Infanticídio

OEA Processa Brasil no Caso de Meninos Emasculados do MA

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27 de setembro de 2001, 20h02

O Brasil está sendo processado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA pelo homicídio de Raniê Silva Cruz, de 10 anos – o primeiro da série de 19 assassinatos de meninos no Maranhão.

A denúncia, acatada nesta quinta-feira (27/9), foi feita pelo Centro de Defesa dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes Pe. Marcos Passerine e Centro de Justiça Global.

Raniê foi assassinado em setembro de 1991, em Paço do Lumiar-MA. Seu corpo foi encontrado nas matas de um sítio, encoberto com palhas, mutilado nos órgãos genitais. A polícia chegou até ao filho do proprietário do sítio. No entanto, o inquérito foi arquivado em 2001, após ter ficado sete anos parado. O responsável pelo crime não foi apontado.

Os dezenove crimes apresentam características semelhantes em sua execução. Todas as vítimas eram meninos entre nove e quinze anos, todos moradores de áreas pobres, de ocupação irregular. Os corpos foram todos encontrados em matas próximas.

Dos dezenove casos, 10 encontram-se com inquéritos parados, um desapareceu, três foram arquivados por determinação judicial. Outros três casos estão aguardando julgamento e dois foram julgados. Um julgamento foi anulado e o outro, o acusado foi condenado e logo em seguida conseguiu liberdade condicional.

Veja a petição na íntegra

DENÚNCIA PERANTE A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

São Luís (Maranhão), Rio de Janeiro e São Paulo.

26 de julho de 2001.

Sr. Embaixador Jorge Taiana

Secretário Executivo

Comissão Interamericana de Direitos Humanos

1889 F Street, NW

Washington, D.C., EUA 20006

Por fax: 001-202-458-3992

Prezado Sr. Embaixador Taiana:

O CENTRO DE DEFESA DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES Pe. MARCOS PASSERINI e o Centro de Justiça Global, vêm através desta denunciar o homicídio da criança RANIÊ SILVA CRUZ, 10 anos, entre os dias 17 e 22 de setembro de 1991, nas matas do Rio Paranã, no município de Paço do Lumiar, Estado do Maranhão, Brasil. Assim apresenta-se esta petição contra o ESTADO DO BRASIL, conforme o disposto nos artigos 44 e 46 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e 26 a 33 do Regulamento da Comissão.

As investigações policiais levaram ao indiciamento de MANOEL OVIDIO LEITE JÚNIOR, filho do proprietário do Sítio Paranã, nas proximidades do local onde foi encontrado o corpo escondido sobre montes de palha. O inquérito policial, no entanto, foi arquivado em 26.01.20011[1], após ter ficado parado por sete anos, sem ser apontado o responsável pelo crime.

Este foi o primeiro de uma série de casos de assassinatos, cujas vítimas, todas possuindo entre 09 a 14 anos de idade, tiveram seus órgãos genitais extirpados. Este conjunto de crimes até o ano 2000 somou 19 casos, os quais ficaram conhecidos como CASO DOS MENINOS EMASCULADOS DO MARANHÃO.

Os fatos narrados a seguir constituem violações à Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, em particular aos artigos I (Direito à Vida), VI (Direito à Constituição e Proteção à Família), VII (Direito à Proteção à Maternidade e à Infância), XVIII (Direito à Justiça) bem como aos direitos garantidos nos artigos 1 (Obrigação de Respeitar os Direitos), 4 (Direito à Vida), 8 (Garantias Judiciais), 19 (Direito à Proteção da Criança) e 25 (Direito à Proteção Judicial) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, bem como a Convenção sobre o Direito das Crianças, nos artigos 2(1 e 2), 3(2), 6(1 e 2) e 27(1 e 3).

Diante da gravidade dos fatos e da inoperância da Justiça e das autoridades competentes até o momento, os peticionários solicitam, em conformidade com o artigo 48 da Convenção, que a Comissão entenda por bem abrir este caso contra o ESTADO BRASILEIRO e dar prosseguimento imediato aos trâmites cabíveis. Solicitam, também, que a Comissão condene o Estado Brasileiro e ordene que este proceda imediatamente a administração da Justiça com a reabertura das investigações e a condenação dos responsáveis, providenciando o devido arbitramento de indenização para as vítimas.

I. FATOS

Contextualização.

