O terror do calote

Calote de precatórios é uma forma de terror de Estado

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7 de outubro de 2001, 18h36

Os recentes e lamentáveis acontecimentos em Nova Iorque reforçam a idéia de que o império americano chegou ao fim de um capítulo glorioso (dez anos de paz e progresso sem limites, após o esfacelamento da antiga União Soviética). Na esteira do revide militar que virá, toda a humanidade precisa abandonar sua acomodação e hipocrisia e repensar sua ordem e instituições.

Como já disse Henry Kissinger, “é impressionante como a falta de opções traz lucidez às pessoas”.

A globalização está aí e algumas das ferramentas que certamente serão afiadas pelos países que mandam no mundo, nesta transição mundial para um novo establishment e um mundo, presumivelmente, mais seguro, serão os controles financeiros, transparência e auditoria nas contas públicas e privadas. Esperemos que respeitem a ética, privacidade, necessidade de autorizações judiciais e outros princípios sagrados de Direito.

O atual ministro do Tesouro americano, Paul O’Neill, está inclusive vendendo a idéia ousada da criação de uma nova ordem econômica internacional, com o reconhecimento e formalização de concordata e falência de países.

Isto certamente terá muita dificuldade em prosperar e pode parecer chocante, a princípio, uma indevida “intromissão nos assuntos e soberania interna dos países”.

Banqueiros, empresários, comerciantes e quem milita no dia a dia dos Fóruns do Brasil (quando não estão em greve) sabem que a insolvência DE FATO das empresas precede necessariamente à sua constatação e formalização JURÍDICA.

Com os países e outros entes públicos (Estados, municípios, autarquias, etc.) não é diferente: a impossibilidade de pagamento de suas dívidas é um fato, econômico e jurídico, anterior às medidas para seu enfrentamento civilizado.

No nosso Brasil (ordem e progresso, lembram-se?), é fato notório que nenhum ente público paga em dia ordens judiciais para quitar débitos apurados em processo regular no Judiciário (na grande maioria, não por impossibilidade, mas pelo simples fato de que não existe sanção = impunidade).

A União é a melhor pagadora e o Oscar da inadimplência (nas categorias principais, estoque de dívida e efeitos especiais de procrastinação e mídia) vai para o Estado de São Paulo, devedor confesso de algo como US$ 5 bilhões (a imprecisão dos números será discutida mais tarde).

Em categorias menores, como longevidade de inadimplência, despontam Alagoas e Goiás, por exemplo, coadjuvantes no show do calote, e que há décadas não pagam absolutamente nada, precatórios alimentares ou não, com ou sem moratória…

Em 1988, tentou-se uma moratória (8 anos) para o então estoque de dívida judicial, que foi rigorosamente ignorada ou descumprida parcialmente.

Agora, através de mais uma Emenda (nº 30) à festejada “Constituição Cidadã (?)”, chegamos a uma segunda moratória (10 anos) que, pelo andar da carruagem, também corre o risco de não “pegar”.

Conclusão: os Poderes Públicos brasileiros estão falidos ou concordatários, senão financeiramente, pelo menos na ética e efetivação das decisões judiciais.

O cenário é desolador, quase um Afeganistão jurídico: A balbúrdia legislativa impera no país, com um Congresso que parece mais Delegacia de Polícia; um Executivo que se aproveitou ad nauseam das oportunidades de editar Medidas “Provisórias”, e um Judiciário sonolento, enfraquecido, gerido por bacharéis de Direito sem nenhuma experiência administrativa, engessado dentro de limites orçamentários fixados arbitrariamente e que dedica a maior parte de seu tempo a rolar a dívida do Executivo, com infindáveis recursos…

No tumulto, prevalece a vontade do Poder Executivo, “dono do dinheiro”, que age como gerente de gafieira e grita para todo mundo se comportar, senão os moços do FMI e os mercados não vão gostar nada… E o Brasil não pode se dar ao luxo de afrontar o fornecedor da mercadoria “crédito”. O que fazer?

O retrato legislativo e judiciário atual não deixa mais opções: ou o Poder Público paga suas dívidas judiciais ou estará sujeito a intervenção Federal (no caso do Estado) ou Estadual (nos municípios).

