Ditadura oculta

Juiz diz que governo ameaça democracia quando descumpre decisões

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26 de novembro de 2001, 11h04

Num Estado de Direito democrático, cumprem-se leis – sobretudo, a Constituição Federal – e decisões judiciais, conquanto destas se possa recorrer. Quando, de fato, o governo as deixa de cumprir, incorre em arbítrio – ditadura.

No Brasil, desde 1994, virou moda alardear-se que se está a viver num regime democrático. Ledo engano! Como se sabe, Estado e Governo são coisas diferentes – aquele, permanente, representa a sociedade e dá guarida a seus reais interesses; este, temporário, está adstrito às intenções de quem governa, sejam ou não do interesse do povo.

Dentre as funções do Estado, está a jurisdicional – de dizer o que é direito -, a cargo de juízes, cujas decisões precisam ser respeitadas e cumpridas, por quem quer que seja, enquanto eventualmente não infirmadas por via regular, prevista em lei. Do contrário, estabelecer-se-á o caos social, com a chamada “justiça de mão própria”, em prejuízo da democracia. Ou seja, é real interesse do povo se cumpra o Direito, segundo o diga o Judiciário (último reduto dos direitos do cidadão).

A aparente ojeriza do governo federal atual ao Poder Judiciário, desde a posse de 1994, em razão de posições hostis sistemáticas àquilo que, por vezes, se tem decidido contra seus interesses – atento àquilo que a Constituição Federal prevê -, hoje não mais deixa dúvidas quanto ao fato de que, aos olhos desse governo, só valem decisões que lhe favoreçam, chegando-se ao cúmulo de se deixar de cumprir, em atitude mais do que desrespeitosa – de afronta à própria democracia -, no Mandado de Segurança nº 007971, do Superior Tribunal de Justiça (relatado pelo Ministro Gilson Dipp), decisão determinativa do pagamento de verbas às Universidades Federais lá referidas – meses de setembro e outubro deste.

A magistratura tem de ser independente e, também por isso, respeitada, porque indispensável à vida social. Na medida em que, ardilosamente, o governo desrespeita a Justiça, editando Decreto – nº 4.010, de 12/11/2001 – posterior àquela decisão, atribuindo-lhe – errônea e levianamente – efeito retroativo, exclusivamente para fugir do cumprimento dela, de forma inequívoca, está a descumprir decisão judicial legítima (aos olhos da lei – impessoal e que deve, sempre, estar acima de quaisquer pessoas e/ou interesses), incorrendo, o chefe do executivo federal (por si e por outrem – Ministro de Estado da Educação), em crime de responsabilidade (art. 85, II e VII, da Constituição Federal – textualmente: “Artigo 85 – São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: … II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; … VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais.” (negrito nosso).

De fato, o subterfúgio usado não fere apenas a ética, revelando ato criminoso – em especial, quanto à infração à Constituição Federal e, por conseguinte, ao regime democrático de Direito, que se está a revelar, neste País, mera figura de retórica (no ditado popular: “conversa para boi dormir” – aspas nossas).

Realmente, depois do ato jurídico – de cunho processual – perfeito, corporificado (representado) pela decisão do Ministro do Superior Tribunal de Justiça e, também, intocável, segundo aquela Constituição (vide artigo 5º, XXXVI – in verbis: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;”), não era dado ao Executivo – ao menos, àquele que tenciona, de fato, cumprir a Constituição Federal, respeitando decisão judicial – editar Decreto, atribuindo-lhe efeito retroativo (que não tem), visando à alteração da competência da matéria para o Supremo Tribunal Federal (respectivamente, arts. 102, I, “d” e 105, I, “b”, da Constituição).

A atitude não dignifica aquele que se diga – ou pense ser – estadista (léxico: Pessoa de atuação notável nos negócios políticos e na administração de um país; homem ou mulher de Estado); antes, contrapõe-se a tudo quanto, em época de exceção, se apregoava. De duas uma: ou se continua sob o guante de governo totalitário – despótico; portanto, infenso (contrário) à verdadeira democracia -, ou não; neste caso, que se aja coerentemente, respeitando-se os princípios democráticos de Direito. O que se não pode – ou deve -, não mais, é, sob o véu da propaganda democrática e de era nova que lhe diga respeito, tomar-se atitudes condizentes com verdadeiro regime de exceção, de caráter ditatorial.

Os fatos aí estão, postos à vista e à análise de quem tenha olhos de ver e ouvidos de ouvir. Já não há perigo de crise institucional; ela está presente, sedimentada por condutas inconseqüentes de quem, em verdade, tem o dever de dar o exemplo (bom, é claro!).

Outrora, neste País, estabeleceu-se ditadura confessada – expressada (evidentemente, a dano de todos); agora, de indicativos seguros (fatos de todos conhecidos), infere-se da ocorrência de uma como que ditadura mal velada (mal encoberta), que, como outrora aqui se fez, ora está a descumprir a Constituição Federal, especificamente, na diretriz que determina se cumpra a lei e a decisão judicial, de molde a que se preserve – na prática, e não somente na teoria (e de exclusiva teorização o povo está farto) – o livre exercício do Poder Judiciário (negrito nosso).

Já é tempo de se dar um basta nessa situação, em que a conveniência de um (uns) prevalece sobre a própria legalidade, a denotar – com meridiana clareza – da real característica do atual regime.

Alguns dirão, possivelmente: mas, se assim é, por que se lhe permite esta liberdade de expressão? A resposta não tarda, e é simples: porque a fachada – aparência, aspecto – precisa, a todo custo, ser mantida, sobretudo, atento àquilo que a própria Constituição Federal prevê, neste sentido, em seu artigo 5º, IV e IX, literalmente: “IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; … IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;”. Ora, aqui se fala com base em fato (léxico: “Aquilo que realmente existe, que é real”), sem conotação pessoal; ou seja, faz-se-o com o só propósito de demonstrar, inda mais, da desordem institucional do País, simplesmente – tanto quanto lamentavelmente – porque o discurso político encontra-se muito distante da ação democrática de governo.

E, rematando, também já é tempo de que os detentores de poder de mando – dos três Poderes da República -, a quem compete fazer algo com vistas à cessação da anômala situação, de fato, o façam, para que se preserve o bem maior – a força (seiva) de uma democracia real, que, conquanto incipiente, se deve definitivamente alicerçar.

Já foi dito: o Poder fascina; porém, o poder de fazer o bem, segundo a lei, e só este, traz o fascínio da recompensa de uma consciência tranqüila, que, por democratizada, pulse no compasso de um governo afinado com os reais interesses do Estado brasileiro e de seu povo.

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