Falso testemunho

Luiz Flávio Gomes comenta lei sobre falso testemunho

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12 de outubro de 2001, 11h03

A Lei 10.268 entrou em vigor no dia 29 de agosto de 2001, data de sua publicação, tendo alterado dois artigos do Código Penal: artigo 342 (falso testemunho ou falsa perícia) e artigo 343 (corrupção ativa de testemunha ou perito). Tais dispositivos passaram a ter a seguinte redação:

Falso testemunho ou falsa perícia

Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Parágrafo 1.º As penas aumentam-se de um sexto a um terço, se o crime é praticado mediante suborno ou se cometido com o fim de obter prova destinada a produzir efeito em processo penal, ou em processo civil em que for parte entidade da administração pública direta ou indireta.

Parágrafo 2º O fato deixa de ser punível se, antes da sentença no processo em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade (NR).

Art. 343. Dar, oferecer, ou prometer dinheiro ou qualquer outra vantagem a testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete, para fazer afirmação falsa, negar ou calar a verdade em depoimento, perícia, cálculos, tradução ou interpretação:

Pena – reclusão, de três anos a quatro anos, e multa.

Parágrafo único. As penas aumentam-se de um sexto a um terço, se o crime é cometido com o fim de obter prova destinada a produzir efeito em processo penal ou em processo civil em que for parte entidade da administração pública direta ou indireta. (NR)

2. As inovações trazidas pela Lei 10.268/01

a) ao artigo 342

a1) no caput foi incluído como sujeito ativo o contador; os demais sujeitos ativos (testemunha, perito, tradutor ou intérprete) foram mantidos;

a2) a Lei alterou a redação do caput e, ao mesmo tempo, atualizou o tipo penal substituindo a expressão processo policial por inquérito policial. Tal inovação era necessária tendo em vista que, desde a Constituição Federal de 1988, já não se admite aquela figura (processo policial), não tendo ocorrido a recepção dos arts. 26 e 531 e ss. do CPP que previam o processo sumário. (1) A persecutio criminis, como se sabe, desenvolve-se em duas etapas: (a) fase preliminar investigatória; (b) fase processual. Uma coisa, portanto, é o inquérito policial, outra bem distinta é o processo judicial;

a3) a qualificadora anteriormente existente no parágrafo 1º (finalidade de produzir efeito em processo penal), com pena de dois a seis anos de reclusão e multa, foi substituída por uma causa especial de aumento de pena, de um sexto a um terço (lei nova mais favorável);

a4) a causa de aumento de pena relacionada com o suborno (art. 342, parágrafo 2º, anterior), que antes era fixa (aumento de um terço), foi também inserida na nova causa especial de aumento de pena de um sexto a um terço (lei nova mais favorável). De causa fixa passou a causa variável. Esse aumento de pena, em ambas as hipóteses, incide, evidentemente, sobre a pena do caput: de 1 a 3 anos de reclusão e multa;

a5) outra novidade: também se aumenta a pena (mesmos limites) nos processos civis em que tenha sido parte entidade de administração pública direta ou indireta;

a6) está mantida a possibilidade de retratação para os casos previstos no art. 342, parágrafo 3º (agora parágrafo 2º), encerrando-se antiga divergência interpretativa acerca do tempo hábil para a retratação: se até a sentença relativa ao processo por falso testemunho ou se se limitaria àquela prolatada no processo em que ocorreu o ilícito. A nova Lei define-se por esta última. O fato, portanto, “deixa de ser punível” se, antes da sentença, no processo em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade. Trata-se de causa extintiva da punibilidade, nos termos do art. 107 do CP.

