Diferenças questionadas

Aplicabilidade da lei é alvo de controvérsia na Justiça

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23 de março de 2001, 16h27

Em linha de princípio, cabe questionar se a Lei 8.009, de 29.3.90, é de ser ou não aplicada na Justiça do Trabalho, ou deve ser aplicada, mas sujeita a uma interpretação e um alcance muito restritos.

Na Justiça comum, são inegáveis as vantagens sociais que traz a indigitada lei, contendo a ganância de alguns (mais poderosos) que (impiedosamente) tentam tirar vantagens dos mais humildes (rectius: mais fracos), ou, como diz o preclaro juiz do Trabalho Leonardo Dias Borges:

“Com o nítido objetivo de proteger a família, abrigando-a de forma segura contra a incansável ganância das entidades financeiras, de inescrupulosos agiotas que, na tentativa inconseqüente de auferir lucros cada vez mais elevados, de forma quase sempre indecorosa, escabrosa, buscam apoderar-se do patrimônio dos devedores, geralmente vítimas da ignorância sem senso, exsurgiu o instituto do bem de família”.

Sem sombra de dúvida trata-se de instituto dos mais relevantes do direito, posto que ressalta, à toda evidência, o sentimento humanitário e social com que procurou o Estado preservar a família, garantido-lhe um lugar para morar, imunizando-a, destarte, da constrição judicial, salvo algumas exceções legais. “in O Moderno Processo do Trabalho”, escrito juntamente com Cláudio Armando Couce de Menezes, Ltr, 1997, pág. 55.

Com tão nobres e elevados ideais, natural a tendência para que se amplie o conceito de impenhorabilidade do quanto estatuído no art. 1o, § 1o, da mencionada lei 8.009/90, o que tem como cerne a preocupação com a existência digna, (mais digna ou minimamente digna, conforme o ângulo pelo qual se enxergue a questão) dos que possuem menos (ou quase não possuem) recursos.

Assim envoltos nesses sentimentos de humanidade e preocupação com o bem-estar e as necessidades do próximo, todos bem compreendem que se tenham por impenhoráveis aparelhos de televisão de som, videocassetes, “freezer” pianos e outros que, mais do que atender à necessidades básicas para uma existência digna, ofereçam também, lazer, a quem os possui, mas, como já se disse, uma vida digna passa por momentos de lazer. Daí, há de se ter por acertadas decisões como as seguintes:

“Execução fiscal. Embargos do devedor. Pretensão de impenhorabilidade de televisor colorido. Admissibilidade. Bem que guarnece a residência do devedor. Inteligência dos artigos 1o , parágrafo único, e 2o da Lei 8.009, de 1990. Recursos improvidos (TJ-SP – 7o Câm. de Direito Público; Ap. Cível nº 17.981-5-SP, Rel. Des. Jovino de Sylos, j. 18.08.1997, v.u.) JTJ 200/129”, in Boletim AASP, nº 2091, “Pesquisa Monotemática – Bem de Família”, p. 78.

“Penhora – TV. Piano. Bem de família. Lei nº 8.009/90. Art. 649, VI, do CPC. A lei nº 8.009/90 fez impenhoráveis, além do imóvel residencial próprio da entidade familiar, os equipamentos e móveis que o guarneçam, excluindo veículos de transporte, objetos de arte e adornos suntuosos. O favor compreende o que usualmente se mantém em uma residência e não apenas o indispensável para fazê-la habitável, devendo, pois, em regra, ser reputado insuscetível de penhora aparelho de televisão. In casu, não se verifica exorbitância ou suntuosidade do instrumento musical (piano), sendo indispensável ao estudo e futuro trabalho das filhas do Embargante. (STJ- R Esp. 207.762-SP- 3o T – Relator Ministro Waldemar Zveiter – DJU 05.06. 2000).” in “Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil”, nº 06, jul-ago/2000, pág. 127.

Então, com relação à Justiça comum, como a lei 8.009 tem em vista proteger os que têm menos recursos e/ou condições para ter uma existência digna (em sentido mais substancial), deve a mesma receber uma interpretação ampliativa ou evolutiva, de modo que passem a ser impenhoráveis, por exemplo, aparelhos de televisão, de som e videocassete, porque trazem informações e lazer, considerados como relevantes para que uma pessoa tenha uma vida digna.

Em síntese, na Justiça comum, a lei 8.009 tem a relevante missão de proteger os mais fracos, contras seus credores, normalmente grandes empresários, ou poderosas empresas, com sobras de poder econômico.

