Veja a Emenda e a liminar contra as medidas de FHC

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29 de maio de 2001, 13h44

Emenda do MPF na ACP

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ FEDERAL DA 2.ª VARA DA SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA EM MARÍLIA (SP)

“Não é urgência.: é negligência. O anúncio do colapso energético foi feito desde o começo do atual governo” (Fábio Konder Comparato, Professor da Faculdade de Direito da USP, ao dizer que não há urgência na situação que justifique uma medida provisória para remediá-la)

“Suponhamos que a população aceite tudo que eles querem. Isso nos livra do apagão? Não. A situação é resultado de incúria, imprevidência e negligência do governo” (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Professor Titular da USP, sobre eficácia das medidas a serem adotadas no racionamento)

“Truculento e autoritário. Ninguém pode ser punido por recorrer a Justiça. Ele (David Zylbersztajn) que vá ao Supremo Tribunal Federal com uma ação direta de constitucionalidade para que não pairem dúvidas sobre a legalidade do pacote” (Plínio José Marafon, Advogado Tributarista, sobre a declaração do Diretor-Geral da ANP, David Zylbersztajn, de que quem for à Justiça contra o racionamento vai ganhar o apagão)

Processo n.º 2001.61.11.001422-9

AÇÃO CIVIL PÚBLICA

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelo Procurador da República que esta subscreve, no uso de suas atribuições legais, vem mui respeitosamente perante Vossa Excelência, expor e requerer o seguinte:

No último dia 23 de maio de 2001 foi proposta a referida Ação Civil Pública em face da UNIÃO FEDERAL e AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA (ANEEL), visando a anulação dos preceitos determinantes de corte e sobretaxa de energia elétrica, contidos na Resolução n.º 4, da GCE e a imposição de obrigação de não-fazer às rés.

Ocorre que, naquela mesma data, foi publicada a Medida Provisória n.º 2.148-1, de 22 de maio de 2001, que contém os mesmos gravames da Resolução mencionada, contendo, ainda, mais ilegalidades e contrariedades à Constituição. Em face disto e visando evitar que o objeto da presente ação se perca, tem a presente o fim de EMENDAR A INICIAL apresentada, nos seguintes termos:

OFENSA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE

A respeito do plano de redução de consumo de energia elétrica, dispôs o art. 14, da MP n.º 2.148-1:

“Art. 14. Os consumidores residenciais deverão observar meta de consumo de energia elétrica correspondente a:

I – cem por cento da média do consumo mensal verificado nos meses de maio, junho e julho de 2000, para aqueles cuja média de consumo mensal seja inferior ou igual a 100 kWh; e

II – oitenta por cento da média do consumo mensal verificado nos meses de maio, junho e julho de 2000, para aqueles cuja média de consumo mensal seja superior a 100 kWh, garantida, em qualquer caso, a meta mensal mínima de 100 kWh.

§ 1o Na impossibilidade de caracterizar-se a efetiva média do consumo mensal referida neste artigo, fica a concessionária autorizada a utilizar qualquer período dentro dos últimos doze meses, observando, sempre que possível, uma média de até três meses.

§ 2o Os consumidores que descumprirem a respectiva meta fixada na forma do caput ficarão sujeitos a suspensão do fornecimento de energia elétrica, após quarenta e oito horas da entrega da conta que caracterizar o descumprimento da meta e contiver advertência expressa.

§ 3o A suspensão de fornecimento de energia elétrica a que se refere o § 2o terá a duração:

I – máxima de três dias, quando da primeira inobservância da meta fixada na forma do caput; e

II – mínima de quatro dias e máxima de seis dias, em caso de reincidência.

§ 4o A GCE poderá estabelecer prazo e procedimentos diversos dos previstos nos §§ 1o, 2o e 3o deste artigo.”

Ao prever o corte no fornecimento de energia e a sobretaxa àqueles consumidores que consumirem mais de 200 kWh ao mês, a Medida Provisória n.º 2.148-1 afrontou diretamente um dos cânones do Estado de Direito, ou seja, o princípio da igualdade.

