Conversa secreta

AASP repudia postura do Ministério Público em conversa secreta

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27 de março de 2001, 0h00

A Associação dos Advogados de São Paulo repudia a postura do Ministério Público no caso da conversa gravada entre os procuradores e o senador Antônio Carlos Magalhães. Na ocasião, estavam presentes os procuradores Guilherme Schelb, Eliana Torelly e Luiz Francisco de Souza, que gravou as acusações de ACM contra alguns parlamentares e o presidente Fernando Henrique. A divulgação da conversa foi feita pela revista IstoÉ.

O editorial em que a AASP critica a atuação do Ministério Público deve ser publicado no boletim semanal de 2 de abril. “A gravação clandestina da reunião – e, pior, com auxílio de jornalistas a dedo escolhidos – revela a opção por método sub-reptício destinado não a apurar fatos, mas a produzir material para exploração pela mídia”, afirma a AASP.

Segundo o editorial, é preciso refletir “sobre os imprescindíveis limites de atuação do Ministério Público”.

Leia, na íntegra, a posição da AASP sobre a conversa gravada.

A pretexto de combater a corrupção, defender o patrimônio público e acabar com a impunidade, alguns membros do Ministério Público auto-proclamaram-se integrantes de uma “falange” e assim se consideram investidos de superpoderes, lançando contra todos os que se lhes oponham a pecha de “representantes das trevas”, numa perigosa tentativa de reedição de métodos medievais para apuração de faltas e aplicação de penalidades.

A recente reunião “reservada” entre três membros do Ministério Público Federal e um senador da República; sua gravação por um dos procuradores, com divulgação de seu teor por órgão de mídia impressa; a notícia de destruição das fitas; e os depoimentos dos três procuradores à Comissão de Ética do Senado Federal são fatos que devem levar a uma reflexão sobre os imprescindíveis limites de atuação do Ministério Público, sem o que, ao contrário de segurança, moralidade, ética e justiça, ter-se-á o império do arbítrio.

O cerne do problema talvez seja a falsa idéia – que têm alguns membros do Ministério Público – de que eles possuem poderes ilimitados, e tudo podem fazer na busca de seus objetivos, que dizem nobres, e portanto justificados todos os meios para os alcançar. Não é assim, contudo.

Se um representante do Ministério Público recebe alguém que diz ter “denúncias” a fazer, sobre fatos que possam estar na esfera de atribuição do Parquet, essa reunião não pode, nunca, ser realizada à sorrelfa. Deve ser objeto de documento que a registre, porque os membros do Ministério Público, como todos os servidores públicos, têm seus atos sujeitos ao controle social.

Se em tal reunião forem apresentados elementos que possam caracterizar improbidade administrativa, que se proponha a ação própria, ou se for necessária apuração mais detalhada, que se instaure inquérito civil público. Se surgir notícia de crime, são somente duas as alternativas que se apresentam aos representantes do Ministério Público: formular denúncia perante o juiz competente, se dos documentos apresentados se puder inferir a prática de crime, com indicação de seu ator; ou, se se fizer necessária alguma investigação, requisitar a instauração de inquérito policial (Constituição da República, artigo 129, VIII), pois “às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares” (Constituição, artigo 144, § 4º).

Por isso, a disposição de promover a gravação clandestina daquela reunião – e, pior, com auxílio de jornalistas a dedo escolhidos – revela a opção por método sub-reptício destinado não a apurar fatos, mas a produzir material para exploração pela mídia, conduta merecedora de críticas por ser incompatível com o desempenho da nobre função de membro do Ministério Público.

Os fatos que àquela gravação se seguiram são ainda mais graves, pois, após a divulgação por órgão de imprensa do alegado teor da reunião, sobrevém a notícia de que as fitas que a registraram haviam sido destruídas de forma absolutamente inacreditável: pisoteadas “com o calcanhar”, e depois levadas ao fogo purificador…

Quando os três procuradores compareceram ao Senado da República para prestar depoimento, viu-se cena insólita: o primeiro, autor da gravação, foi ouvido antes, e depois os outros dois prestaram um “depoimento a dois”, como jamais teriam permitido a depoentes que comparecessem para ser ouvidos em inquérito civil (ou inconstitucional “procedimento criminal”) por eles presidido.

E o procurador que não se furta a dar informações a jornalistas sobre suas investigações e as pessoas a elas afetas (desrespeitando o devido processo legal e se valendo da mídia para produzir “clamor público”), disse aos senadores que nada poderia dizer a respeito do teor da conversa mantida com um senador da República, nas dependências da Procuradoria da República, porque o colóquio fora “reservado”. E tudo com a complacência dos senadores, que normalmente se mostram dispostos a atacar pessoas que comparecem para depor, desrespeitando inclusive suas garantias constitucionais, não raras vezes impedindo que os advogados que as acompanham possam exercer livremente sua função.

Ora, não é possível admitir que membros do Ministério Público (“…instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” – Constituição, artigo 127) promovam investigações secretas, ou se ponham a tricotar no exercício de sua função, para depois escolher o que deve, ou não, ser objeto de suas ações. Isto é tão grave quanto expor à execração pessoas que estão sob suspeita, e que, lamentavelmente, são apresentadas como condenadas por fatos pelos quais nem sequer foram ainda formalmente acusadas.

Afinal, não podem os representantes do Ministério Público esquecer que deles também – e com maior razão ainda – se exige o respeito aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, enunciados no artigo 37 da Carta Maior. E não convém olvidar a lição da História, a indicar que investigações secretas são próprias de regimes autoritários; portanto, incompatíveis com o Estado Democrático de Direito, cuja defesa é uma das incumbências do Ministério Público.

Por isso, mais uma vez a Associação dos Advogados de São Paulo vem conclamar os membros do Ministério Público e do Poder Judiciário a não compactuarem com os desvios e abusos perpetrados por alguns poucos, que com suas temerárias ações põem em risco a democracia, sem a qual não há direito, muito menos justiça.

Revista Consultor Jurídico, 27 de março de 2001.

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