Agora, o que se questiona é se, aplicada na Justiça do Trabalho, atingiria a lei 8.009 esses fins sublimes, de proteção aos economicamente mais fracos, ou, pelo contrário, sua aplicação nessa Justiça Especializada, acabaria por distorcer e deturpar seu espírito e finalidade, servindo como fonte de angústia daqueles cujas preocupações e aflições deveria aliviar.

E isso pelo singelo e inegável motivo de que, o réu que se quer proteger, na Justiça comum, corresponde, via de regra, ao autor na Justiça do Trabalho, lá o devedor é fraco, aqui, o autor é que é fraco.

Essa diferença, que não é de pouca significação, é que faz com que alguns entendam que, na Justiça do Trabalho, não haveria espaço para aplicação da lei 8.009, já que, se aplicada, não se estaria protegendo a parte mais fraca, mas sim o mais forte, economicamente falando, sendo claro e irrecusável que, entre o empregado que não recebe seu salário e o empregador que não paga, há de se dispensar tutela àquele e não a este, mesmo porque, a razão de ser do Direito do Trabalho, com evidente repercussão no Processo do Trabalho, é a proteção ao empregado, economicamente mais fraco (aqui é grande a tentação para superlativar), atento a que, do contrário, esse ramo do direito poderia perder sua identidade, e com ela sua finalidade (o que vale, desculpando a digressão, ser observado quanto a algumas mudanças que se pretende nas leis trabalhistas).


Note-se que aludida lei, ao dispor, em seu art. 3o, que: “A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza…”, na prática, acaba, aplicada na Justiça do Trabalho, transferindo ao empregado, nos casos em que isso se dê, os riscos do empreendimento econômico, o qual (ainda) é de ser suportado pelo empregador (embora fortes ventos, vindos das mais variadas direções, queiram repassá-los aos obreiros). O culto Magistrado Francisco Antonio de Oliveira, em candentes palavras, afirma que:

“…Ao impedir-se que fosse penhorado bem do sócio, cuja empresa desapareceu com o fundo de comércio, estar-se-ia transferindo para o trabalhador o risco do empreendimento. Quando o empreendimento não dá certo e a empresa não se mostra idônea financeira e economicamente, pouco importando o motivo ou causa do insucesso, o trabalhador nunca responderá. Isso porque jamais corre os riscos do empreendimento, porque também jamais participou do lucro da empresa.

Assim, se tiver de levar à praça um imóvel ou bem do sócio cuja empresa tornou-se insolvente ou desapareceu com o fundo de comércio, não se há de perquirir se aquele é o único bem do sócio. E tudo isso porque o trabalhador, em sua quase unanimidade, nunca teve casa para morar e a expectativa de um dia vir a ter é tão remota que permanece como sonho. Mas o crédito trabalhista há de ser pago com todas preferências, posto que se cuida, não de morar, já que muitos moram embaixo de viadutos, mas para que o trabalhador possa sobreviver”. In “A Execução na Justiça do Trabalho”, RT, 4a Edição, págs. 136/7.

Não destoam dessas conclusões, as da ilustre advogada Marli Barbosa da Luz, que, sem refolhos e com a objetividade própria de quem tem certeza da consistência do que fala, sustenta que, “verbis”:

“O princípio básico da atividade comercial é o risco, que deve ser assumido e suportado pelo detentor do negócio. Se o fundo de comércio desaparece por qualquer problema, não é justo que ao empregado sejam transferidas suas conseqüências. Daí concluir-se não haver isonomia legal, já que a norma favorece o executado que detém maior poder que, o exeqüente. Daquele não se poderá penhorar o bem imóvel. Contudo, do exeqüente, que na quase maioria dos casos nem imóvel possui, será negado o alimento.” in “Revista Nacional de Direito do Trabalho”, vol. 06, pág. 19.

Não será demais recorrer, mais uma vez, ao ilustrado Leonardo Dias Borges, para lembrar seus ensinamentos, no sentido de que:

“É concebido que toda interpretação de norma que conduza a situações injustas merecem ser afastadas. Assim, a restrição ao direito do credor trabalhista é situação que deve ser posta de lado, em face da inequidade que daí exsurge…(sic), se a intenção do legislador é criar a norma de forma a manter a isonomia, tratando, pois, de maneira desigual os desiguais para se alcançar a igualdade, deve, portanto, a lei ser interpretada em favor do mais fraco. Assim, aplicar a lei nº 8.009/90 na Justiça Especializada é desconsiderar os princípios que norteiam o direito do trabalho, justamente porque se assim o for, não se estará fazendo Justiça aos mais fracos”, in obra citada, pág. 57.

