Pedido de falência

'Estado é responsável por erro de juiz em pedido de falência'

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25 de outubro de 2001, 11h16

Considere a seguinte hipótese: Uma empresa “X” propõe pedido de falência contra a sociedade comercial “Y”, requerendo em sua petição inicial a citação do seu representante legal, sem, porém, apontar expressamente o nome deste. Após alguns meses da propositura do pedido falimentar, a citação ocorre na pessoa de um ex-sócio “Tício”, em virtude de que, após a propositura da demanda, ocorreram quase seis meses, e, neste ínterim, houve a alteração social registrada na Junta Comercial um mês antes da data em que se realizou efetivamente a citação.

Apresentada contestação pelo ex-sócio, o mesmo anexou à contestação cópia do contrato social devidamente chancelado pela Junta Comercial, dando conta da alteração do registro referente à representação societária um mês antes da data da citação. Indica o mesmo, nesta hipótese abstratamente considerada, quem é o atual sócio, apontado o endereço do mesmo, conforme consta nos documentos apresentados à Junta Comercial.

O MM. Juiz, nesta hipótese, determina a manifestação da empresa requerente do pedido, e esta, insiste na validade da citação, decretando-se a falência da sociedade comercial “Y”, e, como corolário da decisão, o ex-sócio é lançado nos órgãos de proteção de crédito, como SERASA e SPC, além de responder a inquérito judicial por falta de apresentação dos livros comerciais.

Após dois anos, através do recurso competente proposto pelo ex-sócio Tício, a saber, agravo de instrumento com pedido de concessão de ordem judicial liminarmente de efeito suspensivo, inclusive, com a concessão desta ordem pelo Tribunal de Justiça, é mantida a r. sentença, sob o argumento de que no momento em que se deu a citação, o Sr. Tício ainda era representante legal daquela sociedade.

Tício, irresignado, opôs embargos declaratórios alegando erro material, em virtude que o fato incontroverso nos autos é que a alteração no contrato social se deu antes da efetiva data da citação, pedindo o recebimento dos embargos declaratórios com efeito modificativo, já que se trata de erro material. Acolhidos os embargos, é decretada a nulidade da r. sentença monocrática, sob o argumento de que, de fato, quando efetivada a citação, esta era nula de pleno direito, pois, como consta nos autos, a data em que se efetivou o registro de alteração social foi um mês antes da data da citação cumprida, conforme confirmado, anteriormente, inclusive, em ofício próprio entregue ao juiz de origem pelo referido órgão público (Junta Comercial).

Além disso, na r. sentença foi asseverado que “à época da citação, restou claro que o Sr. Tício ainda era o representante legal”, caracterizando o erro material, e, dessarte, anulado o procedimento falimentar. Com tal fato, até mesmo a sociedade “Y”, desta vez representada pela atual sócia, Sra. Mélvia, depositou a quantia reclamada, antes mesmo da decisão daquele Tribunal, reconhecendo o valor da dívida como sendo sua.

Indaga-se: existe possibilidade de reparação por danos materiais e morais a ser proposta por Tício contra o Estado, por erro jurisdicional? A tese da irresponsabilidade do Estado por erro judicial no âmbito civil ainda tem sustentação em nosso ordenamento jurídico?

A jurisprudência brasileira acerca do tema, não obstante grandes avanços na doutrina a seu respeito, busca insistir, mesmo após o advento da Constituição Federal de 1.988, na tese da responsabilidade subjetiva, para ensejar o direito de reparação pelos danos sofridos do lesado em virtude da atividade jurisdicional, consagrando somente em casos especialíssimos a responsabilidade para os erros judiciários no âmbito penal, excluindo o dever de reparar por danos civis.

Dos argumentos mais diversos, não só para o caso acima, como em tantos outros, debate-se ainda pela necessária demonstração do dolo ou fraude do magistrado, sob o crivo do artigo 133 do Código de Processo Civil brasileiro, ou ainda, de que somente indenizar-se-ia os prejuízos quando a atividade do Poder Judiciário falhasse, ou seja, quando se declarasse alguém culpado ou devedor, sem efetivamente o ser, com decisão transitada em julgado, e neste contexto, argüindo-se que somente nesta hipótese houve “falha” da Justiça.

