Questão de Direito

Nilson Naves analisa o papel do STJ nas questões constitucionais

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17 de novembro de 2001, 11h18

No exercício da jurisdição em geral, distribuída nas competências político-institucionais e competências processuais, ao juiz compete, em qualquer tempo e grau de jurisdição, fiscalizar a constitucionalidade das leis, tornando-se, assim, seu proeminente e zeloso árbitro. Ao ver das reflexões acerca do tema e da melhor das suas compreensões, tal se afigura inquestionável; tratando-se do exercício de tão relevante incumbência, é lícito entender-se que se não trata somente de um poder do juiz mas, também, de um dever imposto aos juízes, em princípio a todos juízes, indistintamente. Não obstante, é lícito ainda indagar se, em face da natureza das coisas ocorrentes nos melhores exemplares, o poder-dever, nessa perspectiva, é igualmente uma das atribuições do Superior Tribunal de Justiça. A resposta há de ser positiva, afinal de contas, de todo diferente o Superior não o é dos demais órgãos que exercem a jurisdição, mas, conquanto se ocupe da quase única e auspiciosa resposta, a pergunta tem lá sua pertinência, e vem preocupando o Tribunal e o vem instigando, relativamente a uma das suas três competências constitucionais: aquela de julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, por tribunais de segundo grau, conforme reza o inciso III do art. 105 da Constituição. Nessa competência é que se situa a diferença, ao passo que, a propósito da questão infraconstitucional, a diferença reside, na competência para julgar mediante recurso extraordinário, consoante o disposto no inciso III do art. 102.

No julgamento do recurso especial, pode então o Superior decidir a questão constitucional? É-lhe legal declarar, previamente, a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público? Enfim, a par do contencioso da lei federal, o Superior tem o contencioso da Constituição, em que medida? E o Supremo, tem aquele Tribunal o contencioso da lei federal, em que medida? Ora, as causas hão de ser decididas pelos órgãos jurisdicionais nos limites de sua competência (Cód. de Pr. Civil, art. 86).

É por demais sabido que a ciência jurídica, há bom tempo porém em momentos historicamente diferentes, entregou aos magistrados brasileiros dois modelos de controle judicial das leis, um , difuso, incidental e em espécie, que remonta ao início da República, aquele que está a cargo de todos os juízes, sem distinção alguma, em princípio, o outro, concentrado, principal e abstrato, cujas primeiras sementes foram as disposições constitucionais de 1934 acerca da representação interventiva (ou seja, editada pelo Senado lei sobre a intervenção federal, esta só se efetivava depois que o Supremo, mediante a provocação do Procurador-Geral da República, tomasse conhecimento da lei do Senado e lhe declarasse a constitucionalidade, conforme rezavam os arts. 41, § 3º e 12, § 2º. “Cuidava-se”, nas palavras de Gilmar F. Mendes, “de fórmula peculiar de composição judicial dos conflitos federativos”). Eis aí o que se denominou de sistema misto, que só se converteu em plena realidade quando se introduziu, no ano de 1965, em nosso sistema jurídico, por obra e graça da Emenda Constitucional nº 16, a ação de inconstitucionalidade, competindo então ao Supremo Tribunal processar e julgar, originariamente, “a representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República” (redação dada à alínea k do art. 101, inciso I, da Constituição de 1946).

Contudo, ao se iniciarem entre nós os trabalhos constitucionais, controle judicial algum aqui havia das leis, aliás, o nosso Judiciário, naqueles anos vinte e outros tantos do século dezenove, nem sequer era totalmente independente. Competia à Assembléia-Geral, à qual então se delegava o Legislativo com a sanção do Imperador, fazer as leis, assim determinava a Constituição de 1824 nos arts. 13 e 15, número 8º, o que não deixava de ser a sua relevante e indeclinável missão, todavia, de acordo com o mesmo texto, competia àquele Poder, outrossim, “interpretá-las, suspendê-las e revogá-las”. Por isso, anotou Pimenta Bueno, em 1857, que “Só o poder que faz a lei é o único competente para declarar por via de autoridade ou por disposição geral obrigatória o pensamento, o preceito dela”, e, em comentários recentes, de 1987, observou o professor Octaciano Nogueira que o indigitado art. 15, “mais claramente ainda, tirava do Judiciário a sua condição de Poder”.

Em 1928, Levi Carneiro, em publicação sobre o Tribunal do Império, embora reconhecesse que “o Judiciario, tolhido, dependente do Executivo, controlado pelo Legislativo, subordinado ao Moderador, não poderia effectivar a supremacia vacilante da Constituição, a protecção dos direitos por ella assegurados”, acabaria por criticar a atuação daquele Tribunal – o Supremo Tribunal de Justiça (“Na Capital do Império, além da Relação, que deve existir, assim como nas demais Províncias, haverá também um tribunal com a denominação de – Supremo Tribunal de Justiça – composto de Juízes Letrados, tirados das Relações por suas antiguidades; e serão condecorados com o título do Conselho. Na primeira organização poderão ser empregados neste Tribunal os ministros daqueles, que se houverem de abolir”, cf. art. 163), a saber, “Despercebido da sua propria missão mais alta, esquecido da repercussão politica que poderia ter a sua actuação judiciaria – o nosso Tribunal não exercitou, com largueza, as suas prerogativas, atrophiou-se, deixou que os outros poderes constitucionaes dominassem absolutamente, annullando-o”. Objetou Lúcio Bittencourt, ao escrever em 1949 sobre o controle jurisdicional, pois, ao seu sentir, Levi desejava que o Tribunal do Império “procedesse como o seu similar americano”, acontece, acrescentou Lúcio, que a situação do “nosso Tribunal era muitíssimo diversa da que se verificou nos Estados Unidos da América, porque o Estatuto de 1824 não dava qualquer margem a tentativas de expansionismo”.


De feito, Bittencourt tinha lá sua razão, à míngua, naquele histórico momento, de maior similitude entre as duas instituições – a brasileira e a norte-americana. Eram elas apenas razoavelmente similares, se bem que do nosso Supremo de 1824 também se tenha dito cuidar-se de instituição mais política do que judicial. Ficou o juízo crítico de Levi Carneiro! Tempos depois, quem sabe se nos anos quarenta ou cinqüenta do último século, também já se disse que o Judiciário foi o Poder que mais falhou no Brasil presidencialista. A Afonso Arinos, em escrito de 1975 a propósito de algumas instituições políticas brasileiras e americanas, não pareceu justa essa afirmativa de João Mangabeira. Falharam, isto sim, escreveu Arinos, os três Poderes, e o Supremo pelo desconhecimento de seu papel político e “por falta do cumprimento do seu dever em horas decisivas”. Sublinhe-se a expressão “papel político”.

Sempre se quis e se esperou do Supremo, seja o do Império ou o da República, um comportamento mais político do que judicial – diga-se que é o comportamento que melhor condiria com a sua tão alta missão institucional, daí, nos dias de hoje, não haver oportunidade mais azada do que a presente, em que se espera e se aguarda seja reformado o Judiciário, para se purificar o sistema criado em 1988. Em conseqüência, o Supremo ficaria com a matéria constitucional – Corte Constitucional portanto -, e o Superior, com a matéria infraconstitucional – com todo o direito comum, salvo os processos penais contra determinados membros de Poder, e as decisões do Superior, todas elas (em feitos de competência originária, ordinária ou especial) haveriam de ser finais, irrecorríveis, ressalvada obviamente a hipótese do recurso extraordinário – existência de pura questão constitucional, direta e clara, imediata e límpida, evidentemente não-reflexa e certamente que não-oblíqua.