Acresça-se que se questiona até a constitucionalidade da lei 8.009. no que tange a sua aplicação nessa Justiça Especializada; o ilustrado Juiz Bolívar Viégas Peixoto, em substancioso artigo intitulado “A Impenhorabilidade do Bem de Família e o Processo do Trabalho”, em uma de suas conclusões, já afirmou que:

“O bem de família, por conseqüência, não tem lugar na Justiça do Trabalho. Primeiro, porque a sua instituição não atende aos objetivos a que se destina, que é o de evitar o abuso de direito do credor contra o devedor hipossuficiente. Segundo, porque, mesmo não se considerando as suas finalidades sociais, existe flagrante inconstitucionalidade da lei 8.009/90, relativamente aos direitos dos trabalhadores, todos assegurados pela Constituição da República, inclusive e especialmente a execução da sentença que lhe é favorável. in ” Boletim Doutrina e Jurisprudência”, do TRT-3a Região, v. 17 -nº 01, jan-mar/1996, pág. 05.

O já mencionado juslaborista Francisco Antonio de Oliveira, também salientou que: Temos para nós, também, que referida lei ao investir contra o crédito trabalhista desrespeita mandamento constitucional, que premia os créditos de natureza alimentícia (art. 100) aí incluído o crédito trabalhista em sua inteireza, não somente aquele do trabalhador na residência”. (ob cit., pág.136).

Como é bem de ver vozes autorizadas com argumentos de peso são contrárias a aplicação da lei 8.009, na Justiça Obreira; haverá, por certo, quem sustente que tão abalizadas posições, em que pese o conhecimento de quem as emite, não tem como vingar, pois inconsistentes perante o direito positivo, já que o art. 3o , da referida lei, expressamente se refere a impenhorabilidade em sede trabalhista, porém, esses são, justamente, os argumentos que não empolgam, à uma, já que a própria constitucionalidade da lei 8.009 é alvo de controvérsia, como salientado já, e à duas, porque, entrando em outra disputa, haverá de fixar o alcance do direito positivo.


Evidentemente, não é aqui o campo adequado para se esgrimir acerca do atual prestígio do positivismo jurídico, mas não dá para deixar de observar que, como notado, há já algum tempo, entre outros, pelo Professor Eduardo Correia: “O positivismo legal está hoje em crise”, ao que acrescenta: “o direito não pode ser válido se se desprende do ingrediente da justiça”(apud Vassanta Porobo Tambá,” a Jurisprudência – seu sentido e limites”, Livraria Almedina-Coimbra, 1971, pá. 31).

Aliás, era de se esperar que isso acontecesse, também entre nós, o que, igualmente, não é de hoje, tantas, são as leis feitas sem preocupação com o bem-estar geral da sociedade (e não para atender a interesses sempre de fácil justificação, de parcela, apenas, da sociedade e, frise-se, bem reduzida – rectius: os detentores do poder econômico) e de justiça, ah! Dessa nem se fale. Lembra João Batista Herkenhoff, que “…afinal o objetivo do Direito é a Justiça e o bem-estar social. Nenhuma norma que, em seu resultado prático, se afaste dessa finalidade pode ter justificada sua existência” (in “Como Aplicar o Direito”, Forense, 4a Edição, pág. 62).

É preciso lembrar, como o fez Plauto Faraco de Azevedo, citando Elías Días, que “… se o direito é para o jurista algo que lhe vem dado, positum, posto…, tão somente em certa medida se encontra feito” (in “Crítica à Dogmática e Hermenêutica Jurídica”, Sérgio Antônio Fabris Editor, 1989, pág. 30).

Há, ainda, que referir, no particular, que, como realçado pelo Prof. Luiz Guilherme Marinoni: “Toda a teoria que nega a sua causa distancia-se dos seus verdadeiros fins” (in “Novas Linhas do Processo Civil”, Malheiros Editores, 3a Edição, pág. 18).

Destarte, a conclusão que se impõe é a de que, não apenas por constar do art. 3o, da Lei 8.009/90, expressa menção a impenhorabilidade em processo trabalhista, não se poderá discutir se aplicável ou não, na Justiça do Trabalho, porquanto embora isso não agrade a certos setores, toda norma deve ser investigada e bem interpretada, para ver de sua aplicação a um caso concreto, nada de receber algo como pronto e acabado; embora se referindo aos estudantes, cabe a todos os operadores do direito, o conselho do Prof. Roberto Lyra Filho, a saber:

“Não pensem que é fácil, que é cômodo abordar a ciência.