Há, ainda, os que sustentam que se for reconhecido o direito de indenização do Estado por erro jurisdicional, estar-se-ia lesando a coletividade em prol de apenas um interesse individual. Esta é uma das realidades de nossas decisões judiciais.

Daí porque sempre é necessária uma reflexão do assunto, pois a independência do Poder Judiciário, ou melhor, da livre convicção do magistrado não poderá ser, em nenhum momento, pretexto caolho para proteger-se um erro, ou não reconhecer deste erro, o direito à reparação. Como adverte o ilustre Saulo José Cahali Bahia, a responsabilidade civil do Estado, pode-se dizer, evolui juntamente com o modo pelo qual o indivíduo se relaciona e participa da coletividade organizada, ou seja, com a democracia.


E no Brasil de hoje, a democracia não deve estar só relacionada com apurações de CPIs, inquéritos do executivo, combate à corrupção, etc., mas também com a finalidade de tolher a insuficiência da máquina judiciária, tanto na órbita administrativa ou jurisdicional, pois se não é o Estado que confere subsídios para a movimentação dos feitos judiciais, melhorando o aparelhamento, ampliando os cargos efetivos, bem como assumindo o risco da sua função, não é o indivíduo que deverá arcar por falhas em sua estrutura pessoal ou material. Afinal, foi o Estado que clamou para si, desde os primórdios da sociedade já civilizada, o dever de aplicar a Justiça a todo o litígio, seja na órbita penal como na órbita civil.

Em primeiro momento, é preciso discernir os pólos da responsabilidade civil. Não se pode confundir a responsabilidade do Juiz com a responsabilidade do Estado por erro jurisdicional. Naquele, para apurar-se sua responsabilidade pessoal, deve-se buscar o elemento subjetivo do agente, o dolo ou fraude, ou ainda se o mesmo recusar, omitir ou retardar, sem justificado motivo, providência que deva ordenar de ofício, ou a requerimento da parte, consoante reza os incisos I e II do artigo 133 da lei instrumental.

Já para apuração da indenização contra o Estado, ainda que seja por atividade jurisdicional, não se discute, em nenhuma hipótese, como fundamento da responsabilidade civil, a intenção dolosa ou culposa do magistrado. Basta que haja a prova do dano, o nexo de causalidade entre este com a decisão judicial, e esta última, tenha sido proferida em desobediência a fragrante texto expresso de lei, ou sob total ausência ou distorção de fundamento fático ou jurídico, e principalmente, quando está a ensejar a sua nulidade, por falta de motivação legal, nos termos do inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal, e nestes casos, ter-se-á o chamado erro jurisdicional.

O ordenamento jurídico vigente, analisado como um todo, para nós, não permitiu que o lesado promovesse uma ação indenizatória diretamente contra o magistrado, isto porque clamou para si a Constituição Federal de 1.988 a responsabilidade objetiva estatal, nos termos do parágrafo sexto do inciso XXI do artigo 37 da referida carta constitucional.

Esta posição encontra-se respaldo na sustentação da própria quebra da independência da magistratura, sob o risco de haver o receio do julgador de que futuramente a parte demandante ou demandada pudesse promover uma ação reparatória diretamente contra o mesmo. Aliás, adotar posição diversa, qual seja, de permitir que o lesado ingresse com ação diretamente contra o magistrado, dar-se-ia, de fato, a oportunidade para a propositura de inúmeras ações, nas quais nem sempre existe o direito lesado para obter-se a reparação, causando intranqüilidade ao próprio aplicador do Direito no exercício de sua judicatura.

No entanto, o artigo 133 do Código de Processo Civil foi dirigido exclusivamente à proteção do direito pelo Estado. É este o detentor do exercício da ação regressiva contra o magistrado nas causas em que for condenado a indenizar particulares em virtude de erro da atividade jurisdicional, e esta ação regressiva se dá por força da própria Constituição Federal, devendo-se, somente neste caso, demonstrar-se o dolo ou a sua culpa no exercício de sua atividade. O referido dispositivo processual caminha de forma paralela e em auxílio do próprio texto constitucional.

