Bola dividida

Penal: juiz delimita fronteira entre justiça eleitoral e comum.

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12 de novembro de 2001, 13h34

Tanto a legislação eleitoral quanto o Código Penal e a legislação de imprensa regulam a calúnia e a difamação. Mas em que casos se deve recorrer a um juízo ou a outro?

Em voto proferido há tempos, o juiz do Tribunal de Alçada Criminal (Tacrim) de São Paulo, Luiz Ambra, examinando litígio entre o ex-prefeito Celso Pitta e um repórter do Jornal da Tarde, traçou as fronteiras entre essas esferas.

“Trata-se de uma decisão paradigmática em que prevalece o bom senso”, opina o advogado Eduardo Nobre, encarregado, no escritório Leite, Tosto e Barros, do acompanhamento da matéria eleitoral.

Leia a declaração de voto do juiz Luiz Ambra

Voto nº 5.951

Recurso em sentido estrito nº 1.063.367/4-Capital

Recorrente: Celso Roberto Pitta do Nascimento

Recorrido: Rogério Pacheco Jordão

Meu voto é convergente com os dos demais juízes da Turma Julgadora. Também estou em que a matéria em discussão é eminentemente eleitoral, sujeita pois a deslinde perante a Justiça própria. Daí o acerto da decisão atacada, que fica mantida.

Jornalista, o recorrido, contra ele se assacou queixa-crime, à vista de notícias tidas como inverídicas, caluniosas e difamatórias, por seu intermédio veiculadas no Jornal da Tarde, às vésperas do pleito eleitoral para Prefeito, em 1996.

Que houve motivação eleitoral, traduzida pela finalidade de influir no resultado do pleito, a própria inicial deixa bem claro, com todas as letras. Parte, aliás, desse pressuposto para aparelhar a queixa.

Se o faz, não seria na Justiça comum que poderia ser aforada, de conformidade com o escólio jurisprudencial referido na sentença.

Argumenta-se na irresignação, é bem verdade, que o pleito de 1996 se ateve à legislação própria, de cunho especial, baixada um ano antes – lei federal 9.100, de 29.9.95. De conteúdo diverso daquele do Código Eleitoral, inclusive em matéria penal.

Propaganda eleitoral, a partir daí, para os fins de estabelecer competência da Justiça Eleitoral nas infrações a ela respeitantes, seria apenas a definida no diploma legal novo, em seu artigo 54. Na qual não se subsumiria a conduta do recorrido.

Não se subsumindo, consoante o recurso, para aferir de conduta diversa remanesceria apenas a Lei de Imprensa. Na Justiça Comum, não no TRE.

Deve, data venia do ilustrado recorrente e de seu eminente causídico, ter havido algum equívoco. Porque a lei em questão – 9.100/95 – não poderia, quer parecer, ter jamais o tacanho e limitado alcance que se lhe procurou atribuir.

Dir-se-á que se trataria de legislação especial, de natureza temporária, destinada a vigiar apenas para a efeméride que visava regular. O que, no entanto, igualmente não se afigurava correto.

Nas eleições de 1996, como se sabe, funcionou a chamada “urna eletrônica”, a possibilitar apuração imediata de votos urna a urna, logo após o encerramento dos trabalhos de votação.

Computadorizadas as urnas, cautelas suplementares se fizeram necessárias para assegurar a lisura do pleito, daí em diante totalmente informatizado.

Seguiu-se o advento da lei nova, um “mini-Código” Eleitoral com nada menos do que noventa e um artigos. E com uma parte por inteiro destinada a ocorrências novas de natureza criminal (artigos 67 a 71). Que, todavia, não tinham porque deixar de coexistir com as figuras típicas já existentes, previstas no ordenamento anterior.

A lei nova, tal sucedendo, simplesmente completava a antiga; desta nada suprimia ou restringia, diversamente do que se sustentou. Tome-se, como exemplo, na parte criminal os ilícitos novos de seu artigo 67, incisos VII (“obter ou tentar obter acesso indevido a sistema de tratamento de dados utilizado pelo serviço eleitoral”) e VIII (“tentar desenvolver ou introduzir comando, instrução ou programa de computador, capaz de destruir, apagar, eliminar dado, instrução ou programa, etc”), dos quais até então não se cogitara.