Não esperem que a verdade vá surgir, de um esqueminha ‘simples’ e ‘claro’.

Nenhum acervo científico é dominado sem esforço metódico, demorado, persistente – tanto ‘mais necessário’, quanto se trata de abrir caminho, quebrar as rotinas e inovar. O bom estudante não é borboleta, é incansável pica-pau, capaz de perfurar a rija madeira dos conceitos e teorias.” (in “Introdução Crítica ao Direito – série O Direito Achado na Rua” – vol. 01, vários artigos, pág. 26).

Sem dúvida, difícil rebater os argumentos apresentados pelos que não aceitam a aplicação da multicitada Lei 8.009, na Justiça Especializada, pois, por mais que se ofereçam contra-argumentos, aqueles permanecem ecoando na alma de quem deles tomou conhecimento, pedindo consistente explicação para o fato de que, qual a razão para o obreiro, num país tão desigual como o nosso, ser privado do recebimento de seu crédito para conservar, para aquele que se beneficiou com o seu trabalho, bens que ele próprio não possui e, não raro, jamais possuirá, e que talvez tenha sido adquirido com o produto do suor do seu trabalho, enquanto o fantasma do desemprego, de não ter meios de prover ao sustento de sua família, fique flagelando-o, tornando-o tomado de receios; onde a Justiça?

Evidentemente, o argumento de que alguns empregadores enfrentam, também, problemas econômicos e financeiros dos mais sérios, não empolgará, nem fará com que aquele que trabalhou, honestamente, e não recebeu seus parcos salários, se conforme e aceite, como justa, essa situação, pois, ainda e obviamente que não em termos jurídicos, ele sabe – e mais, sente – que não assumiu os riscos do negócio, não quis – ou não tinha como – ser empresário quis tão-somente um emprego, para, bem ou mal, manter sua família.

O trabalhador não monta uma empresa, pequena ou não, e diz “alea jacta est”, não lhe cabendo, por conseguinte, suportar a má sorte, quando esta for o resultado de haver tentado atravessar o mundo dos negócios.

Outrossim, em nada contribuirá para aumentar e/ou ratificar a confiança dos trabalhadores do Poder Judiciário o expressivo fato de, após um processo, difícil e demorado, ter reconhecido judicialmente seus direitos e não receber nada, porque seu ex-empregador tem um imóvel e o que nele se contém, que não podem ser penhorados, salvo as exceções legais – e que exceção mais justificada que o crédito do obreiro? -,…

Entretanto, será possível encontrar posição intermediária, tendo como aplicável a lei 8.009, na Justiça do Trabalho, desde que tenha ou seja objeto de uma interpretação restritiva, de um alcance restrito, de modo a reduzir seu raio de ação, alcançando apenas o pequeno empregador e ainda assim, proibindo-se a penhora exclusivamente quanto aos bens absolutamente indispensáveis à sobrevivência da família do devedor (como geladeira e fogão), permitindo-se a penhora sobre outros que, não absolutamente indispensáveis à sobrevivência da família, apenas lhe propiciem bem-estar.


Nesse sentido, podem ser elencadas exemplificativamente, as seguintes ementas:

“Lei nº 8.009. A impenhorabilidade dos móveis que guarnecem a casa – art. 1o , parágrafo único, da Lei nº 8.009/90 é de interpretação restritiva, pois refere-se, apenas, àqueles necessários à habitualidade do lar. TRT – 1a Região – AP nº 03009-97. – Julgado em 26.11.97, por unanimidade – Publicação: DORJ, p. 3, de 27.01.98 – Relator: Juíza Donase Xavier Bezerra – Turma: 7a”, in “Ciência Jurídica do Trabalho”, Ano I, nº 04, abril/98, pág. 161.

“Os bens imóveis impenhoráveis em face da Lei 8.009/90 são aqueles considerados indispensáveis à consecução das condições básicas de habitabilidade, considerando-se supérfluos, mesmo que guarneçam o único imóvel da família, equipamentos como freezer, videocassete, televisores, máquina de lavar roupa e forno de microondas. TRT 2a Região. – 8o T – RO – 20000101111 -Ac. 20000421957 – Rel. Juíza Wilma Nogueira de Araújo Vaz da Silva – DOE 12.09.00 – p. 39″in “Revista Nacional de Direito do Trabalho”, vol. 32, pág. 47.

