O outro lado

Maquiagem de produtos: acusados não puderam se defender.

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1 de setembro de 2001, 18h25

Uma clamorosa, e oportuna, reportagem a respeito de produtos vendidos em menor quantidade, sem a respectiva redução nos preços, gerou uma reação em cadeia descontrolada nos últimos dias.

O assunto tomou o lugar de grandes escândalos nacionais como os que envolvem Jader Barbalho e Paulo Maluf, entrou na agenda do Palácio do Planalto e, no meio do caminho, passou-se a entender que as empresas estavam vendendo gato por lebre – quantidade menor do que informava a embalagem -, entre outras confusões.

A indignação geral gerou uma espécie de “tribunal popular” em praça pública. Empresas tradicionais foram julgadas e condenadas sumariamente: o governo foi logo anunciando pesadas multas e Procons de diferentes Estados passaram a determinar a retirada dos produtos de circulação.

Mas, na mesma velocidade com que o assunto surgiu, poderá submergir. Assim como estão submergindo as decisões de Procons. Em três Estados (Minas Gerais, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul), a Justiça desautorizou a decisão dos órgãos de defesa do consumidor.

O motivo é que os juízes ouviram as empresas, diferentemente do que aconteceu com aqueles que chegaram a uma conclusão com poucas informações a respeito do assunto.

Examinados os processos, vê-se que as empresas não enganaram ninguém. Podem até ter lançado mão de um artifício questionável, mas cumpriram a lei e não infringiram a política de preços em vigor.

Antes de chegar às gôndolas dos supermercados, esses produtos e suas respectivas embalagens foram aprovados pelo órgão federal encarregado de verificar a sua legalidade e regularidade – o Instituto Nacional de Metrologia (Inmetro).

Segundo a chefe da Divisão de Produtos Pré-Medidos do Inmetro, Maria Manoela, os biscoitos do tipo “maizena”, por exemplo, não estão sujeitos às regras de padronização quantitativa. “Portanto”, disse ela, “podem ser comercializados com qualquer quantidade, desde que o conteúdo corresponda ao que está descrito na embalagem”.

Já no caso do papel higiênico, que também foi eleito vilão do mercado, é produto sujeito à Portaria 143 do Inmetro, de 20 de junho de 2000. “Essa portaria contempla a quantidade de 30 metros. Dessa forma, os fabricantes estão dentro da lei”, esclarece a dirigente do Inmetro.

As empresas fabricantes de papel higiênico foram as mais castigadas do episódio. Embalado com o potencial de marketing político da história, o governo federal anunciou uma multa de R$ 2 milhões a cada empresa envolvida. A própria instância técnica do Ministério da Justiça – a quem cabe a decisão de multar ou não – ficou sabendo da punição pelo Jornal Nacional, até onde se sabe.

Os tais rolos de 30 metros, motivo da punição, já existiam há anos, segundo as informações da Associação Brasileira de Celulose e Papel. Eram vendidos junto com os de 40 metros e, ao menos no caso de uma das empresas, pelo mesmo preço. O diferencial, explicou-se, era a gramatura (espessura) do produto, o que determina o grau de aproveitamento.

A opção pelo item mais rentável teria sido uma imposição ditada pela conjuntura econômica. A justificativa: as empresas cujas fábricas localizam-se nas regiões onde vigora o racionamento, para fazer frente ao corte de 25% no uso da eletricidade, tiveram que adquirir energia elétrica no mercado aberto com preços até 600% mais altos que o da tarifa oficial – que também teve uma elevação de 16,6%.

O quadro desnudou um aspecto do programa de racionamento que não havia sido examinado até agora. O fabricante de um produto que tem na energia elétrica um componente de custo expressivo – e que se encontra sob o regime de racionamento – perde toda e qualquer competitividade em relação a um concorrente que não vive o mesmo problema por se encontrar no Sul ou no Norte do país.

Entre as alternativas de fechar fábricas, reduzir drasticamente a produção e demitir seu pessoal, fez-se a opção de manter no mercado apenas o item com lucro maior. Com uma cautela: o produto foi relançado com nova embalagem, sua metragem foi divulgada e informada no invólucro com letras de 1 centímetro de altura.

Esses são alguns dos dados que estão sendo levados ao conhecimento da Justiça e que, ao final, examinados com mais tempo do que um jornalista pode dedicar para produzir uma notícia, poderão acabar gerando ação por prática de propaganda enganosa por parte de organismos cuja função é a defesa do consumidor.

