Arma sem munição

Portar arma sem munição não é crime, diz Luiz Flávio Gomes.

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14 de novembro de 2001, 17h40

Arma de Fogo Desmuniciada configura crime? (1) . Quando a posse ou o porte de armas de fogo ultrapassa os limites da infração administrativa para alcançar o ilícito penal? A arma de fogo desmuniciada configura infração penal ou administrativa?

Jurisprudência

Na jurisprudência nacional, até agora, vem predominando o entendimento de que a arma de fogo, mesmo desmuniciada, caracteriza infração penal: STJ, HC 14.747, Gilson Dipp, DJU de 19.03.01, p. 127.

Na esteira desse entendimento, no último dia 6/11/01 a ministra Ellen Gracie, no HC 81.057, sob o argumento de que “a ofensividade da arma não está apenas no disparo, mas na intimidação”, votou no sentido de que a arma desmuniciada configura delito. Ilmar Galvão seguiu seu voto e, em seguida, pediu vista o ínclito ministro Sepúlveda Pertence. O julgamento, portanto, ainda não terminou.

Os votos já proferidos, sempre com a devida venia, incorreram em grave equívoco porque estão confundindo “ofensividade” com “poder de intimidação”. Poder de intimidação também tem a “arma” de brinquedo, a “arma” de sabão ou qualquer outro instrumento lesivo (real ou fictício). A criminalização da arma de fogo, considerada em si mesma, entretanto, não tem como fundamento esse poder de intimidação (fundado nas teorias subjetivistas, que alimentam o danoso Präventionstrafrecht), senão a sua potencialidade lesiva concreta (teorias objetivistas, que demarcam o Verletzstrafrecht).

Conceito de arma de fogo

Arma de fogo, conceitualmente, jamais se afasta da idéia de capacidade real para disparar projéteis. Nisso é que reside o seu perigo efetivo (típico). Arma que não é idônea (nas circunstâncias concretas em que é encontrada ou utilizada) para efetuar disparos não reúne a ofensividade exigida pelo tipo e pelo moderno Direito penal (é, aliás, meio absolutamente ineficaz ou exemplo de crime impossível, nos termos do art. 17 do CP). Pode configurar infração administrativa, não crime. Pode ser usada no contexto de outro delito, mas não é o objeto material exigido pelo art. 10 da Lei 9.437/97.

Há uma grande distância entre o Direito penal e os outros direitos satelitários (administrativo, sancionador, civil, comercial etc.). O Colendo STF está, até aqui, na questão da arma desmuniciada, distanciando-se da sua sabedoria excelsa e perdendo uma excelente chance de demonstrar (uma vez mais) a distinção científico-penal entre delito e infração administrativa.

Princípio da intervenção mínima

O Direito penal que herdamos neste princípio de terceiro milênio está regido por uma série de princípios limitadores do ius puniendi. Um deles – dos mais relevantes – é o da intervenção mínima, que se expressa em duas idéias: a tutela penal é fragmentária e subsidiária. Leia-se: somente os ataques mais intoleráveis aos bens jurídicos mais relevantes entram na esfera penal e, mesmo assim, quando outros ramos do Direito não forem adequados para a proteção do bem jurídico.

Imputação objetiva e princípio da ofensividade

Esse mesmo Direito penal, de outro lado, move-se sob a égide da teoria da imputação objetiva (2) assim como do princípio da ofensividade ao bem jurídico, (3) tal como o Colendo STF interpretou o artigo 309 do CTB e o art. 32 da LCP – cf. STF, HC 80.362-SP, Ilmar Galvão, Informativo STF n. 230, de 28.05 a 01.06.01 -; tal como, também, posicionou-se (recentemente) o STJ diante da cancelada Súmula 174 – arma de brinquedo – cf. STJ, REsp 213.054, José Arnaldo da Fonseca, j. 24.10.01.

Requisitos do fato ofensivo típico

Em conseqüência de todos esses avanços científicos na teoria do delito (e no Direito penal), já não se pode conceber o fato típico (doloso) senão quando presentes três (grandes) níveis ou categorias valorativas: (a) conduta criadora de um risco proibido relevante para o bem jurídico protegido; (b) produção de um resultado jurídico relevante (ofensa ao bem jurídico protegido) e (c) imputação subjetiva (dolo).

Conduta criadora de risco proibido relevante na lei das armas de fogo

A conduta, para criar um risco proibido relevante, nos termos da incriminação mencionada (art. 10), deve reunir duas condições: (a) danosidade efetiva da arma, leia-se, do objeto material do delito (potencialidade lesiva concreta) e (b) disponibilidade (possibilidade de uso imediato e segundo sua específica finalidade). O resultado da soma dessas duas categorias consiste na ofensa típica a um bem jurídico supraindividual (certo nível de segurança coletiva), que é também resultado da violação do princípio de confiança.

Para a punibilidade dos chamados delitos de “posse” (de “posesión”), que já representam uma antecipação marcante na tutela penal (Vorfeldcriminalisierung), torna-se imprescindível, assim, a constatação efetiva de um risco proibido relevante no objeto material considerado (arma, droga etc.). Do contrário, haveria uma outra etapa de antecipação da tutela penal e desse modo chegaríamos a um perigo de perigo de perigo… de perigo de lesão ao bem jurídico. Note-se que o referido dispositivo (art. 10) não pune a morte com a arma de fogo, a lesão com a arma de fogo, senão já (antecipadamente) a própria posse ou o porte dessa arma.

