Imagem liberada

Globo se livra de indenizar skinhead suspeito de crime

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15 de setembro de 2001, 10h04

O juiz da 38ª Vara Cível Central de São Paulo, Adherbal dos Santos Acquati, livrou a TV Globo de pagar indenização por uso indevido de imagem de um suspeito de participar do crime praticado por “Skinheads” ou “Carecas do ABC” que resultou na morte de um homossexual. A emissora foi representada pelo advogado Luiz de Camargo Aranha Neto.

A TV Globo filmou vários suspeitos de ter participado da agressão, no ano passado. Eles estavam na delegacia do 3º Distrito Policial quando a equipe chegou e começou a fazer as imagens. Depois da veiculação, um deles se sentiu ofendido e resolveu entrar na Justiça com ação por uso indevido de imagem e danos morais.

Mas o juiz de primeira instância negou o pedido porque “o autor não se desvinculou, nem mesmo na inicial, das idéias preconceituosas e mesmo criminosas, do grupo de energúmenos que se auto intitula “Skinheads”. Eles consideram “seres inferiores” os judeus, negros, homossexuais e nordestinos.

“Portanto, é lícito concluir-se que as represálias sofridas pelo autor se devem antes à sua vinculação a essas idéias e a esse grupo, do que ao trabalho profissional da ré. Não é difícil compreender que pessoas desse grupo prefiram não ser identificadas publicamente. Ou seja, não assumem de público a defesa desses preconceitos, preferindo agir nas sombras”, afirmou o juiz. A sentença pode ser contestada.

Veja a íntegra da decisão.

Poder Judiciário

São Paulo

Processo nº 621.035-0/00 – 38ª Vara Cível Central.

Vistos, etc.

Eduardo Paomessa, qualificado na inicial, moveu ação ordinária de indenização por danos materiais e morais, contra Rede Globo de Televisão.

Alegou, em síntese, que em 06.02.2.000, um grupo de pessoas já devidamente identificadas, por motivos fúteis, agrediram e causaram a morte de Edson Neris da Silva e tentaram matar Dario Pereira Neto. Tais pessoas utilizaram-se do instrumento agressivo conhecido como “soco inglês”. Os autores do crime reuniam-se constantemente para a prática de todo o tipo de violência contra pessoas que consideram “inferiores”, como judeus, negros, homossexuais e nordestinos e autodenominavam-se “Skinhead” ou “Carecas do ABC”.

A conduta daquelas pessoas atingiu requintes de crueldade, agredindo pessoa já caída e sem reação. Conhecida a autoria do crime, foi oferecida denúncia pelo Ministério Público. Na data dos fatos, com a descrição dos agressores, a autoridade policial promoveu investigações nos estabelecimentos de diversão, bares e restaurantes das proximidades.

Assim, foram conduzidas à Delegacia de Polícia inúmeras pessoas, entre elas os autores do crime e pessoas inocentes, que foram identificadas e submetidas a reconhecimento perante a vítima sobrevivente e outras testemunhas presenciais. Tal procedimento já se encontrava bastante adiantado e a inocência do autor devidamente esclarecida, quando grande número de repórteres chegaram à repartição policial.

Todos focaram suas câmeras em direção às pessoas que lá se encontravam, separadas em três grupos, ou seja, primeiro grupo, composto de pessoas já inocentadas, que apenas aguardavam o término dos trabalhos, segundo grupo, pessoas já identificadas como participantes do crime e que já tinham recebido voz de prisão e, terceiro grupo, pessoas ainda não submetidas ao reconhecimento.

A autoridade policial esclareceu aos membros da imprensa a situação de cada grupo. Não obstante, o preposto da ré passou a focar suas Câmeras quase que exclusivamente sobre o autor, o que não ocorreu com outras emissoras. Após, a imagem do autor foi divulgada amplamente pela ré, embora sem mencionar seu nome.

Em virtude dessas divulgações, o autor, que reside próximo a uma favela, passou a ser hostilizado na via pública, o que levou o autor a providenciar a elaboração de um Boletim de Ocorrência. Em 06.09.2.000 a ré fez nova edição da imagem do autor, em vista de uma outra ocorrência semelhante. Assim, as mesmas imagens foram utilizadas em outra matéria jornalística.

Argumentou com a inocorrência da prescrição ou decadência. A ré utilizou-se indevidamente da imagem do autor. Em face das ameaças recebidas, o autor suportou prejuízos materiais, ficando impedido de circular livremente pela cidade, além de ter sofrido agressões físicas e verbais, sendo que sua residência foi alvo de depredações.

Ademais, o autor também suportou danos morais. Citou jurisprudência favorável. Pleiteou em tutela antecipada, a apreensão das fitas contendo a imagem do autor, impedindo-se novas divulgações e, em definitivo, a condenação da ré a publicar a resposta do autor, no sentido de que sua imagem foi divulgada por erro da ré, na divulgação da ação e da sentença, em tantas vezes quantas foram as divulgações denunciadas; condenação da ré no pagamento de indenização pela utilização da imagem do autor, com a reversão ao autor dos lucros auferidos pela ré nos programas em que foram divulgadas as imagens do autor; indenização por danos materiais, conforme for calculado em execução de sentença e indenização por danos morais, no montante equivalente a 20 vezes ao que for fixado para os danos materiais, tudo acrescido das cominações de estilo. Com a inicial vieram os documentos de fls. 25/27. O feito iniciou seu trâmite perante a MM. 16ª Vara Cível, que declinou de sua competência (fls. 29).