É certo que se admitem desigualdades, mas também é certo que é necessária a existência de uma correlação lógica entre o fator eleito como discriminante e a discriminação legal quanto a ele. E isso, infelizmente, não está ocorrendo no presente caso.

Ao eleger um padrão mínimo de gastos, não se levou em conta as diferenças de cada consumidor. Ora, muitos trabalham em casa para sobreviver, o que com certeza eleva o consumo de energia elétrica, tão essencial nos dias de hoje; existem famílias compostas de oito pessoas, outras de apenas duas. Não é crível que se preferiu, talvez por maior facilidade de operação, limitar os gastos de todos num mesmo patamar.

Segundo a Medida Provisória, deverá ser levado em consideração para se fixar a meta de consumo, aquele ocorrido, em média, nos meses de maio, junho e julho de 2000.


Contudo, referida meta não levará em consideração fatos que alteraram a realidade fática das famílias: o nascimento de um filho, o aparecimento de uma doença, etc.

Assim, a família que, acreditando que poderia garantir à sua prole uma vida melhor, teve um filho após o período acima e, em razão disto, viu aumentar seu consumo, terá que reduzi-lo a qualquer custo, sob pena de ter que embalar este pequeno e novo brasileiro à luz de velas.

Também a pessoa que, sucumbindo à insegurança de viver em um País governado por medidas provisórias, onde o Poder Executivo assumiu o papel do Poder Legislativo, contraiu uma doença e, em razão disto viu crescer o seu consumo, também correrá o risco de ter suspenso o fornecimento de energia elétrica.

Para se ter uma idéia deste contingente de pessoas que tiveram sua realidade alterada no período e nada poderão fazer, basta verificarmos a reportagem publicada hoje no jornal “Folha de São Paulo”:

“Os casais que tiveram filhos depois de junho do ano passado podem se preparar. Sua cota de luz não será maior porque a família aumentou. “Não há excepcionalidade no caso das famílias que aumentaram recentemente”, disse Cyro Boccuzzi, vice-presidente da Eletropaulo. Como a companhia está às voltas com uma avalanche de pedidos de casos de exceção para aumento das cotas de energia, Boccuzzi disse que não vai dar para atender a todos.

Devem ficar de fora também famílias que compraram muitos eletrodomésticos no último ano ou empresas que aumentaram sua produção. A Eletropaulo calcula que cerca de 15% a 20% dos consumidores poderiam ser enquadrados nos casos de exceção, mas não há como atender a todos.

Outra categoria que ficou de fora das exceções e terá que tentar negociar sua situação caso a caso é o das famílias que dividem o mesmo relógio medidor de luz. “Existem situações em que se vai ter que conviver com isso, vamos ter que administrar”, disse Boccuzzi”

Além disto, a referida medida provisória não leva em consideração as pessoas com gastos moderados que, ao contrário do Governo Federal, há muito se conscientizaram da necessidade de economizar energia elétrica e agora se vêm obrigadas a economizar o impossível. A medida provisória parte da premissa menor falsa que todos nós brasileiros somos esbanjadores, vorazes consumidores de energia elétrica. Partindo desta premissa falsa, a Medida Provisória chega a uma conclusão também falsa, que acaba por premiar aqueles que realmente nunca se preocuparam em economizar energia elétrica.

Isso sem falar, ainda, de um sem número de residências que se utilizam de “gatos” (ligações clandestinas) para se abastecerem de energia elétrica, que não são fiscalizados e que não precisam economizar porque sabem que nada pagarão. Não podemos deixar que esta desigualdade gritante se estabeleça em nosso ordenamento jurídico. O Governo Federal, na certa, possui outros meios, mais igualitários, para solucionar a questão.