Na realidade, ao se iniciarem, nos idos de 1824, os trabalhos constitucionais, faltava aos nossos juízes – a todos, de todos os graus de jurisdição – o controle judicial das leis. Naquela oportunidade, quando entre nós já ganhava bom fôlego a nova idéia do controle, a influência que aqui se recebia, entretanto, era a da França, onde não competia, e até hoje lá não compete, ao seu judiciário, por uma série de conhecidas razões, examinar a constitucionalidade dos atos legislativos (confira-se Afonso Arinos, na apresentação do livro O Velho Senado, 1989, nessa passagem: “A constituição imperial brasileira de 1824 era inspirada da Constituição real francesa de 1814 – de Luís XVIII, irmão de Luís XVI”). Entre essas razões, uma, mais antiga, porque faltaria credibilidade aos juízes de 1789. Houve, ainda, a indiscutível influência de Montesquieu, consoante, por exemplo, a opinião de Mauro Cappelletti (entre as razões ideológicas por este arroladas, essa seria uma delas), em resumo, que a doutrina da separação dos poderes, “em sua mais rígida formulação, foi, não erradamente, considerada absolutamente incompatível com toda possibilidade de interferência dos juízes na esfera do poder legislativo”.

Sem dúvida que foi enorme a influência de Montesquieu na organização da justiça francesa: nos debates verificados entre abril e maio de 1790 (vejam que “Do espírito das leis” saiu em 1748, em Genebra. Na introdução que acompanha a edição da Universidade de Brasília, de 1982, anotou Gonzague Truc: “Pretendeu-se que ele teve predecessores através da história e remontou-se até Buda e Confúcio, passando-se por Jean Bodin, Hotmam, Thomas Morus, Pufendorf, Maquiavel, Cícero, Platão. Esta impressionante série não impede sua originalidade…”), pois, em decorrência daqueles debates, adverte Bernard Manin, em escritos de 1988, falando exatamente a respeito da Revolução se apresentar às vezes como um confronto entre os discípulos de Montesquieu e os de Rousseau, que, tanto para a direita revolucionária quanto para a esquerda: (I) “o poder judiciário consiste unicamente na ‘aplicação’ das leis” e (II) “Cabe ao juiz simplesmente determinar se o caso que lhe é submetido inclui-se no campo de aplicação da lei; uma vez feito isso, só lhe resta aplicar a lei”. Observe que, nas palavras de Pierre Truche, o antigo Cód. Penal francês chegou, até, a incriminar “de forfaiture les magistrats qui se seraient immiscés dans l’exercice du pouvoir legislatif… soit en arrêtant ou suspendant l’exécution d’une ou de plusieurs lois…”, mas os tempos lá na França mudaram, e para melhor – acrescenta Truche, no livro “Juger, être jugé”, do ano de 2001 -, visto que hoje o magistrado francês pode, invocando um tratado internacional, declarar inaplicável uma lei francesa, daí, arremata Truche – ex-presidente da Corte de cassação -, “Surgit alors la crainte d’un gouvernement des juges”.

Iriam os brasileiros adotar outro esquema: deixariam de lado a posição da não-faculdade francesa e adotariam a posição do poder-dever de exercitar o controle judicial das leis. Isso aconteceu na última década do século dezenove, com o surgimento da República. Era a doutrina americana que então se incorporava, como bem lembrou Bittencourt, ao nosso sistema constitucional. Pois foi nos Estados Unidos, em 1803, pela palavra de Marshall, nomeado em 1801, que a Suprema Corte decidiu, em Marbury v. Madison, que o judiciário tem competência para, em espécie (incidental, via de exceção), conhecer da inconstitucionalidade: é que o ato do legislador contrário à constituição seria nulo. “É ainda um princípio de direito constitucional americano que uma lei inconstitucional não é lei, ou é, como lei, inexistente (‘The courts must pronounce it a nullity and no law’)”, dizia Francisco Campos, em publicação de 1942. Tratava-se de uma construção eminentemente pretoriana. A despeito da falta de sua expressa previsão no texto supremo americano, a idéia do controle da constitucionalidade, recorda Gustavo Binenbojm, em livro sobre a jurisdição constitucional, de 2001, citando Alexander Hamilton, “foi intensamente debatida pelos delegados na Convenção de 1787” (“Alexander Hamilton, no Federalista nº LXXVIII e, posteriormente, no nº LXXXI, sustenta a idéia de que a Constituição deve ser vista como lei fundamental, cabendo aos juízes proclamar a nulidade das leis ordinárias a ela contrárias”).


Proclamada a República Federativa, já em 1890 (11.10) Campos Salles fazia constar, da Exposição de motivos do Decreto nº 848, que (I) “O poder de interpretar as leis… envolve necessariamente o direito de verificar si ellas são conformes ou não à constituição” e que (II) “De poder subordinado, qual era, transforma-se (o Judiciário) em poder soberano, apto, na elevada esphera de sua autoridade, para interpor a benefica influencia do seu criterio decisivo, afim de manter o equilibrio, a regularidade e a propria independencia dos outros poderes”. Foi assim que surgiu, no direito brasileiro, o controle de constitucionalidade, com previsão, antes, no Decreto nº 510 em que, provisoriamente, de pronto se publicava a Constituição. Estatuiu-se ali e bem assim no Decreto nº 848 que haveria recurso para o Supremo quando se questionasse a validade de tratados e leis federais, ou quando se contestasse a validade de leis ou atos dos governos dos Estados em face da Constituição. Exatamente dessa forma foi que, depois, registrou-se em definitivo na Constituição de 24 de fevereiro de 1891, nas alíneas a e b do § 1º do art. 59 (confiram-se: “quando se questionar sobre a validade, ou a aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado for contra ela”; “quando se contestar a validade de leis ou de atos dos Governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas”).

Ora, como o poder de interpretar envolvia o poder geral de verificar se as leis eram conformes à Constituição, esse poder ou essa competência não pertenceria apenas ao Supremo: distribuía-se já naquela época e em princípio se distribui ainda hoje entre todos juízes e tribunais. Fala-se, por conseguinte, em sistema difuso, a saber, disseminado e divulgado. A rigor, não se exigia, para o fiel desempenho desse poder ou dessa competência, texto formal e explícito a seu respeito. Advertiu João Barbalho, em 1924: “Está isso implicitamente comprehendido no poder de julgar, que não póde ser exercido com esquecimento e preterição da Constituição, fonte da autoridade judicial e lei suprema, não para os cidadãos sómente, mas tambem para os proprios poderes publicos”. Resoluto e incisivo igualmente foi Rui Barbosa, reconhecendo e afirmando, na edição de 1933 de seus comentários, “não só a competência das justiças da União, como a das justiças dos Estados, para conhecer da legitimidade das leis perante a Constituição”. Além do mais, a Lei nº 221, de 1894 (20.11), que completou a organização da Justiça Federal da República, abertamente dispunha, no § 10 do art. 13, que “Os juizes e tribunaes apreciarão a validade das leis e regulamentos e deixarão de applicar aos casos occurrentes as leis manifestamente inconstitucionaes e os regulamentos manifestamente incompativeis com as leis ou com a Constituição”. Da mesma forma, o art. 266, quanto à intervenção em espécie e por provocação de parte, e o art. 267, quanto à indistinta competência dos juízes e tribunais, ambos do Decreto nº 3.084, de 1898 (5.11), que aprovou a Consolidação das Leis referentes à Justiça Federal.

Em circunstâncias que tais, é da legítima tradição brasileira, desde que aqui se instalou a República, o conhecimento da questão constitucional: não é assim de hoje que se impõe ao magistrado esse conhecimento, em qualquer tempo e grau de jurisdição. Nos seus comentários ao Cód. de Pr. Civil, enfatizou Pontes de Miranda, em feliz passagem a propósito da questão constitucional, que se trata, aí, de missão do juiz, “É dever seu” – advertia o saudoso jurista -, cabendo ao juiz, a ele próprio e mesmo, suscitar a questão e resolvê-la. Entende-se que a inconstitucionalidade deve ser declarada de ofício, e certamente pode ser alegada pelo interessado – repita-se, em qualquer tempo e grau de jurisdição. Relativamente aos poderes do juiz, não só ele pode como deve fazer a declaração – é o poder-dever do juiz. Sucede que este quadro iria sofrer alterações com a promulgação do atual texto constitucional.

