Limitação de MPs

'Emenda aprovada que limita uso de MPs é inconstitucional'.

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19 de setembro de 2001, 10h45

“Toute société dans laquelle la garantie des droits n’est pas assurée, ni la séparation des pouvoirs déterminée, n’a poit de constitution” (Artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de agosto de 1.789)

I – Notícia histórica

O Congresso Nacional, em sessão conjunta da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, promulgou em 11 de setembro deste ano a 32ª Emenda Constitucional à Constituição da República de 1988.

A EC 32 de 2001 restringe a competência do Poder Executivo – na figura do Presidente da República – de editar Medidas Provisórias, limitando-as materialmente, e adota a perda da eficácia das Medidas Provisórias que não forem – num prazo de sessenta dias, prorrogáveis por uma única vez – convertidas em lei. Proíbe, também, a reedição de Medida Provisória na mesma sessão legislativa em que tenha sido rejeitada ou perdido eficácia por decurso de prazo.

II – Poder de reforma na Constituição da República de 1988

A Constituição da República de 1988 disciplina, em seu artigo 60, o modo de sua alteração por Emenda Constitucional. Por tratar-se de uma constituição rígida, a modificação que fuja aos limites impostos pelo artigo citado (formais, materiais e circunstanciais) bem como a que for de encontro aos limites implícitos, será conseqüentemente tomada como inconstitucional, devendo ser retirada do ordenamento positivo por decisão do Supremo Tribunal Federal, corte constitucional brasileira.

Dentro das limitações materiais, encontra-se a que proíbe a deliberação de emenda à Constituição que tenda a abolir a separação dos Poderes (artigo 60, parágrafo 4º, III da CR).

José Afonso da Silva explica o sentido e alcance da norma que dispõe sobre os limites materiais: “É claro que o texto não proíbe apenas emendas que expressamente declarem: “fica abolida a Federação ou a forma federativa de Estado”, “fica abolido o voto direto…”, “passa a vigorar a concentração de Poderes”, ou ainda “fica extinta a liberdade religiosa, ou de comunicação…, ou o habeas corpus, o mandado de segurança…”. A vedação atinge a pretensão de modificar qualquer elemento conceitual da Federação, ou do voto direto, ou indiretamente restringir a liberdade religiosa, ou de comunicação ou outro direito e garantia individual; basta que a proposta de emenda se encaminhe ainda que remotamente, “tenda” (emendas tendentes, diz o texto) para sua abolição.

Assim, por exemplo, a autonomia dos Estados federados assenta na capacidade de auto-organização, de autogoverno, e de auto-administração. Emenda que retire deles parcela dessas capacidades, por mínima que seja, indica tendência a abolir a forma federativa de Estado. Atribuir a qualquer dos Poderes atribuições que a Constituição só outorga a outro importará tendência a abolir o princípio de separação de Poderes.” (Curso de Direito Constitucional Positivo. 18ª ed. SP: Malheiros, 2000, pg. 69)

III – A separação dos Poderes

Aristóteles, na sua Política, já discriminava a divisão de funções dentre órgãos estatais. John Locke foi o primeiro escritor a elaborar uma teoria da divisão de Poderes. No entanto, coube a Charles de Sécondat, Barão de Montesquieu, a elaboração e a difusão da idéia da separação dos poderes do Estado.

Em seu Esprit des Lois Montesquieu asseverava: “A liberdade política somente existe nos governos moderados. Mas nem sempre ela existe nos governos moderados. Só existe quando não se abusa do poder, mas é uma experiência eterna que todo homem que detém o poder é levado a dele abusar: e vai até onde encontra limites. Quem o diria? A própria virtude precisa de limites. Para que não se abuse do poder é necessário que pela disposição das coisas o poder limite o poder.” (livro XI, cap. VI apud AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 28ª ed. SP: Globo, 1990. pg. 178-9)

Partindo de Montesquieu, construiu-se a estrutura de “freios e contrapesos” – adotada pelas Constituições brasileiras desde 1.824 – que confere a órgãos diversos do Estado as funções de legislar, julgar e administrar, mas, concomitantemente, atribui ao Poder Legislativo competências administrativas e judiciárias, ao Judiciário competências administrativas e de legislador negativo, e ao Executivo competências legislativas e a de indicar os agentes que compõem os órgãos de cúpula do Judiciário. Tudo para permitir a harmonia e independência dos Poderes, prevenindo-se o agigantamento de um perante os outros.