Sobre o assunto, já prelecionou o jurista Celso Antônio Bandeira de Mello, em sua pequena obra, mas de grande valor, “O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”:

“Cabe, por isso mesmo, quanto a este aspecto, concluir: o critério especificador escolhido pela lei, a fim de circunscrever os atingidos por uma situação jurídica – a dizer: o fator de discriminação – pode ser qualquer elemento radicado neles; todavia, necessita, inarredavelmente, guardar relação de pertinência lógica com a diferenciação que dele resulta. Em outras palavras: a discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferenciado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo. Segue-se que, se o fator diferencial não guardar conexão lógica com a disparidade de tratamentos jurídicos dispensados, a distinção estabelecida afronta o princípio da isonomia” (Celso Antônio Bandeira de Mello. In Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. Editora Malheiros. 3.ª Edição. 6.ª Tiragem. Páginas 38 e 39).

Robert Alexy, em sua obra “Teoria de los Derechos Fundamentales”, também deixa clara a necessidade da correlação lógica entre o fator concreto de discrímen e a discriminação legal:

“La asimetría entre la norma de igualdad de tratamiento Y desigualdad de tratamiento tiene como consecuencia que la máxima general de igualdad puede ser interpretada en el sentido de un ‘principio de igualdad’ que, ‘prima facie’, exige un tratamiento igual y sólo permite un tratamiento desigual si puede ser justificado con razones opuestas”. (Robert Alexy, In “Teoria de los Derechos Fundamentales. Centro de Estudos Constitucionales, Madrid, 1993, pág. 398).

Não se pode tratar a todos os consumidores de energia elétrica da mesma maneira, sendo imprescindível que se analise caso a caso, de modo que cada qual economize no máximo de suas possibilidades. O povo brasileiro não pode arcar sozinho com os ônus da falta de fiscalização e investimentos no setor, mormente pelo programa de privatizações ter-se iniciado já nos idos de 1996.


OFENSA AOS PRINCÍPIOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA.

“O devido processo legal tem como corolários a ampla defesa e o contraditório, que deverão ser assegurados aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, conforme o texto constitucional expresso ( art. 5.º, LV). Assim, embora no campo administrativo, não exista necessidade de tipificação estrita que subsuma rigorosamente a conduta à norma, a capitulação do ilícito administrativo não pode ser tão aberta a ponto de impossibilitar o direito de defesa, pois nenhuma penalidade poderá ser imposta, tanto no campo judicial, quanto nos campos administrativos ou disciplinares, sem a necessária amplitude de defesa.” (Alexandre de Moraes, In Direito Constitucional. Editora Jurídico Atlas. 6.ª Edição. Páginas 112 e 113).

Depreende-se da assertiva supra que, o princípio do devido processo legal, o qual engloba ainda os princípios do contraditório e da ampla defesa, tem uma importância salutar em nosso ordenamento jurídico, visto que deve ser observado não apenas nos procedimentos judiciais, mas também nos administrativos.

Dessa forma, não há como se aceitar as imposições feitas pela União através da medida provisória em tela, sendo estas claramente inconstitucionais, já que, em momento algum tem-se dado ouvidos a qualquer do povo, os quais são diretamente interessados e clamam irrelutavelmente por medidas mais justas para conter tal crise.

No presente caso, a Medida Provisória prevê a aplicação de penas administrativas consistentes no corte do fornecimento de energia elétrica e na imposição de “sobretaxas” sem qualquer observância no devido processo legal. O consumidor terá que submeter-se ao corte do fornecimento de energia sem a possibilidade de defender-se, sem qualquer observância do princípio do contraditório.

Assim, pouco importa que o consumidor conseguiu economizar apenas 10% (dez por cento) porque os seus filhos ficaram doentes ou que ele próprio sucumbiu enfermo: simplesmente corta-se o fornecimento de energia elétrica por 3 (três) dias. Alertando quanto a importância dos princípios do devido processo legal e da ampla defesa, leciona o Mestre Celso Antonio Bandeira de Mello:

“Os referidos princípios, da mais extrema importância – e que viemos a incluir nesta relação por oportuna advertência de Weida Zancaner – , consistem, de uma lado, como estabelece o art. 5.º LIV, da Constituição Federal, em que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” e, de outro, na conformidade do mesmo artigo, inciso LV, em que: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Estão aí consagrados, pois, a exigência de um processo formal regular para que sejam atingidas a liberdade e a propriedade de quem quer que seja e a necessidade de que a Administração Pública, antes de tomar decisões gravosas a um dado sujeito, ofereça-lhe oportunidade de contraditório e de defesa ampla, no que se inclui o direito a recorrer das decisões tomadas. Ou seja: a Administração Pública não poderá proceder contra alguém passando diretamente à decisão que repute cabível, pois terá, desde logo, o dever jurídico de atender ao contido nos mencionados versículos constitucionais”. (Curso de Direito Administrativo, 12.ª edição, Ed. Malheiros, p. 85).