b) ao artigo 343

b1) tal qual o artigo 342, houve acréscimo no caput para fazer incluir a figura do contador;

b2) em decorrência disso, o rol de objetos materiais previstos na mesma norma teve que ser estendido, a fim de abarcar os “cálculos”;

b3) a nova lei omitiu a frase que encerrava o caput na antiga redação: “ainda que a oferta não seja aceita”. Na visão clássica, sendo crime formal, sua consumação ocorre no momento em que o sujeito ativo pratica a conduta, não importando se houve, ou não, aceitação da oferta. Examinado o delito, entretanto, desde a perspectiva do princípio da ofensividade, será sempre necessário comprovar a idoneidade da conduta (dar, oferecer, ou prometer dinheiro ou qualquer outra vantagem) para lesar o bem jurídico (administração da Justiça, imparcialidade da Justiça, o valor justiça que deve estar presente na sentença etc.). A conduta deve causar um risco proibido e o bem jurídico deve ingressar no raio de ação desse risco.

b4) a pena privativa de liberdade que era de um a três anos foi largamente elevada, chegando aos limites punitivos de três a quatro anos;

b5) a causa especial de aumento de pena que incide nos casos de a destinação envolver processo de natureza penal, e que na redação anterior provocava o aumento de o dobro da pena, passa a ter os seus limites fixados entre um sexto a um terço;

b6) por fim, o legislador repetiu a mesma inovação realizada no artigo 342, fazendo com que a majorante mencionada no item anterior também incida nos casos em que se tratar de processo civil em que for parte entidade da administração pública direta ou indireta.

3. A Lei 10.268/01 no tempo

A nova Lei, em quase todos os seus dispositivos, traz alterações que são prejudiciais ao réu, não podendo, por este motivo, retroagir.

A única exceção refere-se às até então qualificadoras que, agora, passam a ser tidas como causas de aumento de pena, com limites menores do que aqueles que vigoravam anteriormente. Assim, na hipótese de o crime ter sido cometido com o fim de obter prova destinada a produzir efeito em processo penal, a pena deverá ser aumentada entre os limites de um sexto a um terço.

Desta forma, o art. 342 que, anteriormente, previa para este caso a pena de dois a seis anos, passa, com o acréscimo de um sexto a um terço a incidir sobre a pena prevista no caput (um a três anos), o que é mais favorável; no caso do art. 343, a previsão era de que a pena da figura principal (um a três anos) sofresse um aumento do dobro.

De acordo com a nova Lei, passa, doravante, a incidir aumento de um sexto a um terço. Ambas as hipóteses, portanto, são favoráveis ao réu, devendo a Lei retroagir para alcançar todos os casos, inclusive os que já se encontram com trânsito em julgado (art. 2º, parágrafo único, CP).

Acrescente-se que o mesmo ocorre em relação à circunstância de quaisquer das condutas descritas no art. 342 terem sido praticadas mediante suborno. Neste caso, a majorante, antes prevista como sendo de um terço, passa a ter seus limites rebaixados para um sexto a um terço. Mais benéfico, também, portanto.

4. Hipóteses não previstas pela Lei

De acordo com Cezar Roberto Bitencourt, “as mesmas condutas incriminadas no caput [do art. 342] são atípicas quando praticadas em inquéritos parlamentar, administrativo ou judicial, porque estes não se confundem com o inquérito policial e os princípios da reserva legal e da tipicidade não admitem analogia e interpretação extensiva.” (cf. Lei 10.268/01: considerações tópicas sobre as inovações, www.ibccrim.com.br). No que concerne às sindicâncias chega-se à mesma conclusão: não estão previstas no art. 342.

5. A nova causa majorante da pena: efeito em processo civil em que for parte a administração pública direta ou indireta

César Roberto Bitencourt recomenda extremo cuidado em relação a esta majorante. Para o autor, “parte, aqui referida, não se confunde com sujeito passivo do crime; este integra o plano material, aquela situa-se no plano processual. Por isso, o fato de o crime ser cometido contra a Administração pública, por si só, não configura a majorante, sendo indispensável que aquela seja “parte”, ativa ou passiva, em ação processual civil e a conduta incriminada objetive produzir efeitos nessa ação processual.” (cf. Lei 10.268/01: considerações tópicas sobre as inovações, www.ibccrim.com.br).

