A discriminação e a lei

Marco Aurélio defende ações afirmativas contra a discriminação

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23 de novembro de 2001, 9h40

Na terça-feira (20/11), o presidente do STF, ministro Marco Aurélio participou do seminário “Discriminação e Sistema Legal Brasileiro” promovido pelo Tribunal Superior do Trabalho.

Em sua palestra, Marco Aurélio analisou a igualdade e as ações afirmativas do ponto de vista constitucional.

Leia a íntegra da exposição

As Constituições sempre versaram, com maior ou menor largueza, sobre o tema da isonomia. Na Carta de 1824, apenas se remetia o legislador ordinário à eqüidade. Na época, convivíamos com a escravatura, e o escravo não era sequer considerado gente. Veio a República, e, na Constituição de 1891, previu-se, de forma categórica, que todos seriam iguais perante a lei.

Mais do que isso: expungiram-se privilégios, tendo em vista o nascimento; desconheceram-se foros de nobreza, extinguiram-se as ordens honoríficas e todas as prerrogativas e regalias a elas inerentes, bem como títulos nobiliárquicos e de conselho. Permanecemos, todavia, com uma igualdade simplesmente formal. Na Constituição de 1934, Constituição popular, dispôs-se também que todos seriam iguais perante a lei e que não haveria privilégios nem distinções por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas.

Essa Carta teve uma tênue virtude, revelando-nos o outro lado da questão. É que a proibição relativa à discriminação mostrou-se ainda simplesmente simbólica. O discurso oficial, à luz da Carta de 1934, foi único, e ingênuo, asseverando-se que, no território brasileiro, inexistia a discriminação. Na Constituição outorgada de 1937, simplificou-se, talvez por não se admitir a discriminação, o trato da matéria e proclamou-se, simplesmente, que todos seriam iguais perante a lei. Nota-se até aqui um hiato entre o direito – proclamado com envergadura maior, porquanto fixado na Constituição Federal – e a realidade dos fatos.

Sob a égide da Carta de 1937, veio à balha a Consolidação das Leis do Trabalho, mediante a qual se vedou a diferenciação, no tocante ao rendimento do prestador de serviços, com base no sexo, nacionalidade ou idade. Essa vedação, porém, não pareceu suficiente para corrigir desigualdades. Na prática, como ocorre até os dias de hoje, o homem continuou a perceber remuneração superior à da mulher. Vigente a Constituição de 1937, promulgou-se o Código Penal de 1940, que entrou em vigor em 1942. Perdeu-se, à época de tal promulgação, a oportunidade de se glosar de maneira mais eficaz a discriminação.

Foi tímido o nosso legislador, porque apenas dispôs sobre os crimes contra a honra e aqueles praticados contra o sentimento religioso. Já na progressista Constituição de 1946, reafirmou-se o princípio da igualdade, rechaçando-se a propaganda de preconceitos de raça ou classe. Introduziu-se, assim, no cenário jurídico, por uma via indireta, a lei do silêncio, inviabilizando-se, de uma forma mais clara, mais incisiva, mais perceptível, o trato do preconceito.

Sob a proteção dessa Carta, deu-se a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em dezembro de 1948. Proclamou-se em bom som, em bom vernáculo, que “todo o homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, opinião pública ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição”.

Admitiu-se, aqui e no âmbito internacional, a verdadeira situação havida no Brasil, em relação ao problema. Percebeu-se a necessidade de se homenagear o princípio da realidade, o dia-a-dia da vida em sociedade. No Brasil, a primeira lei penal sobre a discriminação surgiu em 1951, graças ao trabalho desenvolvido por dois grandes homens públicos: Afonso Arinos e Gilberto Freire. Só então se reconheceu a existência, no País, da discriminação. E é sintomática a justificativa dessa lei, na qual se apontou, como a revelar o racismo, o que vinha acontecendo em carreiras civis, como a da diplomacia, e em carreiras militares, especialmente a Marinha e a Aeronáutica.