OFENSA AOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS

Além de tudo o acima narrado, conforme se deflui da leitura do parágrafo 1º, do referido art. 14, caberá à concessionária escolher os meses para compor a média do consumidor, caso não seja possível a obtenção da média pelos critérios estabelecidos.

Ora, como deixar ao talante das concessionárias a escolha dos meses para a feitura da média? Chega-se ao absurdo de deixar o consumidor totalmente à mercê da concessionária, uma vez que a malfadada MP chegou ao absurdo, em seu art. 25, de afastar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor:

“Art. 25. Não se aplica a Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, em especial os seus arts. 12, 14, 22 e 42, às situações decorrentes ou à execução do disposto nesta Medida Provisória e das normas e decisões da GCE.”

A própria Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, XXXII, prevê a defesa do consumidor:

“Art. 5º.

XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.”

A Lei criada para proteger os direitos do consumidor é justamente a Lei n.º 8.078/90, e, ao vedar a aplicação de seus preceitos, deixando o consumidor sem sua proteção, a Medida Provisória acabou ferindo direito individual, protegido pelas cláusulas pétreas da Constituição Federal:

“Art. 60.

§ 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

IV – os direitos e garantias individuais..” (grifei)

Para alcançar seus desideratos, editou-se Medida Provisória que excluiu direito que sequer Emenda à Constituição poderia retirar…

Como se vê, a União Federal, tentando remediar sua própria omissão em investir num serviço tão essencial ao país como é a energia elétrica, tentou mutilar o maior instrumento criado para a defesa do consumidor, que agora, mais ainda, se encontra em situação de hipossuficiência em relação ao Estado.

Por fim, o Ministério Público Federal reitera os demais termos da inicial proposta, pugnando pela concessão da tutela antecipada pleiteada e pela procedência do pedido da presente ação civil pública.

Termos em que,

P. Deferimento.

Marília, 24 de maio de 2001.

JEFFERSON APARECIDO DIAS

Procurador da República

Conheça a liminar de Marília

2ª VARA FEDERAL EM MARÍLIA

AUTOS N º: 2001.61.11.001422-9

NATUREZA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA

AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

RÉU: UNIÃO FEDERAL E AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA – ANEEL

Vistos, apreciando o pedido de tutela antecipada. Preliminarmente, recebo a petição de fls. 69/77, como emenda à inicial.

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL propõe a presente Ação Civil Pública face a UNIÃO FEDERAL – AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA – ANEEL, insurgindo-se contra as exigências definidas em Resolução da Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica, consubstanciadas no corte do fornecimento de energia e na cobrança de sobretaxas (multas) de 50% e 200%, incidentes sobre o valor da conta que exceder o consumo mensal de 200 kWh/mês e 500 kWh/mês, respectivamente. A medida, de efeitos concretos, vem veiculada na Resolução n.º 4, de 22 de maio de 2001 da GCE, com amparo na Medida Provisória n.º 2.148-1.

Na defesa de sua legitimidade ativa para a propositura da presente ação e com fulcro nos artigos 127 e 129, incisos II, III e IX da Constituição Federal, alega violação ao princípios constitucionais da igualdade, legalidade, devido processo legal, contraditório e ampla defesa, insculpidos no artigo 5º, caput e incisos XXXII, LIV e LV, e artigo 60, § 4º, inciso IV, todos da Carta Suprema, bem, ainda, aos artigos 9º, 10, incisos I, II e III, 11 e 12 da Lei n.º 7.783/89 e, também ao artigo 22, e parágrafo único da Lei n.º 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor.

