FHC na ONU

Presidente do STF elogia discurso de FHC na ONU

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11 de novembro de 2001, 10h59

O discurso do presidente Fernando Henrique Cardoso, na Assembléia Geral das Nações Unidas, foi uma manifestação “belíssima” que toda pessoa de bom senso “certamente, gostaria de subscrever”. A opinião é do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Marco Aurélio.

Para o ministro, o discurso de FHC (leia a íntegra, abaixo), apresentado neste sábado (10/11) “honrou o Brasil, pela coragem, pelo equilíbrio e pela firmeza”. Marco Aurélio elogiou, ainda, a proposta de “globalização solidária” destacada no discurso.

Pouco antes de o governante dos Estados Unidos, George Bush, disparar uma nova saraivada de ameaças a países que simpatizariam com o terrorismo, o presidente brasileiro defendeu o Tribunal Penal Internacional, o Protocolo de Kyoto, a taxação do capital financeiro internacional e outras teses que o governo americano não aceita.

Em outra abordagem surpreendente, Fernando Henrique traçou relação entre os usuários de drogas, os paraísos fiscais e o terror. “Eles estão contribuindo para financiar o terrorismo”, disse.

Para o ministro Marco Aurélio, independentemente de opinião diversa que se possa a ter a respeito da política interna brasileira, o presidente da República foi notável ao convocar o mundo para a “construção de uma ordem internacional mais justa”.

FHC pregou também o fortalecimento da ONU, a criação de um Estado palestino, o equilíbrio social, econômico e as principais bandeiras humanistas contemporâneas. Disse também que o Brasil está disposto a receber refugiados afegãos e afirmou que, para ser bem-sucedida, a luta contra o terrorismo não pode ser unilateral.

“A Carta das Nações Unidas reconhece aos Estados membros o direito de agir em defesa própria. Isso não está em discussão. Mas é importante ser consciente de que o sucesso da luta antiterrorista não pode depender somente da eficiência das ações de autodefesa ou do uso da força militar de cada país”, acrescentou.

Ele propôs a “globalização solidária” e criticou indiretamente os Estados Unidos. “Nosso lema há de ser o da “globalização solidária”, em contraposição à atual globalização assimétrica”, disse ele em seu primeiro discurso na abertura da Assembléia desde que foi eleito para seu primeiro mandato. A Assembléia foi instalada com a presença de 43 chefes de Estado ou governo e 115 ministros de Relações Exteriores.

Segundo o relato do repórter Sérgio Dávila, da Folha de S.Paulo, o discurso incisivo de FHC causou um certo mal-estar na delegação norte-americana, uma vez que George W. Bush seria o presidente que sucederia imediatamente FHC no plenário.

Condoleezza Rice, conselheira de Segurança Nacional, e Colin Powell, secretário de Estado dos EUA, trocavam bilhetes e olhares entre si na bancada reservada ao país.

FHC reivindicou a participação do Brasil no Conselho de Segurança e a ampliação do número de países membros. Para ele, a instância “não pode continuar a refletir o arranjo entre os vencedores de um conflito ocorrido há mais de 50 anos”. Disse que o mesmo deve ocorrer com o G7/G8. “Já não faz sentido circunscrever a um grupo tão restrito de países a discussão de temas que têm a ver com a globalização e que incidem forçosamente na vida política e econômica dos países emergentes.”

Sobre a criação de um Estado palestino, FHC afirmou que “o direito à autodeterminação do povo palestino e o respeito à existência de Israel como Estado soberano, livre e seguro são essenciais para que o Oriente Médio possa reconstruir futuro de paz”.

Leia a íntegra do discurso do presidente Fernando Henrique Cardoso na ONU :

“Ao saudar Vossa Excelência, senhor presidente, presto tributo à República da Coréia, que dá ao mundo um exemplo de dedicação à paz e ao desenvolvimento. Reitero minha admiração ao secretário-geral Kofi Annan, que junto com a ONU recebeu a merecida homenagem do prêmio Nobel da Paz. Mais do que nunca, precisamos agora de sua lucidez e coragem no esforço de construção de uma ordem internacional pacífica, democrática e solidária. Só o fanatismo se recusa a ver a grandeza da missão das Nações Unidas e de Kofi Annan.