IV – Inconstitucionalidade da EC 32/01

Esta estrutura de checks and balances plasmada na Constituição da República não pode ser alterada pelo poder constituinte derivado. Nos termos do art. 60, parágrafo 4º, III da CR, a separação dos Poderes, a forma com que foram as competências de cada qual sulcadas na Carta da República, não podem ser alteradas sem rompimento da ordem constitucional.

A EC 32/01, ao reduzir a competência do Presidente da República para editar Medidas Provisórias, bem como a previsão de perda de eficácia destas se não apreciadas pelo Congresso e a proibição de reedição de Medida Provisória rejeitada ou que tenha perdido eficácia – na mesma sessão legislativa – configura uma ablação pelo Legislativo de competências outorgadas pelo constituinte originário ao Executivo. Denota a imposição de limites e condições. Rompe o equilíbrio de poderes plasmado pelo constituinte de 1988.

E isto, expressamente, é vedado ao detentor da competência reformadora, nos exatos termos do inciso III do parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição da República. O poder constituído não possui competência para sobrepor-se ao instituído pelo poder constituinte.

Por muito menos, em casos de alteração de competências previstas constitucionalmente para a iniciativa de leis, já se pronunciou o Egrégio Supremo Tribunal Federal pela inconstitucionalidade dos atos legislativos infringentes da regra de separação dos Poderes:

“Processo legislativo: emenda de origem parlamentar, da qual decorreu aumento da despesa prevista, a projeto do Governador do Estado, em matéria reservada a iniciativa do Poder Executivo: inconstitucionalidade, visto serem de observância compulsória pelos Estados as regras básicas do processo legislativo da Constituição Federal – entre as quais as atinentes à reserva de iniciativa – dada a sua implicação com o princípio fundamental da separação e independência dos Poderes.” (ADI-805/RS Ação Direta de Inconstitucionalidade Relator Min. Sepúlveda Pertence Publicação DJ DATA-12-03-99 PP-00002 EMENT VOL-01942-01 PP-00047 Julgamento 17/12/1998 – Tribunal Pleno)

“I. Processo legislativo da União: observância compulsória pelos Estados de seus princípios básicos, por sua implicação com o princípio fundamental da separação e independência dos Poderes: jurisprudência do Supremo Tribunal.

II. Processo legislativo: emenda de origem parlamentar a projeto de iniciativa reservada a outro Poder: inconstitucionalidade, quando da alteração resulte aumento da despesa conseqüente ao projeto inicial: precedentes.

III. Vinculação de vencimentos: inconstitucionalidade (CF, art. 37, XIII): descabimento da ressalva, em ação direta, da validade da equiparação entre Delegados de Polícia e Procuradores do Estado, se revogado pela EC 19/98 o primitivo art. 241 CF, que a legitimava, devendo eventuais efeitos concretos da norma de paridade questionada, no período em que validamente vigorou serem demandados em concreto pelos interessados.” (ADI-774 / RS Acao Direta de Inconstitucionalidade Relator Min. Sepulveda Pertence Publicação DJ DATA-26-02-99 PP-00001 EMENT VOL-01940-01 PP-00033 Julgamento 10/12/1998 – Tribunal Pleno)

“Se a Constituição de um Estado declara competir ao Executivo, exclusivamente, a iniciativa das leis sobre a criação e extinção de cargos e fixação e alteração dos respectivos estipêndios, não pode o Legislativo, por meio de emendas a projeto governamental, majorar as tabelas propostas ou estendê-las a outros funcionários – a emenda é uma ‘forma de iniciativa’, ‘um corolário da iniciativa’, o ‘próprio direito ‘ de iniciativa, onde falta a competência para a iniciativa, falta competência para emendar. Verba especial para a despesa quando assim a exige a Constituição. Maioria absoluta, conceito em sendo ímpar o numero de votantes.” (RP-164/SC Representação . Relator Min. Mario Guimarães Publicação DJ Data-08-09-52 PG-***** Ement Vol-00094-01 Pg-00001 Julgamento 16/06/1952 – Tribunal Pleno)

V – Conclusão

Em que pese o uso indiscriminado – e inconstitucional – do instituto das Medidas Provisórias pelo Executivo, não cabe ao Legislativo suprimir-lhe competências outorgadas pelo constituinte originário, sob pena de ferir cláusula pétrea da Constituição da República. Deve, sim, cumprir com o que a CR lhe determina: analisar imediatamente as medidas editadas, convertendo-as em lei ou rejeitando-as, não incidindo na mora que possibilita ao Executivo reeditar medidas dezenas de vezes.

O fortalecimento do Legislativo virá de sua atuação diligente e atenta, não de medidas pontuais, inconstitucionais, usurpadoras da competência de outros Poderes.

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