A. Situação de Abandono de Criança e Adolescente no Maranhão.

O Estado do Maranhão situa-se na região nordeste do Brasil, tem grande extensão de terra e vocação agrícola. Abriga uma população de 5.432.737 habitantes, sendo 2.477.067 com idade de 0 a 17.2[2]

Os índices de desenvolvimento humano3[3] deste Estado são significativamente baixos, notadamente aqueles referentes à população infanto-juvenil: 61,1% das crianças e adolescentes vivem em famílias com renda per capita de até meio salário mínimo; a taxa de mortalidade infantil alcança 54,2%, a evasão no ensino fundamental é de 6.8% e o abandono é de 15,5%, enquanto a taxa de analfabetismo entre 15 a 17 anos é de 8,9%. Em relação ao trabalho infantil, a taxa ultrapassa 35% de crianças e adolescentes entre 05 a 15 anos.


O Maranhão ocupa o 24º lugar, dentre as 27 unidades da federação em relação ao Índice de Desenvolvimento Infantil4[4] (IDI). Este índice analisa fatores sobre saúde, estado nutricional da criança, nível de imunização, disponibilidade de serviços, nível de renda, acesso a água limpa e saneamento dentre outros. Os valores de cada indicador estão normalizados numa escala de 0 a 1, onde 1 corresponde a melhor condição de desenvolvimento infantil e 0 a pior.

B. Criança e Adolescente na Região da Grande São Luís.

A Ilha de São Luís abriga 04 municípios, São Luís (Capital do Estado do Maranhão), Paço do Lumiar, São José de Ribamar e Raposa5[5], sendo que as violações aos direitos humanos, objeto da denúncia ora apresentada, ocorreram nos municípios de São Luís (área rural), São José de Ribamar e Paço do Lumiar, todos limítrofes, totalizando uma população de 926.356 habitantes, com o Índice de Desenvolvimento Infantil de 0,698, 0,576 e 0,696 respectivamente.6[6]

A população de crianças e adolescentes desta região encontra-se privada dos seus direitos básicos, relativos à educação, saúde, moradia, lazer e alimentação, o que os coloca em situação de risco permanente, quer na busca de alimentação ou no mais natural direito da criança – o acesso ao lazer.

Caso dos Meninos Emasculados

Em estudos da peticionária principal, publicados em 1996 e 20007[7], há demonstração do grau elevado de impunidade em relação a delitos cometidos contra esse extrato populacional, inclusive no que toca a crimes sexuais.

Incluindo a vítima referida nesta denúncia, foram dezenove meninos assassinados com mutilações de seus órgãos genitais, tendo como causa mortis, na maioria das vezes, ferimentos causados por golpes de faca e pauladas, dentre outros instrumentos. O conjunto desses crimes ficou conhecido como o “Caso dos Meninos Emasculados do Maranhão”.

Os dezenove crimes ocorridos apresentam características semelhantes em sua execução. Todas as vítimas eram meninos entre 09 e 15 anos de idade. O primeiro crime ocorreu em setembro de 1991 (caso ora denunciado), e os últimos ocorreram em setembro de 20008[8]. Alguns desses meninos estavam inseridos no mercado informal de trabalho, todos são moradores da região entre os municípios da Ilha de São Luís (São José de Ribamar, Paço do Lumiar e São Luís), pertenciam a famílias de baixa renda, residindo em áreas periféricas, de ocupação irregular9[9]. Todos os homicídios foram precedidos de desaparecimento, com a descoberta dos corpos em matas próximas.

A atual situação dos 19 casos, no que concerne à apuração dos fatos e ao julgamento, é a seguinte: 10 casos encontram-se com inquéritos parados nas Delegacias de Polícia, 01 inquérito não foi localizado, 03 inquéritos foram arquivados por determinação judicial, 03 casos estão aguardando julgamento, 02 casos foram julgados, sendo 01 julgamento anulado e o outro teve o acusado condenado e logo em seguida concedida liberdade condicional10[10].

Desaparecimento de Raniê

Raniê da Silva Cruz era uma criança de 10 anos de idade, residente na zona rural da ilha de São Luís, em área de ocupação irregular. Raniê era de família pobre, seu pai era carpinteiro, sua mãe doméstica, e possuía cinco irmãos menores.

O desaparecimento de Raniê Silva Cruz ocorreu no dia 17 de setembro de 1991. Neste dia, Raniê havia saído de casa para buscar alimento na mata (coco de tucum)11[11] e ajudar seu pai na retirada de madeira, não retornando mais à sua residência. Após isso, várias buscas foram realizadas nos dias seguintes com ajuda de moradores da localidade, sem que tivessem êxito.