O lesado ingressa com ação indenizatória contra o Estado por erro da atividade jurisdicional, sob o fundamento da responsabilidade objetiva do mesmo, vale dizer, demonstrando o dano, o nexo de causalidade e o erro judiciário, e posteriormente, em ação regressiva, poderá valer-se o Estado do disposto do artigo 133, a fim de demonstrar o dolo ou culpa do magistrado, para obter indenização aos cofres públicos daquilo que teve que reparar, ainda que ocorra a culpa parcial do julgador.

Assim, existem dois pólos na relação jurídica, uma entre o lesado e o Estado, e outra entre este e o magistrado ou julgador. Divergindo cada qual, quanto à natureza do fundamento da responsabilidade civil. Na primeira objetiva, na segunda, subjetiva.

O princípio da livre convicção do magistrado e independência do seu exercício somente poderá se coadunar com nosso ordenamento, quando interpretado o artigo 133 do Código de Processo Civil brasileiro como fundamento de sua responsabilidade em benefício do Estado. Ou seja, somente nas ações em que o próprio Estado ingressa com ação regressiva contra o julgador, que jamais deixará de ser um agente público, é que o referido dispositivo terá efetividade e aplicabilidade aos casos concretos.

É de notar-se que referido artigo processual não se destinou, e ao que se tem em vista, nem era essa a finalidade da lei, de atribuir o direito subjetivo do particular de propor ação indenizatória contra a pessoa física do juiz, seja ele monocrático ou colegiado. Se assim fosse, o dispositivo constitucional que trata da responsabilidade objetiva dos agentes públicos seria letra morta ou norma legal facultada à escolha do exercício ao cidadão.


E o direito objetivo não é faculdade, mas disposição que deve ser observada. A norma é criada para ser cumprida, é impositiva, e ninguém se escusa de cumpri-la, alegando que a desconhece (artigo 3o da LICC). Dessa forma, o direito subjetivo, ainda que facultativo, do particular de exercer a reparação dos danos em virtude de erro judiciário só surgirá quando demandado contra o Estado, sob o fundamento da responsabilidade objetiva deste, exclusivamente.

Por outro lado, o Estado deverá valer-se da necessidade da prova do dolo ou culpa do julgador para demandar contra este, e neste passo, nem mesmo é faculdade de escolha ao órgão público em optar ou não pelo ingresso da ação indenizatória contra o mesmo, mas um poder – dever.

Daí porque o referido artigo processual determina expressamente que “Responderá por perdas e danos o juiz:..”. O diploma legal, que em seu âmago é de natureza cogente, e não obstante estar inserido no código processual, dá azo ao surgimento de um direito de fundo material, tal como ocorre, verbi gratia, com o artigo 159 do Código Civil. O Estado não é detentor da disponibilidade ou faculdade de demandar em juízo, tem ele o dever de pleitear indenização regressiva, por força até mesmo do princípio da indisponibilidade dos bens públicos.

Ora, se o Estado teve que indenizar um particular por falha da atividade jurisdicional, não é ele que terá que suportar unicamente o prejuízo causado, se o magistrado agiu sob as condutas previstas no inciso I e II do artigo 133, ou ainda por manifesta inaptidão (artigo 56, III da LOMAN).

Coisa diversa o será, se da atividade jurisdicional decorreu uma lesão a um direito individual, independentemente da ocorrência das hipóteses legais da responsabilidade subjetiva do julgador, e dessa lesão, haja o nexo de causalidade entre o dano e o erro judiciário, critérios estes norteadores da responsabilidade objetiva. Neste último caso, só o Estado terá que suportar os prejuízos, não fazendo jus o ente estatal, nem mesmo ao direito de regresso contra o julgador, na qual sua conduta originou prejuízos ao particular.

Não se pode olvidar que o direito constitucional brasileiro desde 1.969, artigo 107, já estabelecera a responsabilidade do Estado por ato de seu funcionário que, nessa qualidade, cause dano ao particular. Conquanto o juiz seja órgão de um Poder e em sentido lato é equiparado ao funcionário público, a doutrina admitiu a responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais decorrentes do erro judiciário, posto que o mesmo em seu exercício atua como agente público. A responsabilidade pessoal do juiz surgiu após o advento do Código de Processo Civil de 1.939.