Ressaltou-se que o exemplo deve vir de cima, que cumpre ao Estado adotar uma postura que sirva de norte, que sinalize ao cidadão comum. E o Judiciário, como atuou diante desse diploma que enquadrava, não como crime, mas como contravenção penal, a discriminação, considerada a raça ou a cor?

O Judiciário mostrou-se excessivamente escrupuloso e construiu uma jurisprudência segundo a qual era necessária a prova, pelo ofendido, do especial motivo de agir da parte contrária. Resultado prático: pouquíssimas condenações, sob o ângulo da simples contravenção, ocorreram. Daí a crítica de Afonso Arinos, falando à “Folha de S. Paulo”, em 8 de junho de 1980 “… a lei funciona, vamos dizer, à brasileira, através de uma conotação mais do tipo sociológico do que, a rigor, jurídico…”.


Outras leis foram editadas: em 1956, sobre o genocídio; em 1962, o Código Brasileiro de Telecomunicações, sobre a radiodifusão; e, em 1964, o Brasil veio a subscrever a Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho, que teve a virtude de definir, em si, o que se entende como discriminação: “Toda distinção, exclusão ou preferência, com base em raça, cor, sexo, religião, opinião política, nacionalidade ou origem social, que tenha o efeito de anular a igualdade de oportunidade ou de tratamento em emprego ou profissão”.

Na Constituição Federal de 1967, não se inovou; permaneceu-se na vala da igualização simplesmente formal, dispondo-se que todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. Previu-se, no entanto, que o preconceito de raça seria punido pela lei e, nesse ponto, talvez, tenha-se dado um passo a mais ao emprestar-se estatura maior – constitucionalizando-se, portanto – à punição do preconceito.

O arcabouço normativo ordinário, não obstante, fez-se insuficiente ao fim visado. Na época, a visão distorcida que predominava, a escancarar nefasto e condenável preconceito, era de que pretos e pardos têm propensão para o crime. Sentenciava-se sem perquirir as causas da delinqüência. Em 1967, com a Lei da Imprensa, proibiu-se a difusão de preconceitos de raça ou classe e introduziu-se a capitulação do preconceito, da discriminação, como um crime, não mais simples contravenção penal.

A Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil, em 26 de março de 1968, dispôs: “Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais” – e adentramos aqui o campo das ações afirmativas, da efetividade maior da não-discriminação – “tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades” – no sentido amplo – “fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência” – e, hoje, ainda estamos muito longe disso -, “à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.”

O artigo quarto dessa convenção versa sobre medidas especiais, de caráter temporário, destinadas a acelerar a igualdade entre o homem e a mulher, mulher que hoje forma o grande número, a maioria de nossa população. Na Constituição de 1969 – a Emenda nº 1, de 1969, verdadeira Constituição -, repetiu-se o texto da Carta imediatamente anterior, proclamando-se, de forma pedagógica – e esse trecho encerra a principiologia -, que não seria tolerada a discriminação.

Esse foi o quadro notado pelos constituintes de 1988, a evidenciar, como eu disse, uma igualização simplesmente formal, uma igualdade que fugia aos parâmetros necessários à correção de rumos. Na Constituição de 1988 – dita, por Ulysses Guimarães, como cidadã, mas que até hoje assim não se mostra não por deficiência do respectivo conteúdo, mas pela ausência de vontade política de implementá-la -, adotou-se, pela primeira vez, um preâmbulo – o que é sintomático -, sinalizando uma nova direção, uma mudança de postura, no que revela que “nós,” – todos nós que estamos aqui nesta assentada e não apenas os constituintes, já que eles agiram em nosso nome – “representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício de direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”.

E, aí, a Lei Maior é aberta com o artigo que lhe revela o alcance: constam como fundamentos da República Brasileira a cidadania e a dignidade da pessoa humana, e não nos esqueçamos jamais de que os homens não são feitos para as leis; as leis é que são feitas para os homens. Do artigo 3º vem-nos luz suficiente ao agasalho de uma ação afirmativa, a percepção de que o único modo de se corrigir desigualdades é colocar o peso da lei, com a imperatividade que ela deve ter em um mercado desequilibrado, a favor daquele que é discriminado, que é tratado de forma desigual.