“Bem de família. Os bens que foram objeto de penhora não se enquadram no parágrafo único do artigo 1o da Lei nº 8009/90, por serem bens indispensáveis à vida da família. Televisor, máquina de lavar louça, aparelho de som, videocassete e microondas, embora facilitem a vida da família, não são considerados bens fundamentais para a sua subsistência, como ocorre com a geladeira. Sua falta não chega a comprometer a vida normal da pessoa. TRT/SP 02990205572 – Ac. 3a T. 19990345190 – DOE 20.07.99. Rel. Sérgio Pinto Martins”, in “Synthesis”, Revista Semestral, nº 30/00, pág. 231.

“Na impenhorabilidade estabelecida pela Lei nº 8.009/90 incluem-se apenas os objetos essenciais que guarnecem o bem de família não se incluindo bens voluptuários e de lazer.Agravo a que se nega provimento. Ac. 34100/99 – Proc. 12.304/99. DOE 23.11.99, pág. 102. Rel. José Pedro de Camargo Rodrigues de Souza, SE.”in “Revista do Tribunal Regional do Trabalho da Décima Quinta Região”, vol. 10, Ltr, pág. 315.

Tudo considerado, o mais correto parece ser o posicionamento doutrinário e jurisprudencial que não aceita a aplicação da Lei 8009/90 na Justiça do Trabalho, porquanto, além de sua inconstitucionalidade, por afronta a dispositivos constitucionais, ainda provocaria distorções, que acabariam por eclipsar os elevados fins que referida lei tem, quando aplicada na Justiça comum.

Todavia, caso se entenda muito forte e mesmo exagerado ter por inconstitucional a lei 8.009, crendo-se, ao reverso, ser a mesma constitucional, ainda quando aplicada na Justiça Obreira, o qual, salvo engano, parece ser o entendimento prevalecente, caberá, então, ao menos, dar-lhe interpretação restritiva para que, desenganadamente, tenha um alcance restrito, de modo a reduzir o seu raio de ação, proibindo-se a penhora, exclusivamente, quanto aos bens absolutamente indispensáveis à sobrevivência digna da família do devedor, como geladeira e fogão, mas permitindo-se a penhora sobre outros, não absolutamente indispensáveis à sobrevivência da família, ainda que úteis, muito úteis, como televisão, videocassete, freezer, piano.

Enfim, enquanto que, na Justiça comum, a lei 8.009 deve receber uma interpretação ampliativa, evolutiva, na Justiça do Trabalho, deve sofrer interpretação restritiva, pena de restar absoluta e irremediavelmente distorcida sua finalidade; muito afinada com esse posicionamento, a ementa infra-transcrita:

“Enquanto na execução civil, via de regra, o devedor é a parte economicamente mais fraca, no processo do trabalho a situação se inverte, na medida em que o credor da obrigação a ser executada é o hipossuficiente. Assim, a Lei 8.009/90, que estabeleceu a impenhorabilidade do imóvel residencial próprio do casal ou da entidade familiar e das benfeitorias e dos equipamentos ou móveis que o guarnecem, não pode ser aplicada à execução trabalhista de forma a beneficiar os proprietários de bens suntuários que não sejam essenciais à vida e ao bem-estar de seu núcleo familiar. Não pode em conseqüência o artigo 2o , daquela norma, que estabelece as exceções à regra da impenhorabilidade, ser interpretado de forma literal restritiva, inviabilizando a satisfação dos créditos trabalhistas do reclamante. Ag. 1.534/98 – 3a T – TRT 3a Região -j. 11.11.98 – rel. Juiz José Roberto Freire Pimenta”, in “Revista de Direito do Trabalho”, nº 26, RT, págs. 209/10.

É interessante frisar bem que, quando da aplicação da lei 8.009, na Justiça do Trabalho, há de se entender por suntuoso tudo o que não seja absolutamente necessário, e aí, entram até os televisores, mesmo porque não é razoável que um devedor fique sentado à frente do seu aparelho de televisão, assistindo a uma emocionante partida de futebol, enquanto o obreiro, seu credor, não tenha com o que alimentar seus filhos, e não servirá de atenuante e/ou justificativa a circunstância de a partida transmitida ser do glorioso São Paulo Futebol Clube.

Revista Consultor Jurídico, 23 de março de 2001.

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