Bem jurídico protegido

Disso deriva a conclusão lógica de que a lei de armas (no art. 10, caput) não contempla como bem jurídico imediato a incolumidade individual. Na verdade, a proteção de bens primários do ser humano (vida, integridade corporal, etc) constitui o âmbito secundário dessa intervenção penal. A lei de armas de fogo surge para oferecer imediata proteção a uma outra ordem de interesses: a segurança coletiva (um certo nível de segurança).

Considerando que o bem jurídico protegido pela lei é a incolumidade pública, ou por outra, um certo nível de segurança coletiva (já que é impossível ao Estado garantir a todos a plena segurança) somente teremos um delito se o agente obrar de maneira a afetar, imediata e significativamente (leia-se – de forma relevante para o Direito Penal) o status desse almejado grau de segurança coletiva.

Conduta criadora de risco proibido relevante = danosidade do objeto material + disponibilidade

Retornemos, assim, à conduta criadora de um risco proibido relevante que, no caso, pressupõe duas outras categorias (danosidade real do objeto + disponibilidade, reveladora de uma conduta dotada de periculosidade).

Enquanto a danosidade real do objeto pode ser percebida concretamente (v.g. com a análise pericial de uma arma carregada) a periculosidade da conduta é imaterial em sua essência (por se tratar da representação valorada de uma conduta humana criadora de risco).

Somente quando as duas órbitas da conduta penalmente relevante (uma, material, a da arma carregada, e outra jurídica, a da disponibilidade desse objeto) se encontram é que surge a ofensividade típica (aquela não querida pela norma penal, reprovável, punível). Em outras palavras, o fato torna-se penalmente relevante (exclusivamente) quando o bem jurídico coletivo (no caso) entra no raio de ação da conduta criadora do risco proibido relevante.

Contudo, não será qualquer tipo de disponibilidade que será capaz de fazer surgir a ofensividade típica penal. Somente a chamada “disponibilidade condutora” (que conduz a um resultado jurídico típico) é a que possui idoneidade para aproximar dois âmbitos complementares que se unem no conceito (mais amplo) de ofensividade.

Por isso é que conseguimos compreender porque a disponibilidade precária, extremamente dificultosa ou falha (leia-se “disponibilidade não condutora”) não é idônea para configurar o ilícito penal (podendo, entretanto, constituir um ilícito administrativo).

Poder de intimidação do objeto não integra a “ratio legis”

Argumenta-se: mas a arma de brinquedo e a descarregada servem para intimidar. Não há dúvida. Ocorre que o que está inserido no âmbito da proibição do art. 10 da Lei 9.347/97 é o risco concreto que o objeto material (em determinadas condições) representa para o bem jurídico. Até porque, servem também para intimidar um pedaço de pau, um tijolo, uma barra de ferro etc. A ratio da punição penal não está na capacidade de intimidação do objeto, senão na sua capacidade ofensiva ao bem jurídico protegido. Fosse outra a razão da norma, todos os objetos que possam intimidar deveriam ser criminalizados.

Diante de tudo quanto foi exposto parece-nos correto inferir: um objeto material quando (em si mesmo) criminalizado (arma, droga etc.) deve sempre aportar danosidade material e ser apto para uso imediato (disponibilidade). A conduta como um todo (soma do objeto lesivo mais a disponibilidade) deve ser dotada do risco proibido penalmente relevante.

Armas quebradas, armas obsoletas, armas descarregadas, não oferecem essa aportação. Podem ser utilizados como instrumentos intimidadores, sim. Mas no contexto de outro fato típico. Pela teoria da imputação objetiva, de outro lado, o risco criado deve ter relação direta com o âmbito de proteção do tipo penal específico.

Atualidade da lição de Manzini

Daí ser perfeita a distinção de Manzini quando afirmava (com grande intuição) que existem na verdade três grandes fases no processo de materialização da disponibilidade (no caso da arma de fogo): a) a arma deve ser apta para o uso (possibilità di uso); b) o objeto material deve ser levado de maneira que possa ser utilizado caso seja necessário (possibilità di uso inmediato); c) e segundo sua natureza específica (possibilità di uso specifico). (4)

Uma vez constatada a disponibilidade sobre o objeto, segundo esses requisitos, é que surgem condições para que se materialize a ofensividade típica (leia-se: a infração penal). Fora disso, o que existe é uma mera infração administrativa.

Insista-se: demoramos dois séculos para distinguir com clareza o ilícito administrativo do penal (aquele pode ser fundado no perigo abstrato, este exige necessariamente um fato concreto ofensivo ao bem jurídico protegido). Não se pode perder, agora, nenhuma ocasião de colocar tudo isso em prática. Sublinhe-se que o fato de uma conduta não configurar delito, de outro lado, não significa que o bem jurídico deva ficar privado de todo tipo de proteção. A proteção administrativa também é muito relevante. Considerar como crime a arma desmuniciada é, em suma, um rematado equívoco.

Conclusão

Para que exista crime no âmbito da criminalização das armas de fogo é preciso analisar os dados de cada contexto fático e nele encontrar uma conduta criadora de um risco proibido relevante, que se expressa (no caso) no objeto material com real danosidade bem como na sua disponibilidade, mas tudo contemplado à luz do princípio da ofensividade (nullum crime sine iniuria). (5)

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