Dessarte, a responsabilidade civil do Estado, sendo direta e objetiva, assegurou-lhe o direito de agir regressivamente contra o funcionário autor do dano, ainda que este seja o magistrado.

Conclui-se, portanto, que a responsabilidade do Estado é objetiva e se funda na doutrina do risco, cabendo à Fazenda Pública suportar os prejuízos causados por seus representantes, ainda que este seja o juiz monocrático ou colegiado. Mas os danos, posto que inicialmente assumidos pela referida pessoa jurídica, devem ser cobrados ao autor que os causou.

O Direito brasileiro resolveu, assim, o grave problema de saber se é o Estado ou o funcionário quem pratica o ato lesivo do patrimônio do indivíduo, e este princípio, que guarda em seu bojo, a própria eqüidade e critério de Justiça não pode ser excluído para hipóteses de responsabilização do Estado por atividade jurisdicional, pois o direito civil hodierno está a se inclinar para a ampliação máxima de viabilização do exercício de reparação, e onde houver dano, deverá o direito e a ciência do direito inclinar-se para o seu ressarcimento.

A questão fulcral da responsabilidade civil do Estado por erro judicial se debate quanto à responsabilidade por erro na órbita civil, já que no âmbito penal é expressamente reconhecida pela Constituição Federal. Mas será que a Constituição Federal de 1.988 somente reconhece o erro judiciário em processos na órbita penal, em virtude da expressão “condenado” utilizada no inciso LXXV do art. 5o? Flagrantemente, a resposta será negativa.

Para tanto, é preciso analisar o referido texto constitucional em momentos distintos. O inciso LXXV do artigo 5o utilizou-se do termo “condenado”, mas a expressão não se restringe aos condenados no processo penal, mas também aqueles que são vencidos ou derrotados nos processos judiciais da seara civil, ainda que seja por decisão não transitada em julgado, mas que tenha causado um prejuízo decorrente de erro jurisdicional.

Acrescentou-se, ainda, na segunda parte do permissivo constitucional, as hipóteses em que alguém permaneça preso além do tempo fixado na sentença, mas tal diz respeito não propriamente a erro jurisdicional, mas da mera atividade administrativa do poder Estatal, no caso a atividade carcerária.


Demais disso, o ordenamento jurídico constitucional estabeleceu de forma taxativa, que a lei jamais poderá excluirá de apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, ex lege, do inciso XXV do artigo 5o da CF/88. Observando-se o referido dispositivo, poderíamos perguntar: Seria constitucional ou recepcionado pela carta política uma lei hipotética a qual estabelecesse que os erros decorrentes da atividade jurisdicional não poderiam ser apreciados pelo Poder Judiciário, ainda que desse erro decorresse uma lesão? Concluir-se-ia que não se admitiria recepção de tal norma, isto porque a Constituição Federal não permitiu que nenhuma lesão de direito ou ameaça seria excluída de apreciação do Poder Judiciário, e isto se inclui, notoriamente, lesões de direitos causadas pelo próprio Poder Judiciário.

Consentir que somente as lesões de direito ou ameaça a este causadas por erros jurisdicionais deixariam de ser apreciadas pelo Poder Judiciário, seria consentir no autoritarismo e arbitrariedade das decisões, alheio ao Estado democrático. A propósito, o erro judiciário jamais exclui as decisões em matéria civil, conforme muito bem pondera Bonnard,”Droit Administrattid, 1.93, p. 96, na França, citado por Yussef Said Cahali, tratando da responsabilidade civil do patrimônio público, na qual esclarece, discorrendo sobre a responsabilidade do Estado pelo fato dos serviços judiciários, demonstrando que as vítimas de um erro judiciário, depois de uma condenação (civil ou penal) injusta, podem reclamar indenização.

Observa que, sem chegar a hipóteses igualmente extremas, pode haver prisões preventivas abusivamente prolongadas, inquéritos com a publicidade que lhes é dado, processos que terminam por arquivamento, tudo isso podendo trazer prejuízos talvez irreparáveis ao crédito de um comerciante. Mesmo no cível pode haver condenações injustificadas. Assim, o funcionamento defeituoso da Justiça pode causar prejuízos diversos, e algumas vezes, de maior gravidade até mesmo do que uma condenação criminal.