Se as intervenções não forem julgadas ou efetivadas, por razões políticas ou outras sensibilidades não-jurídicas, só resta denunciar o Brasil como um país não-civilizado, onde é impossível processar o Governo. Denunciar onde?

Em instituições financeiras de crédito, Direitos Humanos e Fóruns no exterior (p. exemplo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, conforme o art. 25 do Pacto de San José, onde os países se comprometem a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso).

A repercussão jurídica dessas denúncias pode ser efêmera, mas afetaria o crédito financeiro e político do país, no mínimo dificultando os empréstimos e aumentando os juros cobrados pela banca internacional, dentro da percepção correta de aumento de risco de crédito soberano.

Hoje em dia é impossível se obter empréstimos internacionais no Banco Mundial, BID, etc., sem garantia de respeito ao meio-ambiente, indígenas, etc.

Acrescentemos a esta listagem de exigências, o cumprimento efetivo de decisões judiciais. Não é razoável que um cacique de tribo tenha mais poder de veto nos foros internacionais que os Presidentes do Poder Judiciário, Federal e Estaduais. Enfim, e mais uma vez, existem alternativas?

Antes de mais nada, é preciso nomear-se um grupo de trabalho controlado por entidades da sociedade civil, fora do controle estatal, para se chegar a números definitivos.

Enquanto o Poder Público continuar procrastinando indefinidamente seus pagamentos, especialmente através de recálculos permanentes (advindos dos fantásticos planos econômicos, e de sua própria torpeza em não pagar), não há conta, número, exercício ou projeção realística que possa ser feita e trabalhada.

Os números de precatórios hoje (seguramente muitos bilhões de dólares) estão confortavelmente escondidos embaixo do tapete dos balanços públicos, o que facilita a apresentação de contas (“frias”) pelos governos e a permanente cobrança de juros importantes pela banca internacional, que se aproveita da situação e finge não saber o que está acontecendo.

Em resumo, este é o primeiro passo, ou seja, a cristalização de números. O ministro Marco Aurélio, presidente do STF, deu corretamente um primeiro passo neste sentido, oficiando aos Tribunais Estaduais, mas estes não se mostram exatamente ansiosos ou dispostos a revelar o tamanho da falta de efetividade e irrelevância de suas decisões.

O segundo passo, seria o Poder Público aceitar negociar com seus legítimos credores um menu de opções para pagamento, dentro de uma equação que suporte as necessidades mínimas de custeio e investimento, limitados a um percentual de arrecadação efetiva, por exemplo. Tudo com monitoração e auditoria externa.

Revisões de bilhões já foram feitas para a dívida externa do Brasil, com centenas de credores, e não há razão para que algo parecido não possa ser feito com os precatórios.

O cardápio certamente exigiria providencias legislativas e poderia incluir: (a) audiências compulsórias de tentativa de conciliação, para precatórios acima de certo valor importante, sob a Presidência dos Tribunais competentes (b) troca de créditos por novos papéis públicos de longo prazo, que poderiam ser utilizados, a critério dos credores, total ou parcialmente no pagamento de impostos e taxas, privatização, compra de ativos ociosos, imóveis, leilões, concessões de todo tipo, desde telecomunicações a cemitérios, rodoviárias, outdoors, etc.

Precatórios contra prefeituras pequenas poderiam ser negociados com os Estados ou União, que renegociariam o crédito a longo prazo, com exigências de gestão e garantia via repasse de impostos.

Ainda nesta linha de compensação de dívidas ativas com dívidas passivas (precatórios), poderíamos alterar a legislação de mercado de capitais, possibilitando que companhias abertas, com dívidas fiscais, emitissem ações a serem subscritas e pagas com precatórios.

A dívida de impostos da empresa seria paga com os precatórios, o seu Balanço ficaria muito melhor, o Governo reduziria sua moratória e os credores do governo receberiam ações, que poderiam se valorizar na Bolsa, recuperando eventual deságio e possibilitando liquidez imediata (total ou parcial, conforme as necessidades do credor).