Em 1988, foram criados o Superior Tribunal e o especial. O Superior foi instalado em 1989. Surgia aí, compondo o panorama jurídico-institucional pátrio, outra faceta do controle judicial das leis, fazendo-se então indispensáveis, nesse novo cenário e nessa nova quadra, as seguintes indagações, principalmente para a boa e perfeita convivência dos atuais recursos extraordinário e especial (espécies do extraordinário lato sensu): (I) admite-se possa o Superior, previamente, declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público (Constituição, arts. 97 e 105 e Cód. de Pr. Civil, arts. 480 a 482)?, (II) admite-se possa o Tribunal, no julgamento do recurso especial, pronunciar-se acerca de questão constitucional (Constituição, art. 105, III)? Para as duas indagações, sobretudo no que se refere em particular ao especial, é que se está, nas bancadas do Tribunal, buscando a melhor das respostas. Antes, porém, de dar a minha opinião, permitam-me mais alguns ligeiros apontamentos ao redor do tema de que estamos cuidando, e bem assim algumas rápidas reflexões a seu respeito, que com ele não deixam de ter algo a ver.


Consagrado que foi, pela Constituição de 1891 (querendo-se maior precisão, pelo Decreto nº 510, de 1890), o controle judicial das leis, é de constatar que a reforma constitucional de 1926, na lição de Bittencourt, revelou ainda mais claro e explícito esse princípio, e que as Constituições de 1934, 1946 e 1967 (Emenda nº 1, de 1969) seguiram o mesmo rumo, mas coube à Constituição de 1937 a inovação, e para pior, infelizmente (naquele histórico período, não era mesmo de se esperar que se avançasse!), permitindo o reexame, pelo Parlamento, a juízo do presidente da República, da lei declarada inconstitucional, caso em que, se confirmada a lei por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficava sem efeito a decisão do Tribunal (parágrafo único do art. 96).

Posto que difuso o controle, foi ao Supremo que se cometeu, desde o início da República, a incumbência maior, reservando-se-lhe, e de outra maneira até que não poderia mesmo ser, a palavra final, no exercício da jurisdição constitucional. Não lhe faltaram, como se viu linhas atrás, críticas, tais as de João Mangabeira e Afonso Arinos, quanto ao exercício desse poder político. Aliás, do Tribunal do Império, que era, na boa lembrança de Pimenta Bueno, uma instituição mista, semelhante, portanto, à dos dias de hoje – instituição de caráter político e judiciário, mais aquele do que este -, daquele Tribunal também se queixaram, entre outros, Levi Carneiro, dado que o Tribunal “se deixa, submissamente,” – disse-o, em 1928 – “annular cada vez mais a sua grande missão politica”. Mas o Supremo de 1890 – o Supremo Tribunal Federal – receberia daqueles atos iniciais de organização do nosso Judiciário uma série de poderes, a fim de se apresentar, ao ver de seus idealizadores (Salvador Mendonça, Rui Barbosa e Campos Salles, entre outros), como se apresentou e nos dias correntes se apresenta, apesar dos queixumes de Mangabeira, Arinos e outros, aquela admirável instituição a que se reportou, referindo-se à Corte norte-americana, o Lord Salisbury, na indicação de Barbalho, a saber, a instituição capaz de infirmar as medidas contrárias à Constituição, dando assim às demais instituições do país “uma estabilidade que embalde nós procurariamos em nosso systema de promessas vagas e mysteriosas” (tratava-se de um discurso do Lord pronunciado em Edimburgo, a 23.11.1882).

Tal qual Campos Salles, o mineiro Pedro Lessa, ao proclamar a soberania do Judiciário, fê-lo em primorosos discursos e clássica obra, entre o final do século dezenove e o início do século vinte, como igualmente depois o fizeram Rui e Levi, todos eles, enfim, destacaram, em suas primorosas lições, os deveres políticos do Supremo, instituição análoga a uma constituinte permanente. Observe que, naquela época, o controle judicial era apenas o difuso, e já se colocava em destaque o papel político do Supremo. Não é que, no Império, chegou-se mesmo a pensar, de acordo com anotação de Aliomar Baleeiro, veja-se!, que o Supremo eventualmente se substituísse ao Poder Moderador. O certo é que a jurisdição constitucional viria a aumentar-se. Limitada ao controle difuso-incidental, por si só já era suficiente para o destaque político do Supremo. Seria, porém, ampliada. Em 1965, quando se cuidou da reforma do Judiciário, os legisladores da época atribuíram ao Supremo, como já exposto, a competência para processar e julgar, originariamente, a representação contra inconstitucionalidade, donde a esclarecedora anotação de Agrícola Barbi, “Criou-se, assim, o exame da inconstitucionalidade, por via de ação, também de lei federal, o que, sem dúvida, nada tem a ver com o problema de intervenção federal que é matéria do art. 8º, parágrafo único, da Constituição”. Instituía-se, desse modo, o modelo concentrado-abstrato, que vinha aditar-se ao difuso-incidental, resultando na adoção, entre nós, de um sistema misto, portador, para parte da doutrina, de embaraços, empecilhos ou de algumas perguntas sem respostas. Ora, a par da representação, ou da hodierna ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, há também, na vigente ordem constitucional, a argüição de descumprimento de preceito fundamental e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, oriunda esta da Emenda Constitucional nº 3, de 1993, processualmente disciplinadas, todas, pelas Leis nºs 9.868 e 9.882, ambas de 1999. Como se essas medidas não bastassem, instituíram-se ainda, em 1988, mecanismos contra omissões, como o mandado de injunção e a declaração por omissão, e se fala na criação de um incidente de inconstitucionalidade.

Desde os seus primeiros passos, mesmo na primitiva feição de 1824, que o Supremo tem, fundamentalmente, a natureza de órgão político, cabendo-lhe por inteiro, sem dúvida que antes de quaisquer outras indagações, o contencioso constitucional – primeiro e, hoje, quase o único, se não exclusivamente. Talvez bem mais do que ontem, impõe-se hoje essa compreensão, em virtude do sistema judicial criado pelos constituintes dos anos oitenta do século passado. É o Supremo o Tribunal da Constituição, ocupando, nas palavras de Teori Zavascki, “a posição mais importante no sistema de tutela de constitucionalidade dos comportamentos”. Note-se, segundo a Exposição de motivos da Emenda nº 16, de 1965, que a Comissão composta por Orosimbo, Prado Kelly e Dario de Almeida distinguia, naquele projeto por ela apresentado de reforma do Judiciário, entre o contencioso da Constituição e o contencioso da lei federal, para o fim de situar o primeiro pela sua importância no plenário do Supremo e o outro nas turmas. Era esse contencioso – afirmou a Comissão – que conferia ao Tribunal a expressiva imagem de “Corte de Justiça Política”. Nos dias de hoje, procura-se, sobretudo, atiçar e ativar a natureza política do Supremo (quem sabe se também não o querem como poder moderador!), ampliando-se descomedidamente sua jurisdição com aquelas competências, como as de processar e julgar a ação declaratória de constitucionalidade, a argüição de descumprimento de preceito fundamental etc, aliás, o Supremo não haveria, mesmo, de ter competências estranhas à jurisdição constitucional. Até já se fala de um incidente de inconstitucionalidade, constante de projeto há pouco remetido ao Congresso Nacional. A melhor das orientações, como se procura demonstrar, quem sabe a única e a mais sábia, com certeza seria a de que o Supremo se dedicasse com exclusividade à matéria constitucional, tão relevante e tão nobre, tão significativa e tão majestosa, assumindo por inteiro a posição política que melhor o credencia entre as instituições mais políticas – “Corte de Justiça Política”.