No direito comparado, na síntese precisa de Augusto do Amaral Dergint: “soluções recentes denotam a derribada da inconsistente tese da irresponsabilidade do Estado por atos judiciais (inclusive os jurisdicionais)”. Por isso, acrescenta aquele jurista: “a responsabilidade do Estado por atos judiciais, nestes catalogados também os jurisdicionais, é espécie do gênero responsabilidade do Estado por atos decorrentes.”

Philippe Ordant, “La Responsabilité de La Puissance Publique”, p. 179, com muita propriedade ressalta: “Dizer-se ser o Poder Judiciário soberano, para daí deduzir que o Estado está desobrigado de indenizar os prejuízos resultantes de seus atos, constitui um argument de masse, que não resiste a menor análise”. No mesmo sentido, são os comentários do jurista Lafayette Pondé, em “Responsabilidade Civil do Estado pelos Atos do Ministério Público”, RF 152:44.

A idéia de soberania do Estado, para consagrar-se a tese de sua irresponsabilidade por erro da atividade jurisdicional, não tem o menor sustento quando recordemos que se o Estado reclama obediência cega e ilimitada dos particulares à sua vontade, através das leis, mas o mesmo, em si, não lhe dá observância, não estamos diante de um Estado na qual se insere o mínimo de garantia e direitos individuais, sendo estes, no entanto, pré-requisitos para a dignidade e liberdade humana. Este dever do Estado submeter-se às próprias leis, observando os direitos e garantias individuais, e, nesse contexto, reconhecer o direito de indenização por erro jurisdicional, é um dever suprapositivo e natural.

Por isso, se eliminarmos os óbices naturais e os legais, a soberania seria incontrolada, como última instância. Daí porque se vislumbra no direito divino a fonte desta limitação ou em normas supralegais. Esta, aliás, é a solução de Gustav Tadbruch, em Filosofia do Direito, Coimbra, Amado Editora, 1974, comentado pelo ilustre Elcir Castelo Branco. Logo, sujeitar o Estado às próprias leis é também sujeitar o Estado à reparabilidade dos danos causados em decorrência de sua atividade, ainda que seja ela a atividade jurisdicional, para dizer, de forma tranqüila e serena, que os direitos individuais são assegurados, como interesse da própria coletividade, e destarte, assegurado a plena democracia no direito brasileiro, pois, o interesse da proteção dos direitos e garantias individuais não são metas de um indivíduo ou de alguns apenas, mas sempre de toda a sociedade.

Bem, e a questão posta no início deste estudo?

Primeiro, devemos observar que é ônus do autor em qualquer demanda judicial, indicar o representante legal da pessoa jurídica, e para tanto, anexar à petição inicial a última atualização do contrato social da sociedade ré (STJ, Recurso Especial n. 1.253, em DJU de 19.02.90; RT 55/773, e RT 515/211). E, ainda assim, se ocorrer, a posteriori, a citação em nome de ex-sócio, em virtude de alteração societária, ainda que seja no ínterim da propositura da ação judicial e a data em que realmente se efetivou a citação, nova cópia do contrato social deverá ser providenciada, e requerido novo pedido citatório.


Segundo, não se deve confundir responsabilidade civil por dívida patrimonial com poderes de representação da sociedade comercial. Em processo falimentar, caso houvesse a citação na pessoa do atual sócio, no caso, Sra. Mélvia, e esta não adimplisse com a obrigação, poderia, em tese, os ex-sócios responderem pelo período anterior de dois anos, e para tanto, o MM. Juiz, proferiria uma decisão judicial decretando a quebra na pessoa dos atuais sócios, com oitiva dos seus anteriores.

Contudo, nunca poder-se-ia falar em representação processual da pessoa jurídica por ex-sócio, conforme os seguintes dispositivos legais: art. 13, da Lei Falimentar 7.661/45; art. 12, inciso VI, 214, 215, 217, 219, e 247 do Código de Processo Civil, e art. 17 do Código Civil; e ainda, por ofensa à própria lei n. 4.726/65, art. 39, c/c ao art. 37, inciso II, n. 2, pois, o chamado efeito retroativo se dará, se o registro da alteração societária for efetivado em até 30 dias da data efetiva da venda da sociedade.