Nas buscas efetivadas pelos moradores, foi solicitada autorização ao Sr. Manoel Ovídio Júnior – proprietário de área vizinha ao local de residência da vítima – para procurar a criança na Chácara de sua propriedade – denominado Sítio Paranã. Esta autorização foi negada pelo referido proprietário. Inconformada com a negativa, a genitora do menor procurou auxílio junto ao Quartel da Polícia Militar, sendo enviado um destacamento para ajudar nas buscas no dia 19.09.91, inclusive na referida chácara, sem sucesso.

Observa-se que, antes disso, foi registrada ocorrência na Delegacia de Polícia do Conjunto Maiobão no dia 18 de setembro de 1991, sem que houvesse, por parte da Polícia Civil, qualquer manifestação de interesse em auxiliar nas buscas.

Aparecimento do Corpo

O corpo de Raniê foi encontrado no dia 22 de setembro de 1991, 05 dias após o desaparecimento, pelo Sr. Francisco Xavier dos Santos12[12], nas matas vizinhas à Chácara do Sr. Manoel Ovídio Leite – Sítio Paranã. Ele estava encoberto com palhas, mutilado nos órgãos genitais, em estado adiantado de putrefação, com perfurações no abdômen. Próximo ao local onde o corpo foi encontrado, a Polícia recolheu pedaços de papelão com manchas avermelhadas.


5. Investigações

Início da Apuração dos Fatos.

Embora, o desaparecimento da vítima tenha sido comunicado ao Distrito Policial desde 18.09.91, somente foram iniciadas as investigações oficiais em 22.09.91, quando da descoberta do corpo já em estado de putrefação13[13].

Nos casos semelhantes ao de Raniê Silva Cruz, sempre que o desaparecimento da vítima foi comunicado à Autoridade Policial, esta adotou a prática de aguardar, no mínimo 24 horas, antes da realização de qualquer investigação.

O laudo da necropsia não aponta a hora da morte14[14], o que impede afirmar o momento exato em que o crime ocorreu. Constata-se assim que a omissão inicial dos órgãos de segurança implica em falta de prevenção da situação de risco em que se encontram as crianças e adolescentes daquela região.

B. Suspeitos

Conforme os depoimentos das testemunhas ouvidas e o material encontrado no local, bem como a bermuda, com manchas semelhantes a sangue, encontrada debaixo do colchão do veterinário Manoel Ovídio Leite Júnior (posteriormente reconhecida como pertencente ao suspeito), os indícios da autoria do crime recaíram sobre o referido Sr. Manoel Ovídio Leite Júnior, filho do proprietário da Chácara, denominada Sítio Paranã, estrada de São José de Ribamar, Km 9.

Esta chácara, em que se desenvolve o trabalho de mudas de vegetais, é vizinho ao local onde o corpo de Raniê Silva Cruz foi encontrado. Segundo os depoimentos, o suspeito e seu pai mantêm relações de animosidade com os moradores da área de ocupação irregular vizinha, acusando-os de invadirem sua propriedade para retirarem frutas, madeira, palha e mudas de planta.

Fica evidente, pelos depoimentos prestados, que na defesa da sua propriedade, o suspeito e seu genitor têm ameaçado e agredido vários moradores de forma “periculosa e revestida de fúria irascível”15[15], utilizando inclusive armas de fogo e vigilância permanente.

C. Primeiras Medidas

Em 22 de setembro de 1991 foi aberto o Inquérito Policial e solicitado exame médico legal e declaração de testemunhas16[16].

No período de 23 de setembro a 08 de outubro de 1991 foram ouvidas 16 testemunhas, bem como o acusado – Manoel Ovídio Leite Júnior. Dentre as 16 testemunhas ouvidas, 12 abordam o caráter violento do suspeito e algumas relatam que pessoalmente sofreram ameaças por parte do mesmo.

As outras quatro testemunhas eram: os genitores do suspeito – Manoel Ovidio Leite e Conceição de Maria Lobo Braga Leite; um empregado da chácara – Lourival Rosa Silva, e uma comerciante – Ana Maria da Silveira Leite que fornecia produtos para o sítio de propriedade do suspeito. Todas essas, portanto, são pessoas ligadas afetiva e comercialmente ao indiciado. Cumpre destacar que o próprio empregado do principal suspeito – Sr. Lourival Rosa Silva – ao testemunhar, reconheceu a bermuda encontrada ao lado do corpo, como sendo a do seu patrão, afirmou que este possui este caráter violento, autoritário e confirmou que recebia ordens de atirar17[17] – “…Que tinha ordem do patrão para atirar contra aqueles que ingressassem na área….que reconhece , como sendo do filho de patrão, a bermuda, tamanho adulto….que, reconhece seu patrão como pessoa autoritária, que trata asperamente seus empregados…”.

