Imprudência no trânsito

Código Brasileiro de Trânsito pode ser aplicado em shoppings

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19 de março de 2001, 0h00

Com muita propriedade, José Eduardo Soares de Melo (1) leciona que “os preceitos jurídicos nem sempre são claros e precisos, revelando ambigüidades e imperfeições, omissões e contradições entre diplomas vigentes, especialmente porque fruto da atividade humana.

A elaboração legislativa é obra de políticos quase sempre não afeitos à linguagem jurídica, e, em que pese a depuração promovida pelas comissões técnicas das Casas do Legislativo, o resultado da atividade legisferante se traduz deficiente.

Além disso, a produção normativa deve guardar absoluta coerência com os preceitos válidos e eficazes, e total observância aos superiores princípios constitucionais, numa plena compatibilização normativa (vertical e horizontal)”.

De fato, analisando-se o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), instituído pela Lei n. 9.503/97, verifica-se que o legislador pátrio não foi muito preciso quando tratou dos crimes de trânsito, uma vez que, dentre outras coisas, utilizou, a nosso ver, desnecessariamente, a expressão via pública, em apenas três dos onze crimes elencados no capítulo XIX, vale dizer, nos arts. 306, 308 e 309.

Em virtude disso, os eminentes mestres Damásio E. de Jesus (2), Fernando Capez e Victor Eduardo Rios Gonçalves (3), Fernando Y. Fukassawa (4), Guilherme de Souza Nucci (5) e José Carlos Gobbis Pagliuca (6), entendem que os crimes dos arts. 302 e 303, por exemplo, por não trazer tal expressão, podem ser praticados em qualquer lugar, inclusive numa garagem ou numa fazenda particular, com os quais, data venia, ousamos discordar.

Preliminarmente, há que se observar que, tanto o crime de homicídio culposo (art. 302) quanto o de lesões corporais culposas (art. 303), são decorrentes de acidentes de trânsito, observando-se o disposto no art. 301, do CTB.

Acidente de trânsito, embora não haja definição no Código, é “todo evento não premeditado de que resulte dano em veículo ou na sua carga e/ou lesões em pessoas e/ou animais, em que pelo menos uma das partes esteja em movimento nas vias terrestres ou áreas abertas ao público. Pode originar-se, terminar ou envolver veículo parcialmente na via pública.” (NBR n. 10697/89, da ABNT) (g.n.).

Assim sendo, não são considerados acidentes de “trânsito” aqueles ocorridos fora das vias terrestres ou áreas abertas ao público. Logo, não há que se falar em crimes de “trânsito”, fora desses locais.

Ademais, a base legal para a correta aplicação do CTB, tanto na esfera administrativa quanto na penal, está consubstanciada em seu art. 1º, que diz, in verbis: “o trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação, rege-se por este código.” (g.n.)

Vias terrestres, de acordo com o art. 2º, caput, do CTB, são “as ruas, as avenidas, os logradouros, os caminhos, as passagens, as estradas e as rodovias, que terão seu uso regulamentado pelo órgão ou entidade com circunscrição sobre elas, de acordo com as peculiaridades locais e as circunstâncias especiais”, bem como, “as praias abertas à circulação pública e as vias internas pertencentes aos condomínios constituídos por unidades autônomas” (parágrafo único).

Via, é “a superfície por onde transitam veículos, pessoas e animais, compreendendo a pista, a calçada, o acostamento, ilha, e canteiro central.” (CTB, anexo I). É, também, a superfície completa de todo caminho ou rua aberta à circulação pública (7), ou rodovia …,(8).

E via pública? Essa, infelizmente, o legislador não definiu. Entretanto, de acordo com o Regulamento do (revogado) Código Nacional de Trânsito (RCNT), anexo I, é a “rua, avenida, estrada, logradouro, caminho, ou passagem aberta ao trânsito.” É, também, toda via de domínio público e franqueada ao uso público.” (Norma TB-126/78, da ABNT) (g.n.).

Neste ponto, a doutrina é conflitante: Ruy Carlos de Barros Monteiro (9), citando Vicente Greco Filho, diz que a expressão “via pública” compreende “não somente as vias de tráfego livre, como também as de tráfego restrito, desde que de utilização comum”.