Leia as decisões judiciais de dois Estados onde os produtos voltaram a ser vendidos normalmente

Rio Grande do Norte

Mandado de Segurança nº 001.01.013487-6

Impetrado: Coordenador Geral do Procon/RN

Decisão

A empresa qualificada e representada por advogado, impetrou Mandado de Segurança contra ato do Coordenador Geral do Procon/RN, alegando que é empresa do ramo de produção e comercialização de papéis higiênicos, toalhas de papel, lenços, guardanapos e absorventes e que foi surpreendida ao receber, via fax, da Associação de Supermercados do Rio Grande do Norte, a título de conhecimento, notificação a ela encaminhada pelo Procon, na pessoa de seu Coordenador, ordenando à mencionada Associação, que comunicasse a seus associados para que retirassem diversos produtos de suas prateleiras até o dia 27 de agosto (…) de fabricação da impetrante. Da análise do conteúdo da notificação, conclui que a autoridade indicada coatora tomo como pretexto a investigação da Secretaria de Direito Econômico sobre determinados produtos, e simplesmente abriu mão de todo um procedimento administrativo indispensável a bem exercida administração pública, não oportunizando à impetrante qualquer oportunidade de defesa. Fundamentou sua pretensão no art. 5º, LIV e LV da Constituição Federal. Ao final, pediu a concessão de medida liminar para suspender todos os efeitos da decisão do Coordenador do Procon do Rio Grande do Norte para que os produtos retirados das prateleiras dos supermercados voltem a ser comercializados normalmente, até julgamento final do “writ”. Juntou documento de fls. 16.

Passo a examinar a possibilidade da concessão da medida liminar.

“A liminar não é uma liberalidade da Justiça: é medida acauteladora do direito do impetrante, que não pode ser negada quando ocorrem os seus pressupostos, como, também, não deve ser concedida quando ausente os requisitos de sua admissibilidade”.

“Se é certo que a liminar não deve ser prodigalizada pelo Judiciário, para não entravar a atividade normal da Administração, também não deve ser negada quando se verifiquem seus pressupostos legais, para não se tornar inútil o pronunciamento final a favor da impetrante. Casos há – e são freqüentes – em que o tardio reconhecimento do direito do postulante enseja seu total aniquilamento. Em tais hipóteses, a medida liminar impõe-se como providência de política judiciária deixada à prudente discrição do Juiz”

Do “fumus boni Juris”

A Constituição Federal de 1988 adotou, expressamente, a fórmula do devido processo legal (due process of law), garantindo que “ninguém será privado da liberdade ou de várias outras garantias, verdadeiros princípios, entre as quais o contraditório e a ampla defesa.

Os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa assegurados pelo art. 5º, LV da CF/88 devem estar presentes nos processo administrativo e judiciário. Isto é uma premissa indiscutível. Alguns atos administrativos prescindem da formação de um processo para sua prática. São aqueles unilaterais que não afetam diretamente o direito individual de algum particular.

No entanto, se o ato destina-se a regulamentar, disciplinar, constituir ou desconstituir uma relação bilateral de direitos e obrigações entre a Administração Pública e o particular, seja, por exemplo, no procedimento licitatório, de concessão de serviços públicos ou, no caso dos servidores com a nomeação, promoção, exoneração, aposentadoria, disponibilidade, concessão de férias, diárias ou de alguma vantagem remuneratória, é indispensável a formação de um processo, da mesma forma que também o é para excluir alguma dessas vantagens. Importante é que se observe o devido processo legal, postulado maior do Estado de direito.

Nessa linha de pensar, o ato administrativo que objetiva retirar de circulação determinados produtos, tendo em vista a alteração da quantidade contida na embalagem requer a formação de processo importante neste sentido são as lições do Mestre Celso Antônio Bandeira de Mello, quando fala Inevitabilidade do procedimento (ou processo) administrativo e suas implicações com o Estado de Direito.

“Entre a lei e o ato administrativo, como bem salienta Carlos Ari Sundfeld, existe um intervalo, pois o ato não surge como um passe de mágica. Ele é o produto de um procedimento através do qual a possibilidade ou a exigência supostas na lei em abstrato passam para o plano de concreção. No procedimento se estrutura, se compõe, se canaliza e afinal se estampa a “vontade” administrativa. Evidentemente, existe sempre um modus operandi, para chegar-se a um ato administrativo final”.