Nos depoimentos foi dito pela testemunha Elizalde de Macedo Escorcio saber da notícia do desaparecimento de outro menor nas alturas do sítio Paraná – “…é mãe de João Delvanes de Macedo Escorcio, que o referido menino encontra-se desaparecido desde o dia 07 de setembro….que a última informação que obteve…afirmou-lhe ter visto o seu filho, ainda no turno da manhã…a altura do sítio Paranã, onde o Sr. Ovidio possui um sítio….”, bem como a Sra. Salete das Graças Silva Santos declara que seu filho foi agredido e forçado a entrar num veículo do suspeito só não sendo conduzido porque a mesma teria chegado a tempo de evitar18[18] – “que em novembro do ano passado, seu filho já mencionado foi detido pelo proprietário da referida chácara, sob alegação de que o menor havia subtraído frutas da propriedade, que …dirigiu-se até a chácara, sendo que encontrou o proprietário já na avenida n 03 do Conjunto Tambaú, segurando seu filho, tentando colocá-lo no interior de um veículo…o senhor MANOEL OVIDIO LEITE, disse que caso encontrasse novamente o menor, em sua propriedade lhe daria um tiro19[19].

Em relação ao Laudo do Exame do local de morte violenta20[20], o Instituto de Criminalística atesta que o crime não foi executado no local onde o corpo foi encontrado. O Laudo de Exame Biológico21[21] em sangue de vestuário, no caso na bermuda, constatam não ser sangue humano as manchas avermelhadas do papelão encontrado no local do crime. Quanto ao Laudo Cadavérico22[22], ficou constatado, como causa mortis, choque hipovolênico por ferida perfuro incisa do órgão intratorácico e de órgão intra-abdominais por arma branca.


Após estas primeiras manifestações no sentido de apuração dos fatos, o Inquérito Policial ficou paralisado injustificadamente por seis anos. Em 1997, o inquérito foi retomado, inquirindo-se testemunhas e intimando-se, por duas vezes, o indiciado para prestar novo depoimento. Como o indiciado encontrava-se em São Luís para o enterro do seu pai, não compareceu, tendo fugido para o Rio de Janeiro, conforme publicaram amplamente os jornais da época. Assim sendo, os autos foram encaminhados à Justiça, especificamente à Comarca de São Luís, tendo então a autoridade policial solicitado a decretação da Prisão Preventiva do indiciado, vez que o mesmo não atendeu ao mandato de intimação para novo depoimento.

O Juízo de Direito de São Luís declinando de sua competência em razão do local do crime encaminha os autos de Inquérito à Comarca de São José de Ribamar, em 1999. O Juiz daquela Comarca indeferiu o pedido de Prisão Preventiva, após ouvir o Promotor Público, alegando falta de substratos fáticos e jurídicos23[23].

D. Arquivamento do Inquérito

Em 30 de maio de 2000, o Promotor de Justiça da Comarca de São José de Ribamar – contrariando o posicionamento de dois outros promotores que efetivamente atuaram no caso (os quais sempre opinaram pela necessidade de novas diligências para apuração dos fatos), manifestou-se pelo arquivamento do Inquérito Policial. A Juíza de Direito acolhe o requerimento do Ministério Público e determina o arquivamento dos autos, no dia 26 de janeiro de 200124[24].

II. ADMISSIBILIDADE DO PEDIDO

A. Competência da Comissão para Conhecer o Caso.

Ratione Materiae

A jurisdição da Comissão em razão da matéria tem como fundamento fatos que constituem violações à Declaração Americana sobre Direitos Humanos e a Convenção Americana, como será exposto adiante.

Ratione Temporis

Embora os fatos descritos tenham ocorrido a partir de 17.09.91 – anteriormente, portanto à ratificação da Convenção Americana pelo Estado Brasileiro – a Comissão já assentou entendimento de que, nos termos do artigo 20, de seu Estatuto, deverá examinar as comunicações que tratem violações à Declaração Americana (Caso Guerrilha do Araguaia, sentença de 06.03.2001), como as descritas pelos artigos I, VI e VII.

“Sin, embargo, todos los Estados miembros de la Organización de los Estados Americanos están sujetos a la jurisdicción de la Comisión que, en los términos del articulo 20 de su Estatuto, deberá examinar las comunicaciones que traten de presuntas violaciones de la Declaración Americana.

Sobre esa base, la Comisión tiene jurisdicción ratione temporis para determinar si en el período anterior al 25 de setiembre de 1992, fecha de ratificación de la Convención por el Estado, hubo violación… de la Declaración Americana.”