Apontando inconstitucionalidade material, aduz, que restou descumprida a regra inserta na Carta Magna, pois, ao se eleger um padrão mínimo de gastos, não se levou em consideração as diferenças de cada consumidor; houve ofensa às normas infraconstitucionais, pois o fornecimento de energia elétrica é um serviço essencial devendo o Poder Público assegurá-lo em caso de descumprimento da sua manutenção; que as sobretaxas representam nítida natureza confiscatória; que o consumidor terá que submeter-se ao corte do fornecimento de energia sem a possibilidade de defender-se.

Pleiteia provimento liminar inaudita altera parte, com eficácia erga omnes em todo território nacional a fim de suspender a aplicação dos combatidos preceitos firmados no ato administrativo, ficando as rés compelidas a não promoverem ou determinarem o corte de energia elétrica e a cobrança de sobretaxa, ou, alternativamente, quanto a esta última, que a sobretaxa seja cobrada de forma não-confiscatória, com a cominação de multa diária em caso de descumprimento da decisão.

É a síntese do necessário.

Decido.

Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal, tendo por objeto a defesa de direitos transindividuais e indivisíveis ou direitos individuais homogêneos de todos aqueles que utilizam-se do fornecimento de energia elétrica neste país, direitos, estes, que se encontram ameaçados em razão das medidas de efeitos concretos que visam solucionar a crise energética nacional.

Os interesses individuais em desfrutar do fornecimento de energia elétrica, se analisados em seu conjunto à partir de dados que compõem uma mesma relação jurídica-base ou porque se originam de uma fonte comum, denunciam a existência de interesse coletivo de um grupo que está a reivindicar a previsão, no ordenamento jurídico, de um instrumento processual único que possibilite a tutela jurisdicional do Estado de forma eficaz a toda coletividade.

A Constituição Federal, neste campo, confere legitimidade ao Ministério Público Federal para promover ação civil pública para a proteção de direitos difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos (artigos 127 e 129, inc. III), restando, portanto, satisfeita a exigência do quanto disposto no artigo 3º, do Código de Processo Civil.

Apreciando, ainda que de forma sumária, a inconstitucionalidade apontada na prefacial, bem, ainda, as ilegalidades do combatido ato administrativo, convenço-me de que as mesmas exteriorizam a relevância da fundamentação, compondo, juntamente com o periculum in mora, os pressupostos autorizadores de concessão da liminar.

Contudo, sob o aspecto formal, ressalto que não se está apreciando “lei em tese”, cujo processamento e julgamento seria de competência do Eg. Supremo Tribunal Federal.

Na verdade, ao editar a resolução administrativa que visa ao racionamento de energia elétrica, o administrador público fez eclodir no mundo jurídico medidas de efeitos concretos, tanto que a população como um todo, antecipando aos seus efeitos e prevendo agressão aos seus direitos individuais, como é notório, já iniciou a economia do consumo de energia, temendo a ação concreta do Estado ou da Administração Pública que agirá nos termos do ato administrativo epigrafado.

A Medida Provisória n. 2.148-1, deixou de representar mera expectativa de violação aos direitos transindividuais apontados, transmudando-se em ameaça efetiva e concreta aos valores neles encartados. Não se trata de uma experiência de que se vale a população, as empresas ou os órgãos público no sentido de verificar se será ou não possível a cada um cumprir as metas estabelecidas na precitada resolução da Câmara de Gestão, mas, isto, sim, de, desde já, sentirem os efeitos concretos das medidas coercitivas impostas pela Administração Pública, pois são compelidos a agirem desta forma, sob pena de confisco em seu patrimônio e de assistirem o corte de energia elétrica de que desfrutam.