Nesse preceito são considerados como objetivos fundamentais de nossa República: primeiro, construir – prestem atenção a esse verbo – uma sociedade livre, justa e solidária; segundo, garantir o desenvolvimento nacional – novamente temos aqui o verbo a conduzir, não a uma atitude simplesmente estática, mas a uma posição ativa; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e, por último, no que nos interessa, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.


Posso asseverar, sem receio de equívoco, que se passou de uma igualização estática, meramente negativa, no que se proibia a discriminação, para uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos “construir”, “garantir”, “erradicar” e “promover” implicam, em si, mudança de óptica, ao denotar “ação”. Não basta não discriminar. É preciso viabilizar – e encontramos, na Carta da República, base para fazê-lo – as mesmas oportunidades.

Há de ter-se como página virada o sistema simplesmente principiológico. A postura deve ser, acima de tudo, afirmativa. E é necessário que essa seja a posição adotada pelos nossos legisladores. Qual é o fim almejado por esses dois artigos da Carta Federal, senão a transformação social, com o objetivo de erradicar a pobreza, que é uma das formas de discriminação, visando-se, acima de tudo, ao bem de todos, e não apenas daqueles nascidos em berços de ouro? No âmbito das relações internacionais, a Constituição de 1988 estabelece que devem prevalecer as normas concernentes aos direitos humanos.

Mais do que isso, no artigo 4º, inciso VII, repudia-se o terrorismo, colocando-se no mesmo patamar o racismo, que é uma forma de terrorismo. Dispõe ainda o artigo 4º sobre a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Encontramos aqui princípios, mais do que princípios, autorizações para uma ação positiva. E sabemos que os princípios têm tríplice função: a informativa, junto ao legislador ordinário, a normativa, para a sociedade como um todo, e a interpretativa, considerados os operadores do Direito. No campo dos direitos e garantias fundamentais, deu-se ênfase maior à igualização ao prever-se, na cabeça do artigo 5º da Constituição Federal, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, assegurando-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Seguem-se setenta e sete incisos, cabendo destacar o XLI, segundo o qual “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”; o inciso XLII, a prever que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.

Vejam os Senhores que nem a passagem do tempo, nem o valor “segurança jurídica”, estabilidade nas relações jurídicas, suplantam a ênfase dada pelo nosso legislador constituinte de 1988 a esse crime odioso, que é o crime racial. Mais ainda: de acordo com o § 1º do artigo 5º, “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Sabemos que os trabalhos da Assembléia Constituinte – e isso é proclamado por aqueles que os acompanharam – foram desenvolvidos sem maioria constante, e esse aspecto, para mim, afigurou-se salutar. Daí a existência de certos dispositivos na Carta de 1988 a projetarem no tempo o exercício de direito constitucionalmente assegurado, preceitos esses que ressalvam a necessidade de regulação dos temas a serem tratados, portanto, pelos legisladores ordinários. Entretanto, em relação aos direitos e às garantias individuais, a Carta de 1988 tornou-se, desde que promulgada, auto-aplicável, cabendo aos responsáveis pela supremacia do Diploma Máximo do País buscar meios para torná-lo efetivo.

Consoante o § 2º desse mesmo artigo 5º, os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, e, aqui, passou-se a contar com os denominados direitos e garantias implícitos ou insertos nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. A Lei nº 7.716, de 1989, de autoria do deputado Carlos Alberto Caó, veio capitular determinados procedimentos, à margem da Carta Federal, como crime. A meu ver, deveriam ter sido previstas, além da pena alusiva ao cerceio da liberdade de ir e vir, também penas pecuniárias, e de elevada gradação. É o caso de perguntarmos: o que falta, então, para afastarmos do cenário as discriminações, as exclusões hoje notadas? Urge uma mudança cultural, uma conscientização maior por parte dos brasileiros; falta a percepção de que não se pode falar em Constituição Federal sem levar em conta, acima de tudo, a igualdade. Precisamos saldar essa dívida, ter presente o dever cívico de buscar o tratamento igualitário.