Igualmente a Comissão tem jurisdição em razão do tempo em face das violações alegadas dos artigos 1(1), 8 e 25, da Convenção Americana, que tem caráter de violações continuadas.

Ratione Personae

A competência ratione personae é ativa e passivamente bem demonstrada, já que as entidades peticionárias e o denunciado atendem requisitos do artigo 44 da Convenção.

B. Esgotamento dos Recursos Internos.

Exige a Convenção que todos os recursos internos tenham sido esgotados antes de se acionar os mecanismos internacionais dos Direitos Humanos da OEA. Na hipótese, houve uma disposição final do caso, já que o Ministério Público – que tem a exclusividade da Ação Penal em crimes como homicídio25[25]- manifestou-se por seu arquivamento, obtendo decisão judicial de acatamento, sem que possam os peticionários prover a reabertura das investigações e a respectiva responsabilização do autor do homicídio.

Ainda que assim não se entenda, o lapso de seis anos (1991 a 1997) sem que tenham, as autoridades, promovido qualquer ato de investigação no inquérito representa exceção prevista no artigo 32(2)c da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, pelo que a Comissão deve declarar admissível esta petição por ter sido apresentada dentro do prazo regulamentar.

C. Prazo Para Interposição.

A presente petição é admissível porquanto é interposta no prazo de seis meses a partir da data do arquivamento, atendendo o artigo 46(1)(b) da Convenção. A Comissão no caso Gilson Nogueira Carvalho (caso 12.058), afirmou que o arquivamento do caso constitui uma decisão definitiva para a submissão da petição a analise da OEA – “…para que uma petición sea admitida por la Comisión se requerirá que sea apresentada dentro del plazo de seis meses, a partir de la fecha em que el peticionário haya sido notificado de la decisión definitiva. En la circustancia que aqui se trata, la Comisión cpnsidera que el archivamento del caso constituye uma decisión definitiva a los efectos de la fijación de plazo para el sometimiento de la petición.”


D. Não Duplicidade

A presente petição é cabível uma vez que não consta aos peticionários a existência de nenhum procedimento duplicativo perante outro órgão intergovernamental de proteção dos Direitos Humanos.

III. DO MÉRITO

1. Análise dos recursos internos.

As peticionárias entendem estarem esgotados os recursos da jurisdição interna, vez que o Inquérito Policial instaurado em 1991, ficou parado durante 06 anos (1997), quando nomeado um novo Delegado. Este delegado reiniciou a apuração dos fatos, tendo então intimado para re-inquirição várias testemunhas e também o suspeito. Este não compareceu e através do recurso do habeas corpus tentou inicialmente evitar a decretação da prisão preventiva e posteriormente obter o arquivamento do inquérito.

A autoridade judicial indeferiu a decretação da prisão preventiva (08.01.99), atendendo parecer do Ministério Público, fato que obstruiu as apurações. Além disso, em 26 de janeiro de 2001, determinou o arquivamento do inquérito, atendendo, também, manifestação do Ministério Público.

Sendo, no Brasil, a iniciativa da Ação Penal em crimes contra a vida de competência exclusiva do Ministério Público e uma vez que o caso foi arquivado e só pode ser reaberto, conforme a legislação brasileira, ante a constatação de fatos novos – não estando, portanto, os interessados autorizados a reabrir casos arquivados – entendem as peticionárias que os recursos internos foram esgotados.

2.Ineficácia dos recursos internos.

Destaca-se, ainda, que o assassinato de Raniê Silva Cruz não é um fato isolado. Trata-se do primeiro de uma série de 19 meninos mortos e emasculados em 10 anos (1991 a 2000), o que o torna um caso emblemático de descaso do poder público com a proteção às crianças e aos adolescentes oriundos de camadas sociais excluídas. Também fica demonstrada a violação de direitos humanos, na medida em que os crimes ficam impunes e as autorias na obscuridade.26[26]

Cabe ressaltar a morosidade e o descaso na apuração da responsabilidade criminal dos envolvidos, com o extravio de inquéritos ou abertura de inquéritos até 07 anos após o fato criminoso, como a negação da concessão de prisão preventiva do suspeito do caso em epígrafe, quando toda a imprensa noticiava sua fuga.

Não sendo, assim os recursos internos eficazes, houve negligência e descaso na apuração dos fatos e da autoria, senão observe-se:

Comunicadas do desaparecimento da criança no mesmo dia, as autoridades policiais civis se recusaram a participar das buscas e só instauraram o Inquérito Policial quando o corpo foi encontrado por populares, isto é, 05 dias após o desaparecimento.