Senhor presidente, senhoras e senhores, por uma tradição que remonta aos primórdios desta organização, o mês de setembro em Nova York é marcado por uma celebração do diálogo: a abertura do debate desta Assembléia Geral. Não foi assim este ano. A ação mais contrária ao diálogo e ao entendimento entre os homens marcou o mês de setembro em Nova York, como também em Washington: a violência absurda de um golpe vil e traiçoeiro dirigido contra os Estados Unidos da América e contra todos os povos amantes da paz e da liberdade.

Foi uma agressão inominável a esta cidade, que, talvez mais do que qualquer outra, é símbolo de uma visão cosmopolita. Uma cidade que sempre acolheu indivíduos de toda parte, como aos judeus holandeses de origem portuguesa que no século 17 se transferiram do Brasil para a então Nova Amsterdã. Nova York cresceu, prosperou e firmou-se dentro dos valores do pluralismo. Fez-se grande e admirada não só por sua herança judaica, anglo-saxã, mas também pela presença árabe, latina, africana, caribenha, asiática. Os atentados de 11 de setembro de 2001 foram uma agressão a todas essas tradições. Uma agressão à humanidade.


Como primeiro chefe de Estado a falar nesta sessão da Assembléia Geral, quero ser muito claro, como o fiz na própria manhã daqueles horríveis atentados e nos contatos com o presidente George W. Bush: o Brasil empresta integral solidariedade e apoio ao povo norte-americano em sua reação ao terrorismo. Para nós, todo o continente americano foi atingido. Daí nossa iniciativa de propor a convocação do órgão de consulta do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca.

O terrorismo é o oposto de tudo o que a ONU representa. Destrói os princípios de convivência civilizada. Impõe o medo e compromete a tranquilidade e segurança de todos os países. As vítimas de qualquer ato terrorista não estarão sozinhas, e seus responsáveis indivíduos, grupos ou Estados que os apóiem não ficarão impunes. Encontrarão nos povos livres uma aliança sólida disposta a levantar barreiras contra a marcha da insensatez.

A carta das Nações Unidas reconhece aos Estados membros o direito de agir em autodefesa. Isto não está em discussão. Mas é importante termos consciência de que o êxito na luta contra o terrorismo não pode depender apenas da eficácia das ações de autodefesa ou do uso da força militar de cada país. O compromisso das Nações Unidas, em 1945, foi o de trabalhar para fundar a paz e preservar as gerações futuras do flagelo da guerra. A guerra tem sempre um pesado custo humano. Um custo em vidas interrompidas, em vidas refugiadas e amedrontadas. Tudo isso realça a responsabilidade dos terroristas pelo que sucede hoje. O Brasil espera que, apesar de todas as circunstâncias, não se vejam frustradas as ações de ajuda humanitária ao povo do Afeganistão. Mais ainda: dentro de nossas possibilidades, estamos dispostos a abrigar refugiados que queiram integrar-se ao nosso país.

Há coisas que são óbvias, mas que merecem ser repetidas: a luta contra o terrorismo não é, nem pode ser, um embate entre civilizações, menos ainda entre religiões. Nenhuma das civilizações que enriquecem e humanizam nosso planeta pode dizer que não conheceu, em seu próprio interior, os fenômenos da violência e do terror. Em todo o mundo, problemas de segurança pública, consumo e tráfico de drogas, contrabando de armas, lavagem de dinheiro são males afins ao terrorismo, que devemos extirpar.

Quero sugerir, desta tribuna, a realização de uma campanha mundial de opinião pública que conscientize os usuários de drogas em todos os países para o fato de que estão, ainda que involuntariamente, contribuindo para financiar o terrorismo. Se pretendemos estrangular o fluxo de recursos de que as redes ou facções terroristas se valem para espalhar a destruição e a morte, é imprescindível reduzir drasticamente o consumo de drogas em nossas sociedades.