E no caso hipotético, restou claro que, mesmo que a venda tenha sido feita posteriormente aos 30 dias, os seus efeitos são ex nunc, e logo, vigentes a partir da data da concessão da Junta Comercial. E mesmo após esta data, a citação deu-se, nesta hipótese, 30 dias após.

Em terceiro, uma vez constatado o equívoco material quanto à confusão de “datas” feita pelo juiz monocrático e até mesmo pelo Tribunal, ou seja, ocorrera confusão quanto à data do registro na Junta Comercial e a data efetiva da citação, embora tivesse suficientes documentos juntados aos autos, inclusive, pelo próprio ofício trazido por aquele órgão, mister é reconhecer que ocorreu, in casu, o erro material, intolerável elemento norteador para a ocorrência do chamado dano injusto.

Em quarto, o reconhecimento judicial de que o ex-sócio não tem poderes de representação processual, já é fundamento suficiente para reconhecer o seu direito também à reparação por eventuais danos, pois, o artigo 20, parágrafo único do Decreto-Lei 7.661/45, diz expressamente que: “Quem por dolo requerer a falência de outrem, será condenado, na sentença que denegar a falência, em primeira ou segunda instância, a indenizar ao devedor, liquidando-se na execução da sentença as perdas e danos. Sendo a falência requerida por mais de uma pessoa, serão solidariamente responsáveis os requerentes. Parágrafo Único: Por ação própria, pode o prejudicado reclamar indenização, no caso de culpa ou abuso do requerente da falência denegada”.

Desta maneira, poderá o ex-sócio promover ação não só contra o Estado, mas também em face da empresa requerente da demanda, por pleitear a validade de uma citação nula, utilizando-se do pedido falimentar como instrumento coativo para o recebimento de quantia, por quem não tem quaisquer poderes de representação.

Em quinto, não há que se falar em concorrência de culpa por parte daquele ex-sócio que não alterou na Junta Comercial um mês após a data de sua efetiva saída, se o mesmo, quando recebida a citação, apresentou imediatamente em juízo o comprovante de registro de alteração social com data timbrada pela Junta um mês antes da sua citação. Fato este que, oficialmente, não pode, de per si, dar interpretação de qualquer fraude ou má-fé, pois, para tal, a prova teria que ser cabal e consistente.

E, ainda assim, a lei determina a citação na pessoa do representante legal, e quanto à responsabilidade da dívida, se esta realmente não foi adimplida pelo atual sócio, poderá, aí sim, ser exigida contra os ex-sócios.

E, em sexto, e por último, a restrição nominal decorrente de lançamento do nome de ex-sócio como sendo devedor, bem como por sofrer abalo quanto à sua honra e o seu nome comercial implicam na violação à sua integridade moral, pois são bens pertencentes à personalidade do indivíduo, na qual devem ser flagrantemente indenizados.

Pois, afinal, reconheceu-se, pelo próprio Poder Judiciário, a nulidade de um ato judicial, aliás, sob o crivo da querela nullitatis insanabilis, e logo, não só os efeitos deste ato judicial, mas também efeitos diretamente dela decorrentes, como o registro automático através de convênio do Tribunal de Justiça com o referido órgão de crédito (SERASA; SCPC), deverá ser motivo de pedido cumulativo de indenização por reparação pelos danos materiais e morais sofridos (Súmula 37 do STJ).

Dessa forma, uma vez reconhecida a nulidade de uma citação em processo falencial, na qual teve anteriormente todos os seus efeitos surgidos para ex-sócios e para a própria sociedade, havendo prejuízos morais, notadamente, restrições nominais junto a órgãos de crédito, mister é reconhecer no reconhecimento não só da nulidade do processo, como também nas conseqüências que do ato decorreu pela empresa requerente da falência e pelo Estado, consoante estabelece o caput e parágrafo único do artigo 20 da Lei de Falências, pois, o argumento de que seria tão somente o magistrado responsável pelos atos viciados ensejadores de violação, como ocorre com a falência, também importa na co-responsabilidade da empresa que requereu a citação em pessoa que não era mais representante legal de determinada sociedade.

E, desta posição adotamos, em face do princípio da dignidade da pessoa humana e da soberania não do Estado, mas da Nação, e desta, cada um de nós é parte.

Bibliografia

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