No século passado, ao Supremo, até os anos oitenta, como é sabido e ressabido, estavam cometidos os dois contenciosos – o constitucional e o infraconstitucional, mas o Supremo iria perder um deles, em virtude da criação, em 1988, do Superior Tribunal de Justiça. Pois foi ao recurso especial, igualmente datado de 1988, que se entregou, em grau de superposição, a jurisdição infraconstitucional. Ocorre que essa jurisdição não foi, infelizmente, por inteiro entregue ao Superior. No curso dos trabalhos constituintes findos em 1988, o Supremo perderia o contencioso da lei federal – exato que o deveria perder em toda a sua extensão, mas de todo não o perdeu, mormente em virtude aqui e ali de criações pretorianas, donde a apresentação, toda vez que se propõe alterar a estrutura do Judiciário, como no momento atual, de propostas tendentes a reformar o sistema, de modo a purificá-lo, deixá-lo claro e preciso quanto ao exercício das diferentes jurisdições. Impõe-se assim que as competências sejam preservadas e não embaralhadas, que sejam melhor definidas, separando-se com bons olhos as questões, de modo que as de direito ordinário não sejam examinadas a pretexto da existência de ofensa ao texto constitucional, a fim de que se não diga, e há os que interesseiramente dizem, que se criou, veja-se, um quarto grau de jurisdição! De maneira particular, sempre achei que os textos pertinentes, como se verá linhas à frente, bem que mereciam outras interpretações: por exemplo, onde se lê que compete ao Supremo processar e julgar, originariamente, o habeas corpus quando o coator for Tribunal Superior, ler-se-ia que compete, sim, mas desde que houvesse descumprimento de preceito constitucional. Justificar-se-ia o pedido apenas se fundado no texto constitucional; não, se fundado em texto ordinário. Ora, de um lado, se o Supremo, durante aqueles trabalhos, perdia competência, de outro, ali mesmo se projetava institucionalmente, porque haveria de se ver, como se viu, destacado como “Corte de Justiça Política” – a mais elevada posição de um tribunal da feição do Supremo.

Ao certo, a origem do Superior não deixa de estar ligada à denominada crise do recurso extraordinário, tão antiga e tão comentada, tanto que, em 1918, já dizia Carlos Maximiliano que se impunha “alliviar a Côrte Suprema do excesso de trabalho, de que não dá conta”. Aliviar, mas de que maneira? Com um novo tribunal, e Alfredo Buzaid foi um dos seus primeiros pregoeiros, falando, em 1968, da necessidade de sua criação, “com função exclusiva de cassação, atribuindo-lhe a competência para julgar os casos de recursos, com fundamento no art. 101, III, da Constituição Federal” (de 1946). Sem dúvida que, ao ser instituído, ao Superior se atribuiu essa competência, por ele exercitada através do recurso especial (Constituição, art. 105, III). Foram-lhe, outrossim, atribuídas, no ato de sua instituição, duas outras competências (e elas lhe eram recomendadas por todos quantos sugeriram a criação de um novo tribunal): uma , a de processar e julgar, originariamente, algumas ações, a outra , a de julgar, em recurso ordinário, alguns feitos (Constituição, art. 105, I e II).

Quando se lhe requer o exercício das competências originária e ordinária, previstas nos incisos I e II, decerto que o Superior as desempenha de modo livre, sem peia e sem qualquer restrição, assim no campo infra como no constitucional. É-lhe legítimo e legal, no particular, dispor e prescrever sobre o texto maior, apontando ofensas a ele verificadas, ou declarando antinomias entre tal texto e os textos ordinários, enfim, livremente decidir sobre os vícios de constitucionalidade. Não será a palavra final, dúvida não existe, em razão de que, no campo constitucional, as suas decisões sujeitar-se-ão ao recurso extraordinário (Constituição, art. 102, III). Agora, dúvida existe, como se viu, se o Supremo possui a mesma liberdade, relativamente à matéria infraconstitucional. Afinal, o Tribunal dessa matéria é o Superior, por isso, em nome do sistema criado em 1988, é irrepreensível o entendimento segundo o qual as decisões do Superior, no tocante ao direito ordinário, hão de ser observadas por todos, sem qualquer exceção . Isto, todavia, não vem aqui e agora inteiramente ao caso, visto que, no momento, o que deveras interessa a todos é saber se o Superior, exercitando essas competências (originária e ordinária), tem liberdade para estatuir acerca da matéria constitucional. Nesse importante aspecto, pode, sim, o Superior estatuir sobre essa matéria. Não creio haja voz que discorde dessa possibilidade jurídica. Ademais, de suas decisões, repita-se, haverá em tese recurso extraordinário, previsto no inciso III do art. 102. Conseqüentemente, veja se o recurso ordinário do inciso II do art. 102 não chega mesmo a ser um desperdício de tempo e inteligência, no que se refere ao Superior Tribunal de Justiça, algo que atenta contra a existência de dois tribunais, um para zelar pela guarda da Constituição e o outro, pela guarda da lei federal. Impõe-se ou não se impõe a purificação do sistema judicial? O recurso cabível haveria de ser um único: sempre e somente o extraordinário, pois a missão do Supremo não é a de zelar pela guarda da Constituição? Não será uma demasia o aludido inciso II? Ao menos, no que diz respeito à matéria infra. Caberia o recurso, se teimam em o querer ordinário, sim, restrito, todavia, à matéria constitucional.


O correto é que, cuidando-se do modelo difuso-incidental, esse controle judicial das leis não é estranho ao Superior Tribunal; por sinal, é-lhe bem próprio. O Superior igualmente tem, no uso das suas competências originária e ordinária previstas nos incisos I e II do art. 105, os dois contenciosos, como todo o mundo judiciário. Ao Tribunal é lícito declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público, a requerimento da parte ou mesmo de ofício. De acordo com os seus registros, entre tantos outros casos já examinados pelo Superior, confiram-se: (I) na Argüição no RMS-988, sessão do dia 12.8.93 (DJ de 24.10.94), a Corte Especial, incidentalmente, declarou a inconstitucionalidade de dispositivos de lei pernambucana em que se fundara juridicamente o pedido dos impetrantes, trata-se, logo, de declaração em desfavor do recorrente, (II) na Argüição no RMS-5.063, sessão do dia 18.6.97 (DJ de 24.11.97), a Corte Especial, incidentalmente, declarou a inconstitucionalidade de dispositivo de lei complementar federal, fê-lo, veja-se!, a favor dos recorrentes, de maneira que, no caso, a segurança até que de imediato foi concedida, (III) na Argüição no MS-4.993, sessão do dia 21.10.98 (DJ de 19.2.01), a Corte Especial, incidentalmente, declarou, a favor do impetrante, a inconstitucionalidade de dispositivo de medida provisória (exigência de contribuição previdenciária de aposentado), (IV) e na Argüição no RHC-881, sessão do dia 11.4.91 (DJ de 11.11.91), a Corte Especial rejeitou a inconstitucionalidade de dispositivo de lei municipal.

Se perplexidade não existe quanto aos indigitados incisos I e II, podendo o Superior, no exercício dessas competências, amplamente proceder, tal, porém, não acontece, na mesma dimensão, quando se cuida de julgamento, em recurso especial, das causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados e do Distrito Federal – hipótese do inciso III do art. 105. Como é de corriqueiro conhecimento, é por intermédio do especial que vem ter ao Superior o maior número dos feitos: em 2000, recebeu 151.125, entre os quais, 80.748 agravos e 55.896 recursos especiais. Pois não é que, no processamento e decisão de tão enorme número de processos, o Superior não tenha a posse do contencioso constitucional. Não é que não a tenha de modo completo, tem-na em parte, em que medida?, qual a indagação aqui feita logo nas suas primeiras linhas. Tudo isso resulta do sistema de dois tribunais de superposição, e se pergunta se, no caso de acolhido o incidente de inconstitucionalidade, como é que depois se julgará o recurso especial? Sim, porque dois hão de ser os julgamentos: um em que se resolverá o incidente, o outro que completará o julgamento da causa: o incidente, perante a Corte Especial, o especial, quase sempre perante a Turma. Fica a pergunta: resolvido o incidente com a proclamação da inconstitucionalidade, como é que se completará o julgamento do feito?