Seriam esses, ao lado das nove outras figuras do artigo 67, os delitos de que unicamente haveria cogitar nas eleições de 1996? A resposta, certamente, havia que ser negativa.

Negativa, até, porque a esse respeito a própria lei nova era expressa, no artigo 4º: “nas eleições referidas nos artigos anteriores” – isto é,nas de 1996 que se iriam travar – “será aplicada a legislação eleitoral vigente, ressalvadas as regras especiais estabelecidas nesta lei”. Isto é, coexistiam os regramentos novo e antigo, a que antes se fez remissão.

O contrário nem teria lógica. Na esfera penal, mais propriamente, quem se arriscaria a sustentar a inaplicabilidade de delitos básicos do Código Eleitoral? Previstos, por exemplo, em seus artigos 308 (rubricar a cédula eleitoral em outra oportunidade que não a de entrega da mesma – em não funcionando a urna eletrônica a contento, tornava-se ao sistema antigo) ou 347 (recusar cumprimento a diligências, ordens ou instruções da Justiça Eleitoral)?

Subsistindo a lei antiga, ao lado da nova, a argumentação do recurso fazia por se esboroar. E, ainda que validamente se pudesse sustentar o contrário (o que se coloca apenas como argumentação), porque a lei nova à conduta típica do réu não se deveria aqui aplicar?

O que, afinal, dizia a lei nova? Confira-se, sem tirar nem por, a disposição de seu artigo 67, inciso IV.

Punia criminalmente o só “divulgar fato que sabe inverídico ou pesquisa manipulada com infringência do artigo 48″, assim como o “distorcer ou manipular informações relativas a partido, coligação, candidato ou sobre a opinião pública, com objetivo de influir na vontade do eleitor”.

Não era, afinal, exatamente disso de que o querelante se estava a queixar? De, com finalidade eleitoral – consistente em influir na vontade do eleitor, em outras palavras -, se divulgarem fatos mendazes e inverídicos, distorcendo informações relativas ao candidato queixoso?

Positiva a resposta, para que fugir à Justiça Eleitoral? Para aforar queixa-crime, à vez do declarante, pois no Foro Eleitoral só mediante denúncia haveria proceder, como as próprias razões recursais dão conta.

O se tratar de crime cometido pela Imprensa, por outro lado, em termos de competência nada alteraria. Faria, sim, por agravar a pena (“detenção,de dois meses a um ano”, se o crime é cometido “pela imprensa, rádio ou televisão”), mas sempre tocando sua apuração à Justiça Eleitoral.

Quer dizer, ainda quando aplicável ao caso unicamente a lei nova, em suas disposições se subsumiria, comodamente, a conduta assacada pelo recorrente ao recorrido.

Os dois acórdãos do STJ mencionados no recurso, por outro lado, absolutamente não tem o significado que se lhes buscou atribuir. São de 1990 e1992, quando igualmente a lei 9100/95 não havia surgido. A ela não dizem pois respeito. E neles se dispõe, com todas as letras, competente ser a Justiça Comum – STJ numa das hipóteses, pois o requerido era Governador de Estado; não o TSE – “inexistindo relação entre a declaração considerada ofensiva e a propaganda eleitoral” (Conflito de Competência 1593, rel. Min. Costa Leite, j. 25.3.91); ou, do mesmo modo, quando não cometidas as ofensas (contidas na publicação) “na propaganda eleitoral ou visando a fins de propaganda” (RP 13/90, rel. Min. William Patterson, j. 13.10.92).

A contrario sensu, se relacionadas as declarações com a propaganda eleitoral lato sensu – como aqui, onde a inicial admitiu que o noticiário se destinava a influenciar o resultado das eleições, atuando por modo reflexo em detrimento de um dos candidatos -, a competência seria sempre eleitoral.

Derivada, em última análise, da só divulgação de fato sabidamente inverídico (artigo 67, IV, lei 9.100) pela imprensa, relativo a um dos candidatos, com o fim “de influir na vontade do eleitor”.

Isso e tão só isso, data venia. Daí porque, eleitoral o tema, ora fica mantida a decisão atacada, pelo meu voto.

Luiz Ambra

3º juiz

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