Como ressaltado pelo presidente Almir Pazzianotto, cuida-se aqui de dívidas históricas para com as minorias. Esse resgate, reafirmo, é um ônus da sociedade como um grande todo. Consideremos, agora, o princípio da realidade: é necessário pôr em prática o que está no papel. No Direito do Trabalho, o princípio da realidade é acionado no dia-a-dia, sobrepondo-se, em face da relação jurídica, ao que consignado no ajuste que aproximou tomador e prestador de serviços. A revista IstoÉ, de 10 de outubro último, publicou estatística do IBGE segundo a qual a população brasileira é formada por 24% de analfabetos, sendo que, destes, 80% são negros.


O DIEESE, em relação a São Paulo, apontou que, na área do desemprego, 22% são negros, enquanto que 16% são brancos. O salário médio em São Paulo, para mulher negra, é de R$ 399,00; mulher branca, R$ 750,00; homem negro, R$ 601,00; homem branco, R$ 1.100,00. Colhi de uma publicação, “Mulheres Negras – Um Retrato da Discriminação Racial no Brasil”, outros dados: formandos em universidades, de acordo com o Ministério da Educação: 80% brancos e 2% negros. População – permitam-me utilizar esses vocábulos – pretos e pardos: 45%; 60% das famílias chefiadas por mulheres negras têm renda inferior a um salário mínimo; expectativa de vida: negros, 64 anos; brancos, 70 anos; domicílios sem esgoto sanitário: 50% são chefiados por negros, enquanto 26%, por brancos; mortalidade de menores de cinco anos: 76 em mil, em relação aos afrodescendentes; 45 em mil, em relação aos brancos; violência na cidade do Rio de Janeiro, cometida pela polícia, de 1993 a 1996: 29% das vítimas são negras, em relação a um grupo racial de 8%, 40% de pessoas de cor parda em um grupo racial de 31%, 29% de brancos em um grupo racial de 60%.

A prática comprova que, diante de currículos idênticos, prefere-se a arregimentação do branco e que, sendo discutida uma relação locatícia, dá-se preferência – em que pese à igualdade de situações, a não ser pela cor – aos brancos. Revelam-nos também, no cotidiano, as visitas aos shopping centers que, nas lojas de produtos sofisticados, raros são os negros que se colocam como vendedores, o que se dirá como gerentes. Em restaurantes, serviços que impliquem contato direto com o cliente geralmente não são feitos por negros. Mais ainda, existem locais em que há a presença maior de negros, a atuarem, no entanto, como manobrista, leão-de-chácara, etc. Há exceções no Brasil.

Já contamos, felizmente, com algumas grandes empresas que procuram equilibrar essa equação, e aí cito, apenas para exemplificar, a Levi’s Strauss, que começou com essa política em 1970, mas mesmo assim, até aqui, só conseguiu compor o quadro funcional com 10% de negros; o Banco Real também avançou nesse campo, bem como a Xerox do Brasil e o Banco de Boston. Iniciativas semelhantes servem para escancarar o problema, para abrir nossos olhos a esse impiedoso tratamento que resulta, passo a passo, numa discriminação inaceitável.

Cumprimento o Tribunal Superior do Trabalho pela realização deste Seminário e o faço também quanto ao apoio do Ministério da Justiça, da Procuradoria-Geral do Trabalho e da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos que, até há pouco, esteve sob o comando do embaixador Gilberto Vergne Saboya, aqui presente.

É preciso buscar-se a ação afirmativa. A neutralidade estatal mostrou-se nesses anos um grande fracasso; é necessário fomentar-se o acesso à educação; urge contar-se com programa voltado aos menos favorecidos, a abranger horário integral, de modo a tirar-se o menor da rua, dando-se-lhe condições que o levem a ombrear com as demais crianças.