6. Elevação desmesurada da sanção penal para o delito previsto no art. 343

Ao alterar os limites punitivos, triplicando a pena mínima (que, agora, alcança exatamente o montante antes previsto como limite máximo, ou seja, três anos) e elevando em um ano a pena máxima em relação àquela anteriormente cominada, chegando a um total de quatro anos, o legislador incorre em dois graves equívocos:

1º: violação ao princípio da proporcionalidade: inexiste qualquer justificativa de caráter racional que autorize tão elevado rigor punitivo (pena de três a quatro anos). A corrupção ativa prevista no art. 343 é similar, em termos de gravidade, àquela outra, de caráter genérico, prevista no art. 333 do CP, cuja pena é de um a oito anos.

Merece observar que a Lei 10.268 não trouxe qualquer alteração em termos de sanção ao outro dispositivo penal que é também seu objeto (art. 342), sendo que a diferença existente entre ambas as normas não justifica a elevada discrepância em termos de rigor sancionatório, principalmente quando se verifica que ele também pode ser praticado mediante suborno.

Analisando-se a questão sob a perspectiva da lesão ao bem jurídico (administração da justiça), observa-se que o tipo penal que prevê a pena mais severa (art. 343) refere-se a um perigo de dano, enquanto que no outro, cuja reprimenda é mais suave, tem-se a efetiva lesão ao bem jurídico.

Em suma: para testemunha que mentiu mediante suborno e induziu em erro o juiz, pena de 1 a 3 anos com aumento de um terço a sexto; para quem deu dinheiro para ela mentir, pena de 3 a 4 anos. Não é fácil justificar tratamento sancionatório tão díspar. O desvalor da ação em ambos os casos é muito intenso, logo, as penas não poderiam ser tão diferentes.

2º: estreitamento do âmbito dos limites sancionatórios: entre o mínimo e o máximo cominado no tipo penal há uma distância muito pequena, o que dificulta a que se cumpra com o princípio da indivualização da pena, caracterizando, de acordo com Cézar Roberto Bitencourt, “verdadeira tarifação penal (taxatividade absoluta das penas), eliminada pelo Código Napoleônico de 1810.”

O processo de individualização da pena, como se sabe, está presente em três fases: na cominação da pena, na aplicação e na execução. Se não há equilíbrio na primeira fase (abstrata), a tendência é que a injustiça se perpetue nas seguintes. O estreitamento demasiado entre os limites mínimo e o máximo significa desconfiança do legislador no aplicador da lei (um retorno da concepção rousseauniana ou da Revolução francesa, que forjaram a figura do juiz que exclusivamente pronuncia as palavras da lei: la bouche de la loi).

Ao mesmo tempo revela a suposição de que ele (legislador) consegue estabelecer a pena com maior justiça. Mas isso é uma mera suposição, mesmo porque a perspectiva do legislador é necessariamente ante factum, enquanto a do juiz é post factum. Tendo em vista todas as circunstâncias judiciais do art. 59, melhor, sempre, é deixar uma razoável margem para que o juiz encontre o que é justo em cada caso concreto.

Considerações finais

Tem sido praxe do legislador brasileiro nestes últimos anos editar leis repletas de defeitos de técnica legislativa quando não de vícios de inconstitucionalidade. A que ora se comenta segue na mesma linha. Resta-lhe, todavia, um considerável mérito: o de ter atualizado o artigo 342 que ainda fazia menção a “processo” policial e de ter incluído, dentre os sujeitos ativos do crime, a pessoa do contador.

A nova majorante prevista na Lei e que incide nos casos em que a o crime tenha sido cometido com a intenção de obter prova em processo civil em que for parte entidade da administração evidencia uma outra tendência atual do Direito penal brasileiro, que é a de privilegiar o funcionamento do sistema, muitas vezes em detrimento de bens que digam respeito à pessoa.

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