Além disso, devemos evitar que as diferenças de regimes fiscais entre os países sirvam como instrumento para a evasão de divisas essenciais ao desenvolvimento ou como proteção para as finanças do crime organizado, inclusive de ações terroristas. Se a existência de paraísos fiscais for indissociável desses problemas, então não devem existir paraísos fiscais. Coloquemos um fim a esses abrigos da corrupção e do terror, até hoje admitidos complacentemente por alguns governos.

Senhor presidente, é natural que, após 11 de setembro, os temas da segurança internacional assumam grande destaque. Mas o terrorismo não pode silenciar a agenda da cooperação e das outras questões de interesse global. O caminho do futuro impõe utilizar as forças da globalização para promover uma paz duradoura, baseada, não no medo, mas na aceitação consciente por todos os países de uma ordem internacional justa.

Sobre essa questão, tenho procurado mobilizar as várias lideranças mundiais. O Brasil quer contribuir para que o mundo não desperdice as oportunidades geradas pela crise de nossos dias. Pensemos na causa do desenvolvimento, um imperativo maior. Há um mal-estar indisfarçável no processo de globalização. Não me refiro a um mal-estar ideológico, de quem é contra a globalização por princípio, ou de quem recusa a idéia de valores universais, que inspiram a liberdade e o respeito aos direitos humanos. Mas ao fato de que a globalização tem ficado aquém de suas promessas. Há um déficit de governança no plano internacional, e isso deriva de um déficit de democracia. A globalização só será sustentável se incorporar a dimensão da justiça. Nosso lema há de ser o da “globalização solidária”, em contraposição à atual globalização assimétrica.

No comércio, já é hora de que as negociações multilaterais resultem em maior acesso dos produtos dos países em desenvolvimento aos mercados mais prósperos. Os ministros reunidos em Doha têm uma pesada responsabilidade: a de fazer com que o novo ciclo de negociações multilaterais de comércio seja realmente uma “Rodada do Desenvolvimento”. Para isso, é indispensável avançar com prioridade nos temas mais relevantes para a eliminação das práticas e barreiras protecionistas nos países desenvolvidos.


O Brasil, que vem liderando negociações para garantir maior acesso aos mercados e melhores condições humanitárias para o combate às doenças, buscará encontrar o ponto de equilíbrio entre a necessária preservação dos direitos de patente e o imperativo de atender aos mais pobres. Somos pelas leis de mercado e pela proteção à propriedade intelectual, mas não ao custo de vidas humanas. Este é um ponto a ser criteriosamente definido. A vida há de prevalecer sobre os interesses materiais.

Senhor presidente, é necessário renovar as instituições de Bretton Woods e prepará-las para os desafios do século 21. É preciso dotar o FMI de mais recursos e de capacidade para ser um emprestador de última instância, e atribuir ao Banco Mundial e aos bancos regionais o papel de promotores mais ativos do desenvolvimento. Devemos reduzir a volatilidade dos fluxos internacionais de capital e assegurar um sistema financeiro mais previsível, menos sujeito a crises, na linha do que vem sendo proposto pelo G-20.

No mesmo sentido, embora não se ignorem as dificuldades práticas de um mecanismo como a “taxa Tobin”, poderíamos examinar alternativas melhores e menos compulsórias. Proponho que a Conferência sobre o Financiamento do Desenvolvimento, a realizar-se no próximo ano em Monterrey, dedique especial atenção a essas questões. Pensemos, também, em formas práticas de cooperação para amenizar o drama da Aids, sobretudo na África. Até quando o mundo ficará indiferente à sorte daqueles que ainda podem ser salvos das enfermidades, da miséria e da exclusão?

