Showrnalismo

José Arbex lança livro sobre o cinismo da imprensa

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3 de outubro de 2001, 9h34

Pelo menos 100 mil pessoas, incluindo mulheres, adolescentes e velhos iraquianos, morreram sob as 88,5 mil toneladas de bomba que os Estados Unidos despejaram sobre Bagdá, durante quarenta dias e noites, em janeiro e fevereiro de 1991. Mas quem acompanhou a transmissão da guerra ao vivo e em cores, em tempo real, feita pela rede mundial de televisão a cabo CNN, não viu sequer uma morte. As imagens mostraram uma guerra sem sangue, em que “armas cirúrgicas” acertavam precisamente o alvo, evitando perdas inúteis.

A mídia impressa, incapaz de competir com o impacto da transmissão ao vivo, utilizou as imagens distribuídas pela televisão para “analisar” o desenvolvimento do conflito e elaborar as notícias. Reforçou, com isso, a versão da “guerra limpa”, que, para utilizar uma expressão muito comum à época, mas se assemelhava a um videogame.

Como foi possível levar a opinião pública a aceitar a versão absurda de que ninguém morreu em Bagdá, então uma capital com quase 5 milhões de habitantes? Que tipo de “mágica” permitiu à televisão ocultar um morticínio de gigantescas proporções? E se isso foi possível no caso da cobertura de uma guerra, que garantias tem o cidadão comum de que aquilo que ele vê na telinha e lê nos jornais corresponde, ainda que minimamente, àquilo que de fato acontece na “vida real”?

Showrnalismo, de José Arbex Jr., pretende oferecer uma resposta. O título, óbvia provocação, oferece uma pista daquilo que o autor julga ser o centro do problema: a mídia, no mundo contemporâneo, transforma tudo em espetáculo: eleições, catástrofes naturais, guerras, escândalos, histórias do cotidiano, crimes. A atividade jornalística foi transformada em mero show, e hoje obedece às mesmas regras que regem o espetáculo: seduzir e emocionar é mais importante do que informar e analisar. O noticiário, mesmo impresso, deve manter o ritmo do videoclipe: deve ser rápido, ágil, de fácil entendimento, de preferência ilustrado e a cores, curto, sem exigir esforço de reflexão e disposto de forma esteticamente agradável e sedutora. O importante é causar impacto, prender as atenções, assegurar altos índices de Ibope, vender.

A mídia promove, assim, a diluição completa das fronteiras entre os diversos gêneros – informativo, de entretenimento e publicitário – e é nessa divisão, precisamente, que reside o grande perigo. Ao tratar a notícia como show e o show como notícia, a mídia atribui-se o poder de manipular as informações, despertar ódios e simpatias, gerar consensos. Ela não se limita a divulgar as notícias: ela também impõe, dentro de certos limites, a maneira pela qual as notícias devem ser lidas e percebidas.

No caso da Guerra do Golfo, por exemplo, antes mesmo do conflito começar a mídia já havia tomado partido: os Estados Unidos eram os defensores da democracia e dos valores ocidentais contra o Islã, uma religião de fanáticos, culturalmente atrasados (durante os meses que antecederam a guerra, as televisões e os jornais multiplicaram as imagens de feiras de camelos e de mulheres completamente cobertas com véus) e, claro, terroristas. Não eram seres humanos “normais”, como os americanos e como nós: por isso, foi tão fácil acreditar que “ninguém morreu”. Antes mesmo da guerra começar, a mídia mostrou que lá não havia “ninguém”.

Showrnalismo é o resultado da tese de doutorado que José Arbex Júnior defendeu, em setembro de 2000, no Departamento de História da USP. Mas é, sobretudo, resultado de sua própria experiência como repórter especial, editor de Exterior e correspondente internacional, pela Folha de S. Paulo, em Nova York e Moscou, e das coberturas que fez de alguns dos eventos internacionais mais importantes do século passado, incluindo a queda do Muro de Berlim e a Primavera de Pequim. Arbex também entrevistou Mikhail Gorbatchov e Iasser Arafat, entre outros líderes políticos mundiais importantes.

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