Foi indeferida a tutela antecipada (fls. 31). O autor juntou os autos de notificação judicial movida contra a ré (fls. 42/123). A ré ofereceu contestação (160/182), discorrendo sobre a liberdade de imprensa. Em preliminar, alegou a decadência do direito de ação, nos termos do artigo 56, “caput”, da Lei nº 5.250/67, desde que a última veiculação da matéria ocorreu em 17.03.2.000; denunciação à lide da Fazenda do Estado, que permitiu a gravação das imagens. No mérito, o crime descrito na inicial foi objeto de atenção por toda a imprensa nacional.

Várias viaturas percorreram as ruas próximas ao local do crime, detendo diversas pessoas tidas como suspeitas, entre elas o autor. A equipe da polícia foi tomando os depoimentos dos suspeitos, as testemunhas foram reconhecendo os autores do crime e os não envolvidos foram sendo dispensados. Devido ao grande número de pessoas detidas, esse trabalho levou longo tempo.

Desde a primeira fase dos trabalhos, a autoridade policial permitiu que a imprensa filmasse as pessoas detidas como suspeitas do crime. Assim, a equipe de reportagem da ré e das demais congêneres, foi encaminhada a um local no interior do 3º Distrito Policial, onde se encontravam todos os suspeitos, incluindo o ora autor. Foram detidos 16 homens e 2 mulheres.

Esse foi o momento de tomada das imagens, com autorização da autoridade policial, sendo que a maioria dos suspeitos encontrava-se com a cabeça abaixada. No entanto, o autor levantou a cabeça e passou a mão pelo cavanhaque, sabendo que estava sendo filmado. O próprio autor afirma que foi liberado pela autoridade policial, permanecendo apenas os acusados da autoria do crime.

Nessa segunda etapa, os acusados foram colocados em uma sala fechada, onde posteriormente foi permitida a gravação de novas imagens desses acusados por um visor da porta. Nessas imagens, onde a polícia apresentada os verdadeiros acusados, já não mais se encontrava o ora autor. As imagens exibidas não emitiram qualquer comentário ou juízo de valor sobre o autor, que aparece em menos de dois segundos, tendo apenas noticiado a detenção de diversos suspeitos do crime de homicídio.

Assim, as matérias jornalísticas limitaram-se a veicular fato verídico e incontroverso. A detenção de suspeitos para averiguação de sua participação em delito é permitida pelo direito processual. As imagens em que aparece o autor foram feitas em aberto, juntamente com outros detidos. Todos estavam sentados em uma escadaria, sendo que a gravação se deu por igual, sem qualquer aproximação. lnexiste ordem judicial de que a ré exiba tais imagens. O direito de resposta deve ser exercido por ação autônoma. O caso “sub judice” em nada se assemelha à violação de direitos autorais. lnquestionável o direito da sociedade em ser informada sobre assuntos pertinentes à segurança pública. Citou jurisprudência. Impugnou o pedido de danos morais.

O autor replicou (fls. 187/217 – 2º volume), juntando novos documentos (fls. 218/283). Manifestou-se a ré (fls. 294/299). Foi indeferida a denunciação à lide (fls. 300/301).

Este é o breve relatório.

Decido.

O feito comporta o julgamento antecipado da lide, nos termos do artigo 330, inciso I, do Código de Processo Civil, eis que se trata de matéria preponderantemente de direito e, naquilo em que interfere com fatos, os autos já se encontram suficientemente instruídos, não havendo necessidade de produção de provas em audiência.

Trata-se de pedido de indenização, por violação do direito de imagem e por danos morais, formulado pelo autor, sob alegação de ter a ré exibido indevidamente sua imagem, com abrangência de todo o território nacional, como acusado de crime de homicídio, cometido com características de crueldade. As imagens foram tomadas quando o autor estava presente no 3º Distrito Policial desta Capital, para onde fora conduzido pela autoridade policial, juntamente com outros suspeitos do crime.

Trata-se de crime ocorrido na madrugada de 06.02.2.000, que ficou conhecido como o “caso dos skinhead”, quando um grupo que se autodenomina “Skinheads” (tradução literal “cabeças raspadas”) ou “Carecas do ABC”, atacaram a vítima Edson Neris da Silva, na Praça da República, nesta Capital. As agressões praticadas contra a vítima resultaram em sua morte. (fls. 63/104)

A repercussão do caso deveu-se, além da exacerbada violência e superioridade de força dos agressores, ao fato de que a vítima era homossexual e estava caminhando naquele logradouro público, de mãos dadas com Dario Pereira Netto, que conseguiu fugir e sobreviveu ao episódio. (fls. 220 e seguintes) Ademais, a própria inicial noticia, ficou patenteado que o móvel primário do crime eram idéias preconceituosas defendidas por aquele grupo de pessoas, que considera “seres inferiores” os judeus, negros, homossexuais e nordestinos.