O laudo cadavérico não indica a data aproximada da morte, o suspeito fica assim à vontade para não apresentar nenhum álibi. Além disso, durante as investigações foi citado o desaparecimento de outra criança nas proximidades do sítio, foi citada a suspeita sobre uma segunda pessoa, sem que tais fatos fossem devidamente averiguada.

O Poder Judiciário e o Ministério Público, além de não tomarem nenhuma iniciativa no sentido de agilizar as investigações, ainda colocam entraves. Quando, seis anos depois, o inquérito foi reaberto e o principal suspeito foi chamado à re-inquirição, este recusou-se a prestar novo depoimento. Por essa razão, a autoridade policial solicitou a prisão preventiva, a qual recebeu parecer contrário do Ministério Público e foi indeferida pela autoridade judicial.

Por fim, em atraso, o Ministério Público, alegando acúmulo de serviço, manifestou-se pelo arquivamento do Inquérito Policial, em 30 de maio de 2000. Em 26.01.2001, sete meses e 26 dias após, a Juíza acolheu a manifestação do Ministério Público, determinando o arquivamento dos Autos. Para tanto, alega que “o período que os autos permaneceram na Delegacia só foi reinquirida uma testemunha, sem ter acrescido provas novas…”, esquecendo que a não reinquirição do indiciado deu-se com a conivência do Poder Judiciário, que não decretou a prisão preventiva, medida que ensejaria maiores dados para instrução criminal.

3. Analise das Violações aos Direitos Humanos.

Direito à Vida (artigo I da Declaração e artigo 4 da Convenção)

? Medidas preventivas.

Os direitos das Crianças e Adolescentes são garantidos na legislação brasileira pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente(ECA), sendo o Estado Brasileiro obrigado a assegurar, “por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”, sendo “dever …do Poder Público assegurar , com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida,…à alimentação, ..ao esporte, ao lazer…” – prioridade que deve ser exercida tanto pela formulação e execução de políticas sociais públicas, como pela destinação de recursos públicos27[27].


Ainda nos dispositivos do ECA está determinado que a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente tem como uma das diretrizes a criação de conselhos de direito a nível nacional, estadual e municipal, bem como a criação de Conselhos Tutelares, criados por leis municipais, para zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e adolescente28[28].

Na região em referência, dos três municípios onde ocorreram os 19 casos de meninos emasculados, dois deles – São José de Ribamar e Paço do Lumiar não possuem até o presente ano os Conselhos Tutelares, previstos em lei. No município de São Luís, Capital do Estado do Maranhão, o Conselho Tutelar, responsável pela área, foi criado e instalado somente em 2000, nove anos após a morte da primeira criança.

Todos estes fatos evidenciam o descaso do Poder Público na proteção dos interesses e direitos das crianças e dos adolescentes, principalmente quando se tratam de crianças de baixa renda. Cumpre destacar que as 19 crianças e adolescentes mortos estavam ou trabalhando para sobreviver, ou buscando um brinquedo, ou procurando alimento para matar a fome, portanto buscando satisfazer necessidades e direitos fundamentais da pessoa humana naquela fase de desenvolvimento.

Por todo os fatos narrados e os dados apresentados, constatamos que o Estado Brasileiro não adotou medidas que salvaguardassem a vida das vítimas, na medida que não foram implementadas políticas publicas capazes de garantir-lhes o sustento e a segurança necessária, levando-as a trabalhar para garantir a sobrevivência, colocando assim em risco a vida das crianças. Tal atitude levou à morte de 19 crianças/adolescentes em dez anos, entre elas a vítima RANIE SILVA CRUZ, caso ora denunciado.

? Impunidade

Outro aspecto que destacamos, trata-se da impunidade de que gozam os responsáveis por violações contra crianças e adolescentes pobres e residentes em áreas de ocupação irregular. Dos 19 crimes cometidos contra os meninos, 10 casos ainda se encontram parados em fase de apuração; 01 inquérito não foi localizado; 03 foram arquivados, 02 foram a julgamento, sendo 01 anulado e o outro o réu foi beneficiado com liberdade condicional, 03 casos aguardam julgamento.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Velásquez Rodriguez interpretou a obrigação positiva imposta pelo artigo 1.1 da Convenção – “O Estado está no dever jurídico de prevenir, razoavelmente, as violações dos direitos humanos, de investigar seriamente com os meios ao seu alcance as violações que tenham sido cometidas dentro do âmbito de sua jurisdição a fim de identificar os responsáveis, de impor-lhes as sanções pertinentes e de assegurar à vítima uma adequada reparação”. (Sentença de 29.07.88, parágrafo 174)

Da data do crime contra a vida de RANIÊ SILVA CRUZ, decorreram 9 anos e 10 meses sem que o Estado Brasileiro efetivamente apurasse o crime. Observe-se que, neste período, o Inquérito Policial ficou parado por longos lapsos de tempo. Quando foi reaberto, em 1998, o principal suspeito se recusou a ser reinquerido e o Estado Brasileiro não foi eficiente no sentido de garantir o seu depoimento, deixando o indiciado evadir-se, para, decorrido um novo lapso de tempo, sentenciar pelo arquivamento do inquérito.