“Assim, não é difícil perceber que um procedimento sempre haverá pois o ato, como dito, não surge do nada. Tal procedimento – isto sim – terá sido mais ou menos amplo, mais ou menos formalizado, mais ou menos acessível aos administrados, mais ou menos respeitador de exigências inadversáveis do Estado de Direito ou de regras explicitas do ordenamento positivo. Sua ocorrência é induvidosa, quer exista uma lei geral de procedimentos administrativos, quer haja, como entre nós, apenas alguns raros casos expressamente propostos nesta qualidade de esparsas e pouco localizadas disposições sobre procedimento:

E mais adiante:

“É no modus procedendi, é, em suma, na escrupulosa adscrição ao due process of law, que residem as garantias dos indivíduos e grupos sociais. Não fora assim, ficariam todos e cada um inermes perante o agigantamento dos poderes de que o Estado se viu investido como consectário inevitável das necessidades próprias da sociedade hodierna. Em face do Estado contemporâneo – que ampliou seus objetivos e muniu-se de poderes colossais – a garantia dos cidadãos não mais reside sobretudo na prévia delimitação das finalidades por ele perseguíveis, mas descansa especialmente na prefixação dos meios, condições e formas a que se tem de cingir para alcançá-los”.

“É dizer: a contrapartida do progressivo condicionamento da liberdade individual é o progressivo condicionamento do modus procedendi da Administração”.

“Portanto, os servidores, nas situações acima especificadas, têm direito ao processo administrativo, o qual deve rigorosa obediência ao devido processo legal, compreendendo-se modernamente nesta cláusula o direito ao procedimento adequado, não só deve o procedimento ser conduzido sob o pálio do contraditório como também há de ser aderente à realidade social e consentâneo com a relação de direito material controvertida.

Na hipótese dos autos, neste primeiro exame, verifica-se que a autoridade apontada como coatora decidiu determinar a retirada de alguns produtos das prateleiras dos supermercados sem observar o devido processo legal (nele incluído o contraditório e a ampla defesa).

Os agentes políticos do Estado – vale dizer – os legisladores, os administradores e os juízes, são os responsáveis, mais do que os outros, pelo cumprimento da Constituição e pelo interesse em fazê-la valer.

Fazer de conta que atende ao devido processo lega, sem realmente concretizá-lo, pode inclusive revelar uma conduta eivada de desvio de poder. A respeito do tema, vale a pena transcrever o seguinte escólio do mestre CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO.

“Cumpre, no Estado de Direito, que os administrados estejam, de antemão, assegurados de que o proceder administrativo não lhes causará surpresas. E não as causará tanto porque outros fins, que não os estabelecidos em lei, estão vedados ao administrador, quanto porque estes mesmos fins só podem ser alcançados pelas vias previstas na regra de Direito como adequadas ao caso”.

Do “PERICULUM EM MORA”

A concessão da liminar justifica-se também por este requisito, uma vez que, se não concedida para garantir a ampla defesa e o efetivo contraditório à impetrante com a respectiva instauração do devido processo legal na esfera administrativa, a medida final será ineficaz ou lhe terá causado considerável prejuízo.

Não há que se falar em “periculum in mora” inverso, pois a permanência dos referidos produtos nas prateleiras dos estabelecimentos comerciais, e até mesmo sua comercialização, poderá nenhum prejuízo ou dano causar aos consumidores, visto que, conforme afirmado antes, apenas houve redução na quantidade contida nas embalagens, diferentemente, por exemplo, se fosse o caso de produtos com alguma substância que pudesse causar lesão à saúde dos consumidores. Nesse caso, o ato da autoridade se justificaria como media preventiva de caráter cautelar, que poderia ser praticado antes da instauração do processo.

Ainda que se afirme haver patrimonial para os consumidores, pela redução da quantidade dos produtos, mas mantidos os mesmos preços, basta que se faça campanha publicitária esclarecedora ao consumidor, a este certamente fará sua escolha consciente.

Diante do exposto, de acordo com o art. 7º, II, da Lei nº 1.533/51, concedo a medida liminar requerida para determinar a suspensão dos efeitos do ato questionado, permitindo que os produtos comercializados pela impetrante possam voltar às prateleiras dos supermercados e ser comercializados normalmente até o julgamento deste processo ou a conclusão do processo administrativo que for instaurado pela entidade coatora.

Notifique-se a autoridade coatora para prestar as informações que considerar necessárias, no prazo de 10 dias. Notifique-se também a Associação dos Supermercados do Rio Grande do Norte, na pessoa de seu Secretário Executivo, para efeito de cumprimento desta decisão. Decorrido esse prazo, com ou sem as informações, dê-se vista ao Ministério Público.

Publique-se. Intimem-se.

Natal, 30 de agosto de 2001.