O final do século 20 marcou o fortalecimento de uma consciência de cidadania planetária, alicerçada em valores universais. O Brasil está decidido a prosseguir nessa direção. O Tribunal Penal Internacional será um avanço histórico para a causa dos direitos humanos.

A proteção do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável são também desafios inadiáveis de nosso tempo. A marcha das alterações climáticas é um fato cientificamente estabelecido, mas não é inexorável. O futuro depende do que fizermos hoje, em particular com relação ao Protocolo de Kyoto. É preciso encontrar a melhor maneira de implementá-lo. Ele não pode ser posto à margem.

Os eventos atuais, inclusive nesta cidade, mostram a dimensão da ameaça das armas de destruição em massa. Quer se trate de armas bacteriológicas, como o antraz, de armas químicas ou nucleares, não há alternativa ao desarmamento e à não-proliferação. Impedir que a ciência e a tecnologia se transformem em arma dos insensatos é imperativo ético, que só se efetiva com a interferência ativa e legítima das Nações Unidas no controle, destruição e erradicação desses arsenais.

Senhor presidente, assim como apoiou a criação do Estado de Israel, o Brasil hoje reclama passos concretos para a constituição de um Estado Palestino democrático, coeso e economicamente viável. O direito à autodeterminação do povo palestino e o respeito à existência de Israel como Estado soberano, livre e seguro são essenciais para que o Oriente Médio possa reconstruir seu futuro em paz. Esta é uma dívida moral das Nações Unidas. É uma tarefa inadiável. Como inadiável é a superação definitiva do conflito em Angola, que merece a oportunidade de retomar seu caminho de desenvolvimento. O mesmo futuro o Brasil deseja ao Timor Leste, que esperamos ver em breve ocupando seu assento nesta Assembléia como representação soberana.

Para responder a problemas cada vez mais complexos, o mundo precisa de uma ONU forte e ágil. A força da ONU passa por uma Assembléia Geral mais atuante, mais prestigiada, e por um Conselho de Segurança mais representativo, cuja composição não pode continuar a refletir o arranjo entre os vencedores de um conflito ocorrido há mais de 50 anos, e para cuja vitória soldados brasileiros deram seu sangue nas gloriosas campanhas da Itália.

Como todos aqueles que pregam a democratização das relações internacionais, o Brasil reclama a ampliação do Conselho de Segurança e considera ato de bom senso a inclusão, na categoria de membros permanentes, daqueles países em desenvolvimento com credenciais para exercer as responsabilidades que a eles impõe o mundo de hoje. Como considera inerente à lógica das atuais transformações internacionais a expansão do G-7 ou G-8. Já não faz sentido circunscrever a um grupo tão restrito de países a discussão dos temas que têm a ver com a globalização e que incidem forçosamente na vida política e econômica dos países emergentes.

Senhor presidente, uma ordem internacional mais solidária e mais justa não existirá sem a ação consciente da comunidade das nações. É um objetivo demasiado precioso para ser deixado ao sabor das forças do mercado ou aos caprichos da política de poder. Não aspiramos a um governo mundial, mas não podemos contornar a obrigação de assegurar que as relações internacionais tenham rumo e reflitam a vontade de uma maioria responsável.

A sombra nefasta do terrorismo demonstra o que se pode esperar se não formos capazes de fortalecer o entendimento entre os povos. Esta organização foi criada sob o signo do diálogo. Diálogo entre Estados soberanos que sejam súditos de nações livres, cujos povos participem ativamente das decisões nacionais. Com sua ajuda, vamos fazer com que o século 21 não seja o tempo do medo. Que seja o florescimento de uma humanidade mais livre, em paz consigo mesma, na caminhada sensata para a construção de uma ordem internacional legítima, aceita pelos povos e ordenadora das ações dos Estados no plano global.

Este é o desafio do século 21. Saibamos enfrentá-lo com a visão grandiosa dos fundadores desta organização, que sonharam com um mundo plural, baseado na paz, na solidariedade, na tolerância, e na razão que é a matriz de todo o direito. Muito obrigado.”

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