Walter Cruz Swensson (10), entende que, para que fique caracterizada uma infração de trânsito, “é necessário que os atos sejam praticados enquanto o veículo estiver sendo movimentado, estacionado ou trafegando em via pública ou em local, mesmo em se tratando de imóvel pertencente a particular, ao qual tem acesso o público (estacionamentos de lojas, restaurantes, supermercados, shopping centers, pátios de postos de serviços, etc.)”.

Contrariamente, Fernando Capez e Victor Eduardo Rios Gonçalves (11), asseveram que “não se considera via pública o interior de fazenda particular, o interior de garagem da própria residência, o pátio de um posto de gasolina, o interior de estacionamentos particulares de veículos, os estacionamentos de shopping centers etc.” (g.n.)

Ora, quando o legislador quis que o CTB fosse aplicado além dos locais elencados no art. 2º (supra), ele o fez expressamente, através do parágrafo único, do mesmo dispositivo, nele inserindo as praias abertas à circulação e as vias internas pertencentes aos condomínios constituídos por unidades autônomas, que, por força da Lei n. 4.591/64, art. 1º, podem ser residenciais ou não residenciais (12), destinados a escritórios, garagens, mercados, estações rodoviárias, shopping centers etc.

Infere-se daí que, ao contrário do que pensam muitos, as vias internas dos shopping centers, por exemplo, por serem de utilização comum, abertas à circulação, estão sujeitas à aplicação do CTB.

Outrossim, não é demais lembrar que no capítulo XV, que trata das infrações de trânsito, apenas três dispositivos (arts. 170, 175 e 179), apresentam a expressão via pública. Sendo assim, será que os demais dispositivos poderiam ser aplicados em qualquer lugar, inclusive no interior de uma garagem particular? Obviamente que não, pois, repita-se, o CTB só pode ser aplicado naqueles locais previamente estabelecidos pelo legislador.

Cabe lembrar, ainda, que, nem os canteiros de obras na construção civil podem ser considerados “via pública”, para fins de aplicação do CTB, conforme dispõe a Resolução CONTRAN n. 67/98 (art. 1º, parágrafo único).

Portanto, acolhendo-se o posicionamento adotado pela doutrina majoritária, forçosamente teríamos que admitir, também, a possibilidade de sermos autuados em nossas próprias residências, haja vista que, o Código que trata dos crimes de trânsito é o mesmo que trata das infrações de trânsito, vale dizer, o CTB.

Na realidade, essas considerações não teriam grande importância, se não houvesse a necessidade de se aplicar a lei aos casos concretos…

É bem por isso que, em suas considerações finais, Fukassawa (13) assevera que “a nova lei representa grande avanço, mas a impressão que se tem é que na sua elaboração, notadamente pela incriminação de condutas e sua punição, interferindo com a liberdade individual, teria o legislador faltado com o melhor cuidado que se nota nas antigas leis penais”.

Ante o exposto, é imperioso concluir que, para fins administrativos ou penais, a aplicação do CTB, por força do art. 1º, deve restringir-se às vias terrestres, públicas ou privadas, elencadas no art. 2º, caput, e seu parágrafo único, desde que, obviamente, abertas à circulação. Afora isso, não há que se falar em infração de trânsito, nem tampouco em crime de trânsito, é de se aplicar os arts. 121 (Homicídio), 129 (Lesão corporal), 132 (Perigo para a vida ou saúde de outrem), 135 (Omissão de socorro) 347 (Fraude processual) etc., do Código Penal, conforme o caso, salvo melhor juízo.

Notas de rodapé:

(1) Curso de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 1997, p. 134.

(2) Crimes de Trânsito. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 77.

(3) Aspectos Criminais do Código de Trânsito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 27.

(4) Crimes de Trânsito. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998, p. 118.

(5) Crimes de Trânsito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p. 35.

(6) Direito Penal do Trânsito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p. 30.

(7) Convenção sobre Trânsito Viária – CTV, art. 1º, alínea “d” – promulgada pelo Decreto n. 86.714/81.

(8) Acordo sobre Regulamentação Básica Unificada de Trânsito – RBUT, art. I.1.

(9) Crimes de Trânsito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p. 242.

(10) Procedimentos e Prática de Trânsito. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998, p.14.

(11) Op. cit., p. 46.

(12) Franco, J. Nascimento. Condomínio. São Paulo: RT, 1997, p. 13.

(13) Op. cit., p. 347.

Revista Consultor Jurídico, 19 de março de 2001.

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