Finalmente, quanto às chamadas indenizações “ambientais”, que tanta celeuma produzem na imprensa, com cargas venenosas de desinformação veiculadas maldosamente, precisamos todos, governo e particulares, partir de uma premissa positiva hoje aceita internacionalmente: florestas e áreas de preservação têm um valor substancial, não apenas para o particular ou para o governo, e sim, para toda a humanidade.

São “ativos ambientais” que se contrapõem ao passivo ambiental (poluição), produzido principalmente pelo primeiro mundo, e em larga escala pela emissão de gás carbônico (fumaça dos automóveis).

E o Brasil, evidentemente, tem um ativo ambiental como poucos, ou talvez ninguém no mundo tenha.

O Congresso discute hoje ativamente a revisão do texto do Código Florestal, em especial o capítulo de percentuais obrigatórios de reservas florestais, mas de forma maniqueísta (os ambientalistas “do bem” contra os ruralistas “do mal”), emocional e radical. Os escoteiros do verde contra a máfia do desmatamento e da indenização…É preciso trazer serenidade e moderação ao debate.

Ao invés dos particulares ficarem processando o Governo infinitamente na Justiça, pelas restrições efetivas à exploração da propriedade, porque não mandar esta conta ao primeiro mundo, que já desmatou tudo a que tinha direito, matou índios à la General Custer, tem dinheiro de sobra, se preocupa com o meio ambiente, e precisa que o terceiro mundo (onde estamos, presumivelmente) esteja bem, para estabilidade política e garantia dos “mercados”?

Poderíamos, mais uma vez, “securitizar” (um anglicismo lamentável, de “securities”, títulos negociáveis) os ativos ambientais brasileiros, vendendo estes papéis no mundo, sem prejuízo da soberania nacional, pois estamos falando primordialmente do “serviço de seqüestro de carbono” (estaríamos alugando as máquinas árvores, por um período limitado de tempo), sem transferência de propriedade do imóvel, e sem prejuízo do ativo genético, fauna, minerais e outros valores intrínsecos do local.

O veículo legal seria o chamado Protocolo de Kyoto, que, apesar de e talvez em virtude dos tropeços isolacionistas iniciais da nova Administração Bush, começa a decolar, e nova reunião no Marrocos, em Outubro, pode acelerar a efetividade de novos negócios.

Os proprietários receberiam algo por suas propriedades (que poderiam, ainda, ser vendidas a Fundações e outras organizações ambientais, com visão e recursos de longo prazo), os governos não pagariam precatórios, os ativos ambientais permaneceriam no país, onde entraria moeda forte, sem retorno de principal, juros ou dividendos.

Ativos e passivos públicos poderiam ser capitalizados numa sociedade de propósito específico (SPE), cuja finalidade única seria administrar créditos e débitos, sempre com a participação dos credores e da sociedade organizada.

O Estado de São Paulo tentou, no passado, algo parecido, através da Companhia Paulista de Ativos e de uma lei efêmera, que permitia a compensação de ICMS com precatórios. As idéias eram boas, mas foram muito mal executadas.

Enfim, dentro da realidade nacional `as vezes desanimadora, as dívidas ativas e passivas podem ser administradas responsável e inteligentemente. Os credores não podem esperar mais, os valores se tornaram gigantescos, e é preciso parar de brincar com coisas tão importantes (direitos humanos, ambientais, Justiça, responsabilidade fiscal).

Concluo fazendo um apelo para que demos uma oportunidade aos banqueiros, profissionais do ramo do dinheiro, crédito e reestruturação de dívidas. O último Amador que deu certo, foi o Aguiar, do Bradesco…

Ao contrário do mito negativo, existem grandes empresários no ramo financeiro, brasileiros dignos e com responsabilidade social. Além disto, o Congresso, Poder Judiciário e o governo já se mostraram incompetentes para o resolver o assunto.

Os velhos romanos, em seu Império bem anterior ao atual americano, cansados da incompetência gerencial e corrupção, já leiloavam para os publicanos (particulares) o direito de cobrar impostos, com isto recebendo antecipadamente um dinheiro certo e sem influências políticas.

A terceirização, tão proclamada pelos gurus atuais de administração, já existe há séculos, e pode ser um remédio para a cura da doença crônica dos precatórios.

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