhadores envolvidos na luta pela terra e pela reforma agrária.

2. Direito às garantias judiciais (artigos 8 e 25 da Convenção)

Os artigos 8 e 25 da Convenção garantem à pessoa o direito de acesso aos recursos judiciais. A jurisprudência da Comissão estabelece que a demora e a falta de empenho nas investigações oficiais sobre homicídios podem constituir violação das garantias judiciais asseguradas na Convenção. Os critérios estabelecidos pela Comissão para determinar a razoabilidade (ou não) da demora são os seguintes: (1) a complexidade do caso; (2) a conduta da parte lesada em relação a sua colaboração no processo; (3) a forma como tramitou-se a etapa de investigação do processo; (4) a atuação das autoridades judiciais.

Este caso demonstra um grau de complexidade limitada, uma vez que trata-se de um homicídio, cometido por acusados, identificados através de diversas testemunhas (critério 1). No que diz respeito ao segundo critério (2), ressalta-se que a demora injustificada neste caso não se deve a nenhuma falta de colaboração na apuração, investigação e julgamento do homicídio pela parte lesada e sim, por causa da falta de diligência das autoridades responsáveis.

Importa destacar que havia uma preocupação prévia da comunidade quanto à situação de temor que viviam, fato que levou aos trabalhadores e as entidades da sociedade civil a comunicarem às autoridades sobre o risco que estavam correndo. Ademais, todas as vezes que foram chamados a depor, os trabalhadores atenderam prontamente às solicitações, comparecendo, seja na Delegacia de Polícia, seja perante o Poder Judiciário.

A demora injustificada na punição dos responsáveis pela morte de Francisco de Assis, e acima de tudo, a condução do inquérito policial e do processo judicial para questões não cruciais à elucidação do crime, além do descaso concedido às provas testemunhais que apontam os autores da morte (critérios 3 e 4), evidenciam uma clara violação das garantias judiciais.

Acresça-se a essas considerações o fato de que a possibilidade de ocorrência de conflito naquela área já havia sido denunciada por entidades da sociedade civil alguns dias antes do assassinato, ocasião em que se solicitou medidas preventivas à Secretaria de Segurança Pública do Estado do Maranhão.

Concluímos assim que, no assassinato do trabalhador rural Francisco de Assis, houve responsabilidade do Estado, tendo em vista que este se eximiu de uma tutela efetiva dos direitos dos trabalhadores rurais frente à ação de pistoleiros e na conivência das autoridades públicas com a condução das investigações e de processos judiciais em casos de violação, marcadas, via de regra, pela superficialidade e ineficiência.

Em suma, os fatos acima relatados constituem violações da Declaração Americana dos Direitos Humanos, notadamente em seus artigos I (direito à vida), XVIII (direito à justiça) bem como dos direitos assegurados na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, nos seus arts. 4 (direito à vida), 8 (direitos ao justo processo legal) e 25 (direitos à proteção judicial), em conjunto com o disposto no artigo 1.1. (Obrigação de garantir e respeitar os direitos estabelecidos na convenção).

IV. Pedido Pelo acima exposto, os peticionários afirmam que o Estado brasileiro violou os preceitos contidos nos artigos da Declaração Americana dos Direitos Humanos e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, referidos na análise logo acima. Em função da gravidade das violações narradas acima, teme-se que as violações permaneçam impunes caso não sejam tomadas as seguintes providências com caráter de urgência: 1. Que sejam iniciados os trâmites formais para abertura deste caso contra o Estado do brasileiro. 2. Que a República Federativa do Brasil seja condenada pelas violações descritas acima. 3. Que ordene o governo brasileiro a punir criminalmente os responsáveis pelo assassinato do trabalhador Francisco de Assis Ferreira. 4. Que ordene ao governo brasileiro pagar indenização aos familiares do sr. Francisco de Assis Ferreira5. Que ordene ao governo brasileiro a tomar medidas eficazes para proteger os direitos dos trabalhadores rurais.

Atenciosamente,

Joisiane Sanches de Oliveira Gamba, SMDH – MA

James Cavallaro / Andressa Caldas, Centro de Justiça Global

Observação:

Solicitamos que todas as comunicações a serem encaminhadas às partes peticionárias sejam dirigidas a:

SOCIEDADE MARANHENSE DE DIREITOS HUMANOS

Dra. Joisiane Sanches de Oliveira Gamba, SMDH – MA

Rua da Saúde nº 243, Centro, São Luís, MA – Brasil

CEP 65010 – 620 Caixa Postal 1094

Fone / Fax: (55-98)231 – 1601

E-mail: [email protected]

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