Segundo é público e notório, essas pessoas defendem idéias que misturam ingredientes da Ku Klux Klan americana e do nazismo, que tanta desgraça já trouxe para a Humanidade. Portanto, o fato ganhou repercussão nacional, pois, muitos jamais imaginavam campo de expansão dessas “idéias” em nosso País.

Todavia, quanto ao mérito, a ação improcede.

A presente ação, renova um confronto recorrente nos Pretórios, a saber, de um lado, o princípio da liberdade de imprensa, um dos pilares do “Estado Democrático de Direito” (artigo 1º, da C. F.) e de outro, a proteção à honra, à intimidade e à imagem do indivíduo. Ambos estão consagrados em letras de outro no artigo 5º da Constituição Federal, a saber, o princípio da liberdade de imprensa em dois incisos:

IV – é livre a manifestação do pensamento, vedado o anonimato;

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

A proteção à honra e à intimidade também vem circunscrita a dois incisos:

V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Portanto, uma premissa deve ser desde logo estabelecida, no sentido de que, a presente sentença apenas analisará o legítimo exercício do direito de imprensa, nos estritos limites dos princípios acima transcritos, vele dizer, buscando analisar e interpretar o fato descrito e seu interesse para a divulgação pública. Assim, a presente sentença reveste-se do cuidado de preservar o direito de livre expressão do pensamento, tal como resguardado em letras de ouro na Constituição Federal.

Assim, o próprio fato de o autor ter sido conduzido pela autoridade policial à Delegacia de Polícia, para averiguação, na condição de suspeito daquele crime, que a inicial classifica como “horripilante” (fls. 04 – 1º parágrafo), já demonstra que o autor encontrava-se na companhia de membros do grupo denominado “Skinhead” ou “Carecas do ABC”.

Observe-se que a inicial não negou que o autor pertencesse a esse grupo de pessoas, nem que o autor rejeite as degradantes idéias “defendidas” por esse grupo. A autoridade policial estava em início de investigações, nos limites espaciais e temporais da flagrância do delito, sendo que a inicial também reconhece que a autoridade policial agiu no estrito cumprimento do dever legal (fls. 04 – “in fine” e fls. 05). Diante da enorme repercussão do fato noticioso, a ré compareceu na repartição policial, juntamente com outros órgãos da imprensa falada, escrita e televisiva, ali realizando imagens mediante prévia permissão da autoridade policial.

Portanto, a ré apenas repercutiu fato noticioso, de indiscutível interesse público, no exercício legítimo e delimitado do direito de imprensa. Não pode o autor transferir a sua própria responsabilidade, seja por defender idéias absurdas, seja por andar em más companhias, ao resultado do exercício profissional da ré. Em nenhum momento a inicial afirma que a ré teria feito divulgação de áudio ou texto, que imputasse a responsabilidade pelo crime ao autor, cujo nome não foi mencionado na matéria transmitida pela ré. Portanto, tudo que resulta da inicial é que a imagem do autor foi divulgada pela ré, em meio a outros suspeitos do crime.

Mas, evidentemente, a ré não pode ser responsabilizada, senão em caso de exercício abusivo e ilegítimo do direito de imprensa, o que não se vislumbra, nem remotamente, na hipótese “sub judice”.

Em resumo – reitere-se, preservado o respeito pelo direito de livre manifestação do pensamento – o autor não se desvinculou, nem mesmo na inicial, das idéias preconceituosas e mesmo criminosas, do grupo de energúmenos que se auto intitula “Skinheads”. Em outras palavras, o autor comparece perante a Justiça, para reivindicar composição de danos à imagem e à honra, alegando ter sido vítima de perseguições em razão da matéria jornalística em tela, sem afastar de si a mácula da suspeita, não do crime hediondo de que foi vítima Edson Neris da Silva, mas do lixo fétido histórico que se coloca como pano de fundo desse lamentável episódio.

Portanto, é lícito concluir-se que as represálias sofridas pelo autor se devem antes à sua vinculação a essas idéias e a esse grupo, do que ao trabalho profissional da ré. Não é difícil compreender que pessoas desse grupo prefiram não ser identificadas publicamente. Ou seja, não assumem de público a defesa desses preconceitos, preferindo agir nas sombras, conforme se constitui em triste exemplo o homicídio praticado contra Edson Neris da Silva, ocorrido na madrugada de 06.02.2.000. Porém, a divulgação da imagem do autor ocorreu em consonância com o legítimo exercício do direito de imprensa, do que não pode decorrer qualquer responsabilidade à ré.

Isto Posto e considerando o que mais dos autos consta, julgo Improcedente a ação proposta, condenando a autor nas custas processuais e honorários advocatícios, que fixo em 10% sobre o valor corrigido da causa, nos termos dos artigos 11 e 12, da Lei nº 1.060/50.

P. R. I. C.

São Paulo, 13 de agosto de 2.001.

Adherbal dos Santos Acquati

Juiz de Direito

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