Ibanez Monteiro da Silva

Juiz de Direito

Decisão de Minas Gerais

Processo nº 024.01.084.987-5

Poder Judiciário do Estado de Minas Gerais

Justiça de 1ª Instância

Vistos, etc…

1. (A empresa) impetrou Mandado de Segurança contra ato do Sr. Promotor de Justiça do Procon Estadual., Especializado na Área de Alimentos, Dr. Amauri Artimos da Matta, afirmando ilegal e inconstitucional a decisão materializada no Oficio datado de 21 de agosto de 2001, onde a Autoridade Impetrada determinou a imediata retirada das prateleiras no âmbito do Estado de Minas Gerais, o extrato de tomate pesando 350 gramas, cujo nome de fantasia é “Colonial”, o qual é produzido e comercializado pela Impetrante. Comenta, ainda, que não teve direito de defesa sob contraditório e, por isso, requer liminar para não se ver submetida à exigência de retirada sumária de seus produtos de todos os estabelecimentos comerciais mineiros, na forma determinada, de forma que possa continuar a comercializar seus produtos, até decisão final.

Vistos, relatados e examinados, decido.

2. Para decisão do pedido de liminar, mister analisar os fundamentos da decisão atacada, que se encontra à f. 14/19, e nela verifico que a Autoridade Impetrada, antes mesmo de instaurar o competente processo administrativo, determinou:

“a) em sede cautelar, e na defesa dos consumidores, a imediata suspensão de fornecimento dos alimentos acima referidos, no âmbito do Estado de Minas Gerais, cuja medida deve ser executada, diretamente, pelos fabricantes, supermercados e estabelecimentos comerciais.”

Sua Senhoria, baseou sua decisão Administrativa em pesquisa realizada pelo Combativo Movimento das Donas de Casa deste Estado, argumentando que o fato foi obtido a partir da informação retro, confirmada pelo Setor de Fiscalização do Procon Estadual.

A prova e, para tanto, documental, para efeito desta analise inicial.

2. Efetivamente, a situação colocada nos autos é complexa, pois de um lado es’ta o Procon Estadual, por Representante do Ministério Público, todos profundamente conhecedores das Leis e, especialmente, da Carta Magna. De lado outro, um produtor de alimentos, que busca a tutela jurisdicional, visando suspender um ato, que aponta inconstitucionalidade.

De simples compulsar dos autos, vejo que está presente o “fumus boni Juris”, para fins de apreciação de liminar, primeiro, porque a determinação da imediata suspensão de fornecimento do produto e a ordem para que todos os fabricantes, supermercados estabelecimentos comerciais a cumpram, foi proferida pela autoridade impetrada quando, sequer, havia processo administrativo, previsto pela Lei, tanto assim que a ordem foi dada no item “a” e o comando para instauração do devido processo legal veio na letra “b”, por óbvio, subseqüente.

Segundo, porque, a principio, uma decisão, deve, pelo menos, ser prolatada em processo já regulamente instaurado; jamais previamente. Mister seja formalizada a conduta tipificada no artigo 5º, LIV da Carta Federal, eis que “ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal.”

Ademais, pelo que existe até o momento, vê-se que a decisão do ilustre Impetrado foi baseada em prova por ele mesmo colhida e sem se dar oportunidade de defesa, ou mesmo de mera explicação, à Impetrante, que, viu-se desapossada de seu produto comercial.

O “periculum in mora” reside na retirada dos produtos que já vem sendo, sistematicamente, feita diante da ordem da Autoridade Impetrada, o que pode causar prejuízos irreversíveis a Impetrante, pois se afinal não provada a imputação à recuperação financeira será morosa, inclusive através de manejo de ação contra o Poder Público, com todas as características desse procedimento.

De lado outro, a permanência dos produtos em exposição nenhum dano acarretará aos consumidores que, se assim quiserem, simplesmente não optarão pela marca comercializada pela Impetrante, sendo esta uma regra de mercado de consumo.

Justifico, ainda, que a ordem atacada, face à abrangência imposta pela Autoridade Impetrada, pode acarretar prejuízos não só a impetrante como para terceiros, direta ou indiretamente, trabalham com a marca.

Por fim, de se registrar que se provada a acusação, dentro do devido processo legal, com ampla defesa, o Procon poderá tomar medidas legais, bem assim impor a pena já reservada para esta situação, punindo, exemplarmente, o mal comerciante.

Todavia, antecipar uma pena, quando sequer instaurado o processo devido, é, a principio, fundo de direito, apto a ensejar a suspensão do ato, até que a situação melhor se defina, através do julgamento tanto administrativo, que por certo ocorrera, como deste “mandamus”.

3. Isto posto, defiro a limiar requerida pela Impetrante e suspendo a decisão administrativa cautelar firmada pela Autoridade Impetrada que determinou a suspensão de fornecimento do alimento produzido pela Impetrante, até ulterior decisão deste Mandado de Segurança.

Notifique a Autoridade Impetrada para, querendo, venha prestar suas informações no decêndio legal.

Intime.

Belo Horizonte, 23 de agosto de 2001.

Juiz José Afrânio Vilela

5ª Vara de Fazenda Pública e Autarquias

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