Constatamos, portanto, a falha do Estado Brasileiro tanto na prevenção, proteção e garantia do direito à vida, como, posteriormente, no que diz respeito à obrigação de apurar os fatos, julgar e condenar os responsáveis pelas violações de forma diligente e eficaz.

Direito à Proteção da Família e Direito de Proteção à Infância (artigos VI e VII da Declaração e 17 e 19 da Convenção).

Segundo enunciado na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, artigos VI e VII – reafirmado na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, nos artigos 17 e 19 – o Estado e a Sociedade devem proteger a família e a criança.

Por todo o exposto, constatamos que o Estado Brasileiro falhou, na medida em que não assegurou às crianças e às suas famílias as condições necessárias de proteção, colocando-as em situação de risco, o qual materializou-se com o homicídio das 19 crianças e adolescentes ocorridos entre setembro de 1991 e setembro de 2000.

As peticionárias respaldam seu entendimento nos termos das decisões desta Comissão, a qual tem considerado violação ao artigo 19 da Convenção o fato dos Estados signatários omitirem-se em implementar medidas preventivas e de proteção em favor das crianças e adolescentes, como bem demonstra a decisão no Caso Villagran Morales -” 178. La Comisión alegó en la demanda que Guatemala había violado el artículo 19 de la Convención Americana al omitir tomar medidas adecuadas de prevención y protección en favor de Julio Roberto Caal Sandoval, de 15 años, Jovito Josué Juárez Cifuentes, de 17 años, y Anstraum Aman Villagrán Morales, también de 17 años de edad. 180. A lo anteriormente expuesto se suma, en opinión de la Comisión, el “grave riesgo para el desarrollo e inclusive para la vida […] mism[a]” a que se ven expuestos los “niños de la calle” por su abandono y marginación por la sociedad, situación que “se ve agravada en algunos casos por la exterminación y la tortura de que son objeto menores …” (Caso Villagran Morales y otros – sentença de 19.11.99)


E vai além, como percebe-se no parágrafo – 191, da referida decisão: – “A la luz del artículo 19 de la Convención Americana la Corte debe constatar la especial gravedad que reviste el que pueda atribuirse a un Estado Parte en dicha Convención el cargo de haber aplicado o tolerado en su territorio una práctica sistemática de violencia contra niños en situación de riesgo. Cuando los Estados violan, en esos términos, los derechos de los niños en situación de riesgo, como los “niños de la calle”, los hacen víctimas de una doble agresión. En primer lugar, los Estados no evitan que sean lanzados a la miseria, privándolos así de unas mínimas condiciones de vida digna e impidiéndoles el “pleno y armonioso desarrollo de su personalidad” [33], a pesar de que todo niño tiene derecho a alentar un proyecto de vida que debe ser cuidado y fomentado por los poderes públicos para que se desarrolle en su beneficio y en el de la sociedad a la que pertenece….” (Parágrafo 191 da sentença anterior).

Ressaltamos que o Estado Brasileiro, também assinou, em 26 de janeiro de 1990, a Convenção Sobre os Direitos da Criança, e aprovou pelo Decreto Legislativo 28, de 14.09.90, o depósito de instrumento de ratificação da Convenção junto ao Secretário Geral das Nações Unidas, tendo o documento entrado em vigor no país em 23 de outubro de 1990, através da promulgação via decreto 99.710, de 21.11.90. Nesse sentido, o Estado brasileiro está obrigado a proteger e preservar as condições das crianças brasileiras, a partir da legislação interna, do Sistema Regional de Proteção aos Direitos Humanos e do Sistema Internacional dos Direitos Humanos e não o fez para preservar e garantir a vida a RANIÊ SILVA CRUZ.

Direito à Justiça ou Proteção Judicial (artigo XVIII da Declaração e artigos 8 e 25 da Convenção).

Os artigos 8 e 25 da Convenção garantem à pessoa o direito de acesso aos recursos judiciais e ao devido processo legal de forma que sejam garantidos os direitos fundamentais consagrados constitucionalmente.