Precária, portanto, qualquer sustentação quanto a inadequação da via eleita para impugnar a precitada resolução, pois as medidas nela contempladas consubstanciam disposições concretas. É claro que se está diante de um ato abstrato, mas, segundo lição do notável jurista Celso Antônio Bandeira de Mello, “sua característica específica reside justamente em ser fonte contínua de efeitos. Isto é, toda vez que se renove a situação abstrata nele prevista, o ato produz novamente um fluxo de efeitos. Em suma: o ato não se resume a produzir uma dada relação jurídica. Pelo contrário, produzirá tantas relações, ou seja, tantos fluxos de feitos, quantas vezes se repetir a situação hipotética ali prevista.” (Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 10ª ed., p. 291/292)

Pois bem, analisando os pontos cardeais da exordial, entendo haver agressão aos princípios da igualdade, devido processo legal, contraditório e da ampla defesa, insertos no artigo 5º, caput e incisos LIV e LV, no veiculado ato administrativo.

Quanto a violação ao princípio da legalidade, num juízo sumário parece ultrapassada a questão, ante a edição da Medida Provisória n.º 2.148-1, que deu sustentáculo jurídico ao ato administrativo de efeitos concretos. Tratando-se de resolução administrativa, o vício seria mais grave na medida em que o ato administrativo não se compatibilizaria com o texto constitucional, acaso não houvesse lei que restringisse ou suprimisse direitos.

No ensinamento de Bandeira de Mello, “se o regulamento não pode criar direitos ou restrições à liberdade, propriedade e atividades dos indivíduos que já não estejam estabelecidos e restringidos na lei, menos ainda poderão fazê-lo instruções, portarias ou resoluções. Se o regulamento não pode ser instrumento para regular matéria que, por ser legislativa, é insuscetível de delegação, menos ainda poderão fazê-lo atos de estirpe inferior, quais instruções, portarias ou resoluções. Se o chefe do Poder Executivo não pode assenhorear-se de funções legislativas nem recebê-las para isso por complacência irregular do Poder Legislativo, menos ainda poderão outros órgãos ou entidades da Administração direta ou indireta.” (obra citada, p. 224)

Não se concebe, pois, que, ao editar um ato administrativo a pretexto de salvaguardar um anunciado interesse público, a administração pública venha suprimir direitos, obrigando o indivíduo a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, não prevista em lei. No caso, a medida provisória supre a lacuna que até então subsistia.

Aliás, a Administração Pública só pode agir quando estiver previamente autorizada por lei, significando, isto, que a mesma não pode inovar no mundo jurídico, do contrário estará exorbitando do poder.

Sob o ângulo das inconstitucionalidades materiais, ainda, é preciso salientar que, no âmago das intocáveis disposições insculpidas no art. 60, § 4º, incisos I a IV da Constituição Federal, prescrições, essas, imodificáveis até mesmo por meio de emenda do constituinte derivado, destaca-se os preceitos declaratórios dos direitos e garantias individuais.

Neste passo, a MP 2.148-1, violou uma cláusula pétrea, na medida em que o artigo 5º, inc. XXXII da CF, determina ao Estado promover, na forma da lei, a defesa do consumidor.

Com fulcro neste dispositivo constitucional, inserido no núcleo imodificável da Constituição da República, o dever do Estado é indeclinável, e se o Administração Pública, representando aqui o Poder Executivo, não faz valer esta norma, cabe ao Poder Judiciário como integrante do próprio Estado, determinar o seu cumprimento, promovendo de forma concreta a defesa do consumidor, através da aplicação da lei que está em vigor e que os protege.

Desta forma, inaplicável o artigo 25, caput, da precitada MP, pois agride a Constituição Federal, na medida em que tendente a abolir um direito individual, imodificável até mesmo por emenda constitucional. Tendendo o referido ato administrativo impor sobretaxas sobre o valor do consumo de energia (valor este encontrado pela administração segundo critério por ela mesmo confeccionado, consistente na média de consumo de três meses do ano de 2000), bem como na ameaça de cortes de energia, veio, o Poder Público, a ferir o princípio da isonomia, ao contraditório e ampla defesa, a proibição de confisco da propriedade, outra solução não restando senão a de declarar sua incompatibilidade com o sistema constitucional.

Existe afronta ao princípio da isonomia pois o