O Estado tem enorme responsabilidade nessa área e pode muito bem liberar verbas para os imprescindíveis financiamentos nesse setor; pode estimular, mediante tal liberação, as contratações. E o Poder Público deve, desde já, independentemente da vinda de qualquer diploma legal, dar à prestação de serviços por terceiros uma outra conotação, estabelecendo, em editais, quotas que visem a contemplar as minorias. O setor público tem a sua disposição, ainda, as funções comissionadas que, a serem preenchidas por integrantes do quadro, podem e devem ser ocupadas também consideradas as minorias nele existentes.

O exemplo vivo tivemos há pouco no Ministério do Desenvolvimento Agrário, por iniciativa do ministro Raul Jungmann. Não se há de cogitar que esse procedimento conflita com a Constituição Federal, porque, em última análise, objetiva a efetividade da própria Carta. As normas proibitivas não são suficientes para afastar do nosso cenário a discriminação. Precisamos contar – e fica aqui o apelo ao Congresso Nacional – com normas integrativas.

No momento, tramita no Senado Federal o Projeto PLS nº 650, de iniciativa do senador José Sarney, que almeja instituir quotas de ação afirmativa para a população negra no acesso aos cargos e empregos públicos, à educação superior e aos contratos do fundo de financiamento ao estudante do ensino superior, quota essa que, diante do total dessas minorias – e apenas são minorias no tocante às oportunidades -, mostra-se singela: 20%.

Essa legislação deve vir com um peso maior. Sabemos que um preceito pode ser dispositivo ou imperativo, e aqui estamos em um Tribunal que lida com preceitos imperativos, porque se percebeu a necessidade de o Estado intervir para corrigir desigualdades, e de nada adiantaria tal intervenção se às normas de proteção ao hipossuficiente, ao trabalhador, se emprestasse a eficácia dispositiva, na hipótese de lacuna, de ausência de manifestação da vontade. Em um mercado desequilibrado como o brasileiro, no qual, por ano, precisamos de cerca de um milhão e seiscentos mil empregos para receber a força jovem que chega ao mercado de trabalho, é inimaginável que se cogite de flexibilização do Direito do Trabalho (Palmas).


Aliás, os constituintes de 1988 levaram em conta essa realidade, no que, potencializando o direito coletivo, só permitiram tal flexibilização no tocante a três temas, como se revelassem, de forma categórica, inafastável, a impossibilidade de se incluir outras exceções no cenário trabalhista. Refiro-me à possível modificação de parâmetros via contrato coletivo, acordo coletivo ou convenção coletiva, quanto a salários, jornada de trabalho, carga horária semanal e regime de turno de revezamento. Reafirmo: toda e qualquer lei que tenha por objetivo a concretude da Constituição Federal não pode ser acoimada de inconstitucional.

Vem-nos de um grande pensador do Direito, Celso Antônio Bandeira de Mello, o seguinte trecho: “De revés, sempre que a correlação lógica entre o fator de discrímen e o correspondente tratamento encartar-se na mesma linha de valores reconhecidos pela Constituição, a disparidade professada pela norma exibir-se-á como esplendorosamente ajustada ao preceito isonômico (…). O que se visa com o preceito isonômico é impedir favoritismos ou perseguições. É obstar agravos injustificados, vale dizer que incidam apenas sobre uma classe de pessoas em despeito de inexistir uma racionalidade apta a fundamentar uma diferenciação entre elas que seja compatível com os valores sociais aceitos no Texto Constitucional”.

Entendimento divergente resulta na colocação em plano secundário dos ditames maiores da Carta da República, que contém algo que, longe de ser um óbice, mostra-se como estímulo ao legislador comum. A Carta agasalha amostragem de ação afirmativa, por exemplo, no artigo 7º, inciso XX, ao cogitar da proteção de mercado quanto à mulher e ao direcionar à introdução de incentivos; no artigo 37, inciso III, ao versar sobre a reserva de vaga – e, portanto, a existência de quotas – nos concursos públicos, para os deficientes; no artigo 170, ao dispor sobre as empresas de pequeno porte, prevendo que devem ter tratamento preferencial; no artigo 227, ao emprestar também um tratamento preferencial à criança e ao adolescente.

Veja-se a experiência brasileira no campo da legislação ordinária. A Lei nº 8.112/90 – porque, de certa forma, isso foi previsto na Constituição Federal – fixa a reserva de 20% das vagas, nos concursos públicos, para os deficientes físicos. A lei eleitoral, de nº 9.504/97, dispõe sobre a participação da mulher, não como simples eleitora, o que foi conquistado na década de 30, mas como candidata. Estabelece também, em relação aos candidatos, o mínimo de 30% e o máximo de 70% de cada sexo. A proteção aqui concorre também em benefício dos homens. Talvez tenha o legislador receado uma glosa apressada, levando em conta um suposto conflito com a Constituição Federal, ao prever, como ocorreu anteriormente, uma quota específica para as mulheres. Por outro lado, a Lei nº 8.666/93 viabiliza a contratação, sem licitação – meio que impede o apadrinhamento -, de associações, sem fins lucrativos, de portadores de deficiência física, considerado, logicamente, o preço de mercado. No sistema de quotas a ser adotado, deverá ser sopesada a proporcionalidade, a razoabilidade, e, para isso, dispomos de estatísticas. Tal sistema há de ser utilizado para a correção de desigualdades. Portanto, deve ser afastado tão logo eliminadas essas diferenças.

O que pode o Judiciário fazer neste campo? Pode contribuir, e muito, tal como a Suprema Corte dos Estados Unidos da América após a Segunda Guerra Mundial. Até então, tinha-se apenas a atuação do legislador. Percebeu aquela Suprema Corte que precisava, realmente, sinalizar para a população, de modo a que prevalecessem, na vida gregária, os valores básicos da Constituição norte-americana. Costumo dizer que toda e qualquer interpretação de preceito normativo revela um ato de vontade. E aí volto ao que disse anteriormente: os homens não são feitos para as leis, mas as leis, para os homens.

Qual deve ser a postura do Estado-juiz diante de um conflito de interesses? Há de ser única: não deve potencializar a dogmática para, posteriormente, à mercê dessa dogmática, enquadrar o caso concreto. Em face de um conflito de interesses, deve o juiz idealizar a solução mais justa, considerada a formação humanística que tenha e, após, buscar o indispensável apoio no direito posto. Ao fazê-lo, cumprirá, sempre, ter presente o mandamento constitucional de regência da matéria.

Só teremos a supremacia da Carta quando, à luz dessa mesma Carta, implementarmos a igualdade. A ação afirmativa evidencia o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica, e, neste caso, vou-me permitir citar, para encerrar esta fala, uma pensadora do Direito, a nossa Carmem Lúcia Antunes Rocha: “A ação afirmativa é um dos instrumentos possibilitadores da superação do problema do não cidadão, daquele que não participa política e democraticamente como lhe é na letra da lei fundamental assegurado, porque não se lhe reconhecem os meios efetivos para se igualar com os demais. Cidadania não combina com desigualdade. República não combina com preconceito. Democracia não combina com discriminação. E, no entanto, no Brasil que se diz querer republicano e democrático, o cidadão ainda é uma elite, pela multiplicidade de preconceitos que subsistem, mesmo sob o manto fácil do silêncio branco com os negros, da palavra gentil com as mulheres, da esmola superior com os pobres, da frase lida para os analfabetos… Nesse cenário sócio-político e econômico, não seria verdadeiramente democrática a leitura superficial e preconceituosa da Constituição, nem seria verdadeiramente cidadão o leitor que não lhe rebuscasse a alma, apregoando o discurso fácil dos igualados superiormente em nossa história feita pelas mãos calejadas dos discriminados”.

Tenhamos sempre presentes essas palavras. A correção das desigualdades é possível, e todos que aqui estão, indistintamente, querem-na. Por isso, façamos o que está ao nosso alcance, o que está previsto na Constituição Federal, porque, na vida, não há espaço para arrependimento, para acomodação, para o misoneísmo, que é a aversão, sem se querer perceber a origem, a tudo que é novo. Mãos à obra, a partir da confiança na índole dos brasileiros e nas instituições pátrias.

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