A jurisprudência da Corte estabelece que a demora e a falta de empenho nas investigações oficiais sobre homicídios podem constituir violação das garantias judiciais asseguradas na Convenção: “O direito a um processo justo previsto na Convenção fundamenta-se, entre outras razões, na necessidade de evitar demoras indevidas que se traduzam em privação e denegação de justiça em prejuízo de pessoas que invocam a violação de direitos protegidos pela citada Convenção”(Relatório 43/96, Caso 11.411, México, Relatório anual 1996, CIDH).

O Estado Brasileiro falhou duplamente no caso ora denunciado: Primeiro o decurso de prazo, pois passados mais de nove anos e 10 meses desde o ocorrido, não foram eficazmente concluídas as investigações, o que de acordo com o artigo 46(2)c configura demora injustificada. Segundo, o Estado mandou arquivar o processo investigatório, após nove anos e cinco meses da morte de RANIÊ SILVA CRUZ, sem que haja realizado esforços sérios para apurar os fatos, identificar os culpados e responsabilizá-los pelo crime cometido.

Os critérios estabelecidos pela Comissão para determinar a razoabilidade (ou não) da demora são os seguintes: (1) a complexidade do caso; (2) a conduta da parte lesada em relação a sua colaboração no processo; (3) a forma como tramitou-se a etapa de investigação do processo; (4) a atuação das autoridades judiciais.

Considerando-se que o crime cometido é o de homicídio (constituindo uma única figura penal) e que os depoimentos e provas colhidas indicaram um forte suspeito, constata-se que não se trata de um caso complexo, se o Estado Brasileiro tivesse agido com celeridade e eficácia;

Considerando-se que os familiares da vítima sempre se dispuseram a colaborar para a apuração dos fatos, colhendo informações, apresentando testemunhas, denunciando com precisão e pontualidade quaisquer indícios que pudessem auxiliar na apuração dos fatos e identificação da autoria;

Considerando-se ainda que durante a fase de apuração dos fatos, na legislação brasileira denominada Inquérito Policial, observou-se várias falhas: exames periciais foram efetivados meses depois dos objetos encontrados, suspeito recusou-se a prestar depoimento, omissão do Poder Judiciário em fazer garantir o depoimento, autos paralisados durante mais de seis anos e, em razão destes fatos, os autos foram arquivados sem apresentação de denúncia contra o indiciado.

Constata-se, portanto, que o Direito à Justiça e à Proteção Judicial foram violados pelo Estado Brasileiro, de forma que transcorrido mais de 10 anos o homicídio com ocultação de cadáver cometido contra RANIE SILVA CRUZ encontrar-se arquivado sem que tenha havido condenação do culpado, portanto os recursos internos foram ineficazes no sentido de garantir a proteção judicial em favor da garantia de direitos humanos fundamentais.

IV – PEDIDOS

Por todo o exposto, constatamos e provamos que o Estado Brasileiro, através de seus agentes públicos – Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário e Prefeituras Municipais de São Luís, São José de Ribamar e Paço do Lumiar – violou os preceitos contidos na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos. Assim sendo, em função da gravidade das violações acima descritas, bem como da clara evidencia da ausência de vontade dos agentes responsáveis de cumprir a administração da justiça e temendo-se que os casos continuem impunes, requeremos as seguintes providências com caráter de urgência:

1. Abertura do caso contra o Estado brasileiro;

2. Que o Brasil seja condenado pelas violações cometidas;

3. Que ordene o governo brasileiro a apurar os fatos e punir os culpados;

4. Que ordene o governo brasileiro a indenizar a família da vítima;

5. Que ordene o governo, brasileiro a adotar medidas de proteção aos direitos das crianças e dos adolescentes, no caso especifico, que determine a construção de um Centro Educativo e Recreativo, que atenda as populações da Região da grande São Luís, de forma que as crianças em condições de risco possam desenvolver atividades sócio-culturais, que lhes preparem para um efetivo e completo exercício de cidadania, conforme sentença da Corte de 13.06.01, referente ao caso Villagran Morales e outros.

Atenciosamente,

JOISIANE SANCHES DE OLIVEIRA GAMBA – CDMP

JAMES LOUIS CAVALLARO – Centro de Justiça Global

ANDRESSA CALDAS – Centro de Justiça Global

Informações de Contato da peticionária principal conforme solicitado no artigo 28, a, do Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos:

Centro de Defesa dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes Pe. Marcos Passerini.

Joisiane Sanches de Oliveira Gamba – advogada.

Rua Sete de Setembro, 208

Tel.: 231 14 45

FAX 232 82 45

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