Nos sistemas constitucionais anteriores, quando se reuniam em torno de um único tribunal os dois contenciosos, ao Supremo, que os acumulava, não se dava obstáculo algum ao conhecimento da matéria constitucional, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, no julgamento do recurso extraordinário (Constituição/46, art. 101, III e Constituição/67-69, art. 119, III). Seguem alguns exemplos: (I) Em 1951, o Supremo declarou, de ofício, no RE-19.285, a inconstitucionalidade do § 4º do art. 13 do Cód. Eleitoral, entendendo, diante do art. 120 da Constituição de 1946, que não havia recurso extraordinário em matéria eleitoral (o recurso previsto no inciso III do art. 101). Durante os debates que naquela Casa se sucederam, disse o relator Ministro Rocha Lagoa – nesse trecho parece que se encontra um ponto importante – que lhe não cabia levantar a preliminar (prejudicial), porque a matéria não fora em momento algum debatida nos autos (é que faltava o requerimento do interessado, bem assim que faltaria prequestionamento etc). Ponderou, no entanto, o Ministro Edgard Costa que o Tribunal haveria mesmo assim de se debruçar sobre a preliminar: “Proponho, pois, Sr. Presidente”, falou o Ministro Edgard, “que se vote, em tese, se face ao dispositivo do Código Eleitoral é admissível recurso extraordinário”. O Tribunal longamente votou, dividiu-se, sim, dividiu-se, e a declaração de inconstitucionalidade foi feita, por voto de desempate. Sem embargo do acolhimento da prejudicial de inconstitucionalidade em desfavor do recorrente, o recurso, entretanto, terminou sendo conhecido pelo Tribunal, por outro fundamento, é verdade, e até se lhe deu provimento. Note-se que, nesse caso, o Supremo conheceu de ofício da argüição, e fez a declaração de inconstitucionalidade em sentido contrário ao interesse do recorrente, fê-la, contudo, em tese, porquanto a declaração não aproveitou às partes, nem acabou por lhes prejudicar, enfim, no ponto referente à declaração, não foi útil ou conveniente para a decisão da causa. Decerto, do extraordinário se conheceu e se lhe deu provimento, deu-se-lhe mas por um outro fundamento, que também fora suscitado pelo recorrente. (II) Em 1967, quando editado o Decreto-lei nº 322, assegurando direito à purgação da mora e determinando que tal se aplicasse aos casos pendentes, o Supremo, quando do julgamento, pelo Plenário, do RE-62.731 (RTJ-45/559), preliminarmente conheceu da matéria constitucional e proclamou viciada a norma constante do art. 5º (“Nas locações para fins não residenciais será assegurado ao locatário o direito à purgação da mora, nos mesmos casos e condições previstos na Lei para as locações residenciais, aplicando-se o disposto neste artigo aos casos sub judice”); no mérito, o Supremo conheceu e deu provimento ao recurso, de acordo com a jurisprudência da época segundo a qual, na locação comercial, o locatário não tinha direito à purgação da mora. Observe que a declaração se fez a favor do recorrente. (III) No julgamento do RE-80.537 (RTJ-75/596), verificado no ano de 1975, o Supremo também conheceu de ofício e fez incidentalmente a declaração; em conseqüência, o Tribunal afastou a deserção que prendera o recurso na origem, conheceu do extraordinário e lhe deu provimento. A declaração verificou-se a favor do recorrente.


Ora, no tempo em que os contenciosos se concentravam num único e mesmo tribunal, deveras não poderia ser outra a orientação atinente ao exercício de ambas as jurisdições. Afinal, ao se prescrever um fim, presumem-se prescritos os meios, ou ao se conferir poder geral, entendem-se conferidos todos os poderes particulares: quem tem o fim há de ter os meios. Acontece que, no sistema atual, datado de 1988, as coisas apresentam-se de modo diferente. Em tempos idos, não era o recurso extraordinário que zelava tanto pela guarda da Constituição quanto pela guarda das leis federais? A par do contencioso infra, o Supremo igualmente tinha o contencioso constitucional, e o teria, naqueles pretéritos momentos, de feição total e completa, sendo-lhe legítimo e legal o conhecimento da matéria constitucional, tanto de ofício quanto a requerimento. Foi-lhe, no entanto, subtraída uma de suas duas jurisdições.

Se aquele recurso extraordinário possuía dois motivos, perdeu um deles, e o perdeu porque o antigo extraordinário se dividiu entre o extraordinário stricto sensu e o especial. Agora, o encargo de zelar pelas leis e tratados federais compete ao novel recurso especial. Foi para tão importante e tão nobre missão que se criou o Superior Tribunal, cabendo-lhe estatuir e prescrever sobre todo o direito ordinário, de maneira definitiva, final e, por conseguinte, irrecorrível. Há uma só instância de superposição e há dois recursos, um em que se veicula a matéria constitucional, outro em que se veicula a matéria infraconstitucional: a um Tribunal assiste ou assistiria o contencioso constitucional, apenas e unicamente, salvo uma ou duas hipóteses, ao outro Tribunal ocorre o contencioso infraconstitucional (e haverá de ocorrer sem interferência alguma, com autoridade de coisa julgada), podendo-lhe suceder o contencioso constitucional, em raríssimas hipóteses. Quando, na origem, ao ver do legislador de 1990 (Lei nº 8.038), são admitidos os dois recursos, o julgamento do especial prefere ao do extraordinário, salvo se este, em que veiculada a questão constitucional, for prejudicial àquele, caso em que os autos hão de ser remetidos ao Supremo.

Faltando ao Superior, no julgamento da causa pelo recurso especial (Constituição, art. 105, III), o contencioso constitucional, em princípio, e de todo privado o Supremo, no julgamento da causa pelo recurso extraordinário (Constituição, art. 102, III), do contencioso infraconstitucional, indaga-se se, a despeito dessa evidente colocação, mormente quanto à primeira ausência, pode o Superior conhecer de ofício da questão constitucional, diga-se, declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público, previamente ao julgamento do recurso especial?

Foi em meados do ano de 1992 que a Corte Especial teve a oportunidade de se pronunciar sobre o tema, contudo, não o fez, em virtude da superveniência de uma especial circunstância. E o Ministro Pádua Ribeiro, naquela ocasião, já destacava, em seu voto, que o Tribunal estava “a decidir uma tese, pela primeira vez, da mais alta significação”, consistente “em saber se é possível, por ocasião do julgamento do recurso especial”, o Superior “exercer o controle da constitucionalidade das leis”. Ocupava-se de uma argüição, de ofício, acolhida, previamente, pela 4ª Turma, num processo da relatoria do Ministro Athos Carneiro, em que se alegava que o tribunal local deixara de aplicar a lei federal, negando-se-lhe assim vigência, mas, durante o julgamento daquele recurso especial, ocorrera à 4ª Turma que o texto em causa – isto é, o art. 5º da Lei nº 4.886/65 (atividades dos representantes comerciais autônomos) – era inconstitucional. A limitação nele constante, ao sentir da Turma, feriria o princípio do livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, a que se refere o atual inciso XIII do rol dos direitos e deveres individuais e coletivos.

Nesse caso, se proclamada, pela Corte Especial, a suscitada inconstitucionalidade, a proclamação não iria favorecer o recorrente. Ao contrário, iria prejudicá-lo: teria ele razão se a lei não estivesse viciada; dado que sim, do recurso especial depois não se conheceria. Diante disso, a mim me sucedeu, naqueles autos do REsp-12.005, nos quais estava em causa a prejudicial de inconstitucionalidade, que era admissível se procedesse daquela forma, em razão de, nas hipóteses dessa ordem, ou seja, quando a declaração incidental não beneficiar a parte recorrente, o Superior Tribunal também possuir o controle difuso de constitucionalidade. Aconteceu, entretanto, que, naquele caso, cuidava-se de lei precedente (ou lei pré-constitucional; a propósito, fala Machado Horta, reportando-se a Canotilho, em “antinomias entre o Direito Constitucional novo e o Direito pré-constitucional”), e a incompatibilidade entre a Constituição e a lei – disse eu, após pedido de vista – haveria de se resolver na via da revogação, e foi a tese que prevaleceu. Em virtude dessa circunstância e relevante motivo, a Corte Especial, não conhecendo da argüição, aliás contra alguns votos, acabou não se pronunciando, de modo conclusivo, sobre aquele outro tema a cujo respeito havia dito o Ministro Pádua cuidar-se de tese “da mais alta significação”.


Por certo, no curso dos debates verificados na Corte, o Ministro Athos chegou a dizer que, no caso, éramos obrigados a enfrentar o tema da inconstitucionalidade, porquanto, “caso contrário, teremos necessariamente de dar provimento ao recurso especial, pois o tribunal de origem não aplicou a mencionada norma de lei federal”. Veja-se, assim, que o relator implicitamente reconhecia que, em feitos dessa ordem, a saber, quando não se beneficia o recorrente, competiria ao Superior enfrentar a questão constitucional, por causa do controle difuso. Ainda é certo que, em seu voto, Athos não fora peremptoriamente da opinião que, a não ser essa, outra hipótese de declaração não existiria. Pareceu-lhe que, cabendo a qualquer juiz o conhecimento da matéria constitucional, ipso facto, caberia a qualquer tribunal. Em meu voto, porém, fui da opinião que o incidente não poderia interessar ao recorrente, e aproveitei para recordar palavras do Ministro Eduardo Ribeiro, proferidas na 3ª Turma.

Na Corte Especial, se ainda entendia o Ministro Pádua inexistir “qualquer razão plausível, à vista do nosso sistema constitucional, de negar-se apenas a um Tribunal, da hierarquia deste, poderes de incidentemente declarar a inconstitucionalidade de lei diante de um recurso especial que esteja a apreciar”, de outro lado ocorria ao Ministro Torreão Braz, em posição contrária à dos demais Ministros que participavam do julgamento da argüição nos autos do REsp-12.005, que era inadmissível toda e qualquer especulação constitucional em recurso especial, mesmo que esse exame viesse beneficiar o recorrido, porquanto, afirmou Torreão, citando dispositivos da Constituição e da Lei nº 8.038, que (I) “Ficou visível a preocupação do legislador em sistematizar a matéria, em obediência ao comando constitucional, e com tal propósito distribuiu em compartimentos estanques o controle do julgado da instância ordinária em face da lei federal comum, de cujo mister incumbiu o Superior Tribunal de Justiça através do recurso especial, e o controle diante da Constituição, a cargo do Supremo Tribunal Federal por intermédio do recurso extraordinário” e que (II) “Portanto, apreciar no recurso especial questão constitucional – ainda que suscitada pela parte – soa a prática teratológica, aberrante do sistema, porque a função única do aludido recurso é garantir a unidade de interpretação do direito federal infraconstitucional, e não verificar – porque isto evidentemente implicaria desvio de função – se o decisum do tribunal de segundo grau está às testilhas com a Carta Magna”.

Já que se não conheceu da argüição de inconstitucionalidade, os autos do especial, que se achavam na Corte, tornaram à Turma, e lá não se conheceu do recurso, de acordo com o mesmo princípio, ou seja, o recorrente teria razão se em perfeita ordem estivesse a lei, mas, não dispondo ela de eficácia, validez e vigência, dada a sua incompatibilidade com textos constitucionais tanto pretéritos como atuais, impunha-se o não-conhecimento do recurso, simplesmente: “é de considerar-se, destarte, não vigente e, pois, não incidente ao caso sub judice”, foi a conclusão da 4ª Turma, em 20.4.93, com acórdão publicado no DJ de 28.6.93. Em termos de aplicação desse princípio, é indiferente saber se a lei é inconstitucional ou se está revogada: tanto faz a solução que se dá à incompatibilidade entre os apresentados textos. Escreveu Bittencourt, em 1949: “A inconstitucionalidade da lei, uma vez reconhecida e declarada pelos tribunais, tem como conseqüência necessária ou a sua revogação, ou a sua inexistência, ou a sua ineficácia”. Malgrado seja desta forma, não houve, na 4ª Turma, explícita preocupação em assentar que se procedia assim por se tratar de solução favorável ao recorrido. Se se cuidasse de beneficiar o recorrente, seria possível? Não, não seria, segundo as minhas reflexões.

Em 1990 e no início de 1992 – antes mesmo que a Corte Especial fosse provocada, em julgamento perante ela ou em remessa de feito por Seção ou Turma, arts. 199 e 200 do Regimento -, o tema concernente à declaração de inconstitucionalidade já viera à baila na 3ª Turma, em duas ocasiões e ambas a propósito do deflator previsto no Decreto-lei nº 2.335, de 12.6.87 (com alterações a cargo dos Decretos-leis nºs 2.337 e 2.342/87): no REsp-2.658, de 1990, publicado no DJ de 12.11.90, comentou-se o assunto, mas não se chegou a formular a argüição; no REsp-6.975, de 1992, publicado no DJ de 25.5.92, fez-se de ofício a argüição e, em seguida, ouviu-se o Ministério Público (Cód. de Pr. Civil, art. 480), mas a argüição foi rejeitada pela Turma, contra o voto do Ministro Dias Trindade. Eis o que disse o Ministro Eduardo Ribeiro, em ambos os casos: “Será o especial cabível quando a decisão recorrida contrariar tratado ou lei federal, ou der-lhe interpretação diversa da acolhida por outro Tribunal. Parece, à primeira vista, que, não contemplada a contrariedade à Constituição, a ensejar recurso extraordinário (105, III, ‘a’), não se colocaria a possibilidade do controle em exame. Assim não é, entretanto. Pode suceder que o Tribunal local haja decidido de modo a violar o disposto em determinada lei, ou dissentido da interpretação que lhe foi dada por outro julgado. O especial, em conseqüência, haverá de ser conhecido. Entretanto, não se afasta entenda a Turma que aquela mesma lei é inconstitucional. Assim entendendo haverá de declará-la. O recorrente, que teria direito, em vista do estabelecido na lei ordinária, não o tem por derivar de norma que não se ajusta à Constituição. Isto este Tribunal deverá verificar. Note-se que o recorrido, a quem interessaria o reconhecimento da inconstitucionalidade, não poderá recorrer extraordinariamente, pleiteando tal declaração, por falta de interesse, já que não sucumbiu. A solução não pode ser outra. Ao Superior Tribunal de Justiça, admitindo que a lei, em princípio, confere o direito postulado, não será lícito furtar-se ao exame de sua constitucionalidade”.


Nesses dois casos (REsp’s 2.658 e 6.975), tratar-se-ia de declaração contra o interesse da parte recorrente: teria ela razão se a lei não fosse inconstitucional. Como não se fez a declaração, uma vez que as argüições não foram à frente, uma nem sequer ganhou corpo e alma, e a que ganhou não saiu da Turma, logo, a questão não foi submetida à Corte, os recursos especiais então foram conhecidos e providos, pois, na origem, deixara-se, naqueles casos, de se aplicar a lei no ponto em que se determinava fossem deflacionadas as obrigações constituídas entre 1º de janeiro e 15 de junho de 1987.

Em 1991, em feitos igualmente contrários ao interesse da parte recorrente, o Ministro Gomes de Barros, por ocasião do julgamento, numa mesma sessão, dos REsp’s 12.267, 12.309 e 12.417, publicados no DJ de 16.10.91, argüia, na 1ª Turma, a inconstitucionalidade do art. 3º do Decreto-lei nº 1.075, de 22.01.70. Nesses processos, tratou-se de pronunciamento único (evidentemente que a argüição não prosperou), assim a Turma, julgando os recursos, deu-lhes provimento. Em sua intervenção, o Ministro Gomes não cogitou de se tratar de casos em que, se feita, a declaração não iria prejudicar o recorrido. Ao contrário, ali, iria beneficiá-lo; caso em que teria cabimento, em tese.

Em 1999, durante o julgamento, na 3ª Turma, do REsp-92.719, o Ministro Eduardo provocou discussão constitucional sobre o texto do art. 1º da Lei nº 8.030, de 12.4.90. Ao seu ver, ocupar-se-ia de norma viciada. Decidiu-se ali, já percorridas algumas etapas do julgamento do especial, pela remessa dos autos ao Ministério Público (Cód. de Pr. Civil, art. 480). Se for à frente o incidente (os autos encontram-se em gabinete), tratar-se-á de prejudicialidade que, se acolhida, não favorecerá a parte recorrente. Juridicamente, será possível, nessa hipótese, a argüição no seio do Superior Tribunal.

Por que não é possível se proclame a inconstitucionalidade de preceito ou ato em benefício da parte recorrente? Lembre-se que, em 1990 e 1992, na 3ª Turma, em 1991, na 1ª Turma e, em fins de 1992, na Corte Especial, essa pergunta com todas as suas letras e com todas as suas conseqüências não foi formulada, por isso que, naquelas oportunidades, a aventada prejudicial, se e quando acolhida, não iria favorecer a parte recorrente, mas sim, a parte recorrida. Nesses casos, as argüições nem venceram a fase inicial: nas Turmas, a questão foi imediatamente rejeitada, e, na Corte, a eventual incompatibilidade resolver-se-ia como se resolveu na via da revogação (a lei já se achava em vigor), tornando, assim, os autos à Turma.

Em 1998, apareceu outra oportunidade, mas em vão, quando a 4ª Turma, em virtude da relevância da questão federal versada nos autos, remeteu à Corte Especial o REsp-182.820, da relatoria do Ministro Sálvio, no qual se alegava que a instância de origem não observara o disposto no art. 526 do Cód. de Pr. Civil. Ora, iniciado o julgamento do especial, o Ministro Fontes argüiu, em questão de ordem, a inconstitucionalidade dessa soi-disant norma processual. Acolheu-se a questão de ordem, sim, a fim de, primeiro, ouvir-se o Ministério Público (Regimento, art. 199), se não após um bom e longo debate relativamente a se se impunha de pronto a oitiva ministerial ou se, antes da audiência, cumprir-se-ia verificar da razoabilidade da argüição. Em momento algum se falou sobre o cabimento da argüição – a quem aproveitaria a declaração, se ao recorrente ou ao recorrido. Como a argüição, logo após a volta dos autos (Regimento, art. 199, § 1º), foi rejeitada, entendendo-se que se não verificava qualquer inconstitucionalidade, a Corte, talvez em virtude da imediata rejeição da questão que lhe fora previamente submetida, não tenha mesmo se preocupado com a admissibilidade em tese do incidente. Ensejo até que de novo houve, em vão, pois o Tribunal, em ocasião também azada, não se pronunciou acerca da admissibilidade.

Iria se pronunciar depois, ainda que não por expressiva maioria, e não de modo definitivo, pronto e conclusivo. Particularmente, sempre me afigurou que o prévio exame da constitucionalidade não haverá de ir ao encontro do interesse da parte recorrente, não poderá ela se beneficiar com a declaração de existência de vício na lei, porque ao Tribunal, depois, não assistiriam meios para o exame do recurso especial – completar o julgamento do feito (Súmula 513/STF). Senão, veja-se. Quando julga, no especial, as causas decididas em única ou última instância (Constituição, art. 105, III), o Superior, como várias vezes recordado, em princípio não possui o contencioso constitucional. Essencialmente, cabe-lhe o contencioso infraconstitucional, sabendo-se que a finalidade do especial é a de zelar pela guarda dos tratados e leis federais. A questão veiculada no especial há sempre de ter suporte no direito ordinário, tanto que, se houver no acórdão recorrido outro fundamento, de ordem constitucional, dois haverão de ser os recursos excepcionais. Vale dizer que, acolhido seja o incidente a favor do recorrente, impende ao Tribunal reformar o julgamento local da causa, impondo-se-lhe sem dúvida o provimento do recurso especial, dado que se estaria diante de acórdão que aplicara lei inconstitucional. O provimento do recurso pressupõe, porém, o seu conhecimento, e se o especial não for conhecível? Ao que cuido, dificilmente – se não, jamais – o será, a não ser que se rompa com uma série de princípios, como o do prequestionamento, o da demanda, o das questões não suscitadas, o da não-aplicação do iura novit curia etc. Observe que, para Bittencourt, os tribunais não devem fugir à tese “sempre que, legitimamente, o exame da constitucionalidade se apresente útil ou conveniente para a decisão da causa!”. Em tal contexto, a declaração em benefício do recorrente não se apresentará útil ou conveniente, porquanto, não conhecível o especial (dificilmente, ele o será; a meu sentir, jamais), a declaração de inconstitucionalidade não terá utilidade ou conveniência para a decisão da causa. Nesse aspecto, acabará se cuidando de declaração em tese, própria do controle concentrado-abstrato, da competência exclusiva do Supremo Tribunal.


De sorte que somente se admite, no âmbito do Superior, o controle difuso-incidental quando não se requer seja conhecido o recurso especial. Juridicamente, é possível, em atenção ao interesse do recorrido. Já se mencionou algumas vezes que o recorrente teria razão se a lei não fosse inconstitucional; sendo, há de se deixar de conhecer do recurso, simplesmente. De outra banda, aceita-se possa o Superior, no exercício da competência prevista no aludido inciso III, lidar com o texto constitucional se, por exemplo, o vencedor na instância ordinária assume a condição de vencido na instância especial. É necessário, todavia, que, nessa hipótese, a questão tenha sido suscitada na instância de origem, não importando se sobre ela lá tenha havido pronunciamento, bem como se impõe tenha sido levantada nas contra-razões do especial. Se o Superior, no julgamento do recurso, não tiver se manifestado sobre a questão constitucional, cabem os embargos de declaração, a fim de se ensejar em nome do vencido o recurso extraordinário. O que não é cabível é a inovação, não podendo o vencedor e depois vencido deduzir novas alegações, mesmo que de cunho constitucional.

Mas a Corte Especial, com o objetivo de examinar a prejudicial de inconstitucionalidade, voltou a se reunir no final de 2000 e no primeiro semestre de 2001 – já se reunira, por duas outras vezes, em 1992 e 1998 -, reuniu-se novamente por causa da remessa que lhe foi feita dos autos do REsp-215.881, da relatoria do Ministro Franciulli. Discutindo-se sobre a repetição de indébito tributário, a 2ª Turma acolhera nos autos, de ofício (Regimento, art. 200 e Cód. de Pr. Civil, art. 481), a argüição de inconstitucionalidade do § 4º do art. 39 da Lei nº 9.250, assim redigido pelo legislador de 1995: “A partir de 1º de janeiro de 1996, a compensação ou restituição será acrescida de juros equivalentes à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia – SELIC para títulos federais, acumulada mensalmente, calculados a partir da data do pagamento indevido ou a maior até o mês anterior ao da compensação ou restituição e de 1% relativamente ao mês em que estiver sendo efetuada”. Iniciada a votação, levantei de imediato a preliminar de não-cabimento da argüição, faltando-lhe o pressuposto de não se prejudicar o recorrido, no caso, se acolhida, a proclamação da inconstitucionalidade, que se impunha, prejudicaria exatamente o recorrido, e a Corte, por maioria de votos, vencidos os Ministros Franciulli, Peçanha, Milton, Ruy e Eliana, reputou sem cabimento o incidente (sessão de 18.4.01).

De fato, a argüição não progrediu. Encerrada a votação, verificou-se que idênticos não foram os fundamentos com os quais a maioria resolveu a argüição, pela sua rejeição. A mim, era porque o recorrido careceria de interesse na declaração de inconstitucionalidade, que, se feita, contrariaria amplamente o seu interesse. Faltava, por conseguinte, cabimento à argüição. Ando convencido de que a declaração é admissível numa única hipótese: quando não atinge o interesse do recorrido; portanto, se contrária ao interesse do recorrente. Se acaso beneficiar o recorrente, a insolúvel questão é a seguinte: como o Tribunal irá depois julgar o especial e decidir a causa se, em tese, o recurso não é conhecível; o Tribunal não terá meios para conhecer do especial. Tudo decorre do sistema institucional, jurídico e lógico instalado em 1988, que destinou, em feitos dessa ordem, a matéria constitucional ao Supremo e a infraconstitucional ao Superior. Não é que o Superior não tenha o contencioso constitucional, tem-no, sim, em uma ou duas hipóteses. Leia-se que essa colocação não diminui o Superior, engrandece-o, ao contrário, ao situá-lo como o Tribunal da matéria infraconstitucional, de toda a matéria, final e irrecorrível, no desempenho da competência a que se refere o inciso III.

Tendo em mãos, após pedido de vista, os autos dessa argüição, pareceu ao Ministro Gomes de Barros tratar-se a matéria em foco de questão preclusa. É que, ao tempo em que se formou o acórdão, ou mesmo antes, quando se prolatara a sentença, a questão era suscitável; não houve iniciativa alguma. Com a sua inércia, a parte deixou que se operasse a preclusão. Já, para o Ministro Cesar Rocha, incidente desse feitio não poderá ser suscitado de ofício se trouxer, para o recorrente, prejudicialidade maior que a contida na própria decisão recorrida. Aliás, como também fiz constar em meu voto, a declaração, na espécie, também não beneficiaria o recorrente – o caso era diferente, por isso, também disse eu, o Superior estaria se pronunciando in abstracto.

Aos votos que lá ficaram vencidos ocorreu, entre outras significativas rememorações, que a defesa da Constituição é tarefa indeclinável, natural e própria de todo e qualquer juiz, em qualquer tempo e grau de jurisdição, e que o Superior ficaria, em assim procedendo, omisso diante da possibilidade de fazer o controle difuso-incidental, ou que os juízes do Superior tornar-se-iam juízes de alçada infraconstitucional, exclusivamente. A preocupação residiria numa eventual limitação de poder, ou numa redução da competência do Superior. Ao fim e ao cabo, significaria diminuição ou perda de autoridade (capitis diminutio).


Dúvida não há quanto à seriedade das objeções, particularmente sucede a mim, no entanto, que inexiste diminuição ou perda da autoridade, da competência ou do poder. A orientação que se prega e se advoga e que bem ressoou no meio da 3ª Turma não converte em menor o Superior, ao contrário, torna-o maior, mais forte, com mais autoridade, engrandecido e poderoso, fazendo-o o Tribunal supremo da matéria infraconstitucional, como várias vezes já se disse e se diz agora de uma vez por todas, de todo o direito comum e com exclusividade, irrevisíveis as suas decisões, como o Supremo é o Tribunal supremo da matéria constitucional. É aquele resultado lógico do sistema institucional adotado em 1988, de maneira que o Superior há sempre de ser a última palavra na interpretação do direito comum, dele havendo de se dizer o mesmo que se falava de Roma a propósito da causa finita. Ademais, não se veda de todo ao Superior, no juízo do recurso especial, o controle difuso-incidental.

Pois bem, se ao Superior só cabe o controle difuso-incidental quando não irá beneficiar o recorrente, se, nesse mesmo juízo do recurso especial, lhe é vedado todo e qualquer pronunciamento sobre eventual contrariedade à Constituição, salvo raríssimas hipóteses, por exemplo, se o vencedor na instância ordinária se torna vencido na instância extraordinária e se o Superior inquestionavelmente é o Tribunal do direito ordinário, irrecorríveis as suas decisões, como melhor se impõe – tudo que foi lembrado decorre do próprio sistema jurídico-institucional de organização da instância de superposição -, a melhor das reflexões e a mais sábia das compreensões é a que está a exigir que algumas disposições atinentes à competência do Supremo hão de ser despretensiosa e pacientemente meditadas, em exame que se requer e se impõe, de sorte que, se ao Supremo há de competir a matéria constitucional, sempre e só, exceto uma ou duas hipóteses de competência originária, ao Superior há de competir, da mesma forma, a última palavra a respeito da matéria infraconstitucional, irrevisível e irrecorrível, em qualquer circunstância. Daí que, ao se estatuir, como se estatuiu na alínea i, I, do art. 102, que compete ao Supremo processar e julgar, originariamente, “o habeas corpus, quando o coator for Tribunal Superior”, há de se ler, em relação ao Superior Tribunal, que aí se rezou que o habeas cabe apenas na hipótese de descumprimento de preceito constitucional, jamais de preceito ordinário, do mesmo modo, ao se prescrever, como se prescreveu na alínea a, II do art. 102 que compete ao Supremo julgar, em recurso ordinário, os mandados e os habeas decididos pelos Tribunais Superiores, há de se entender, em relação ao Superior Tribunal, que há de versar apenas a matéria constitucional (a matéria infra nasce, desenvolve-se e morre no Superior).

Se a interpretação que se propõe dessas e de outras competências não for juridicamente admissível, convoquemos então as férteis, vivas e descompromissadas inteligências do mundo jurídico brasileiro para que somem conosco na difícil e interminável empreitada de reformar o Judiciário, a fim de que, alterando e reformando aqui e ali, possamos, em nome dos melhores conceitos jurídico-universais, de idéias e reflexões de ontem e de hoje, purificar o sistema que herdamos dos constituintes de 1987 e 1988, tornando o Superior o verdadeiro Tribunal da matéria infraconstitucional, de toda ela e de modo irrevisível. Em conclusão:

1. É do Superior toda a jurisdição infraconstitucional (direito ordinário), salvo hipóteses que dizem respeito a determinados membros de Poder, como o presidente da República (Constituição, art. 102, I, b e d).

2. No exercício das competências previstas nos incisos I e II do art. 105, livremente o Superior também dispõe do contencioso constitucional. Por certo, é-lhe lícito o modelo difuso-incidental de controle de constitucionalidade. Sua palavra não é final; em tese, sempre haverá o recurso extraordinário.

3. No exercício da competência prevista no inciso III do art. 105, amplamente o Superior dispõe do contencioso infraconstitucional. Em princípio, não tem o contencioso constitucional. Te-lo-á em uma ou duas hipóteses, podendo fazer, incidente e previamente, declaração de inconstitucionalidade. Não, se em benefício da parte recorrente.

4. É do Supremo a jurisdição constitucional. É o Tribunal da Constituição, órgão mais de natureza política – Corte de Justiça Política. Do Supremo esperar-se-ia, como alhures se esperou, se substituísse ao poder moderador. Melhor ficaria se transformado em Corte Constitucional, exclusivamente.

5. Para zelar pela guarda da Constituição, todos os instrumentos são úteis, necessários e legítimos ao Supremo. Ao lado do modelo difuso-incidental, compete-lhe, e somente a ele, o modelo concentrado-abstrato de controle de constitucionalidade.

6. Não é útil, conveniente e nem é legítimo ao Supremo entrar na matéria infraconstitucional, cuja jurisdição pertence ao Superior. Significa que é vedado o conhecimento do extraordinário a pretexto de ofensa à Constituição e, em seguida, o desfecho da causa fundado no direito infraconstitucional (provimento). De acordo com o sistema vigente, apenas o Superior tem autorização constitucional, mediante o recurso especial, para decidir as causas aplicando-se-lhes o direito ordinário.

7. As decisões do Superior, tratando-se de matéria infraconstitucional, hão de ser finais, irrecorríveis, com autoridade de coisa julgada, tanto como já o são as oriundas de recurso especial, quanto haverão de sê-lo as provenientes do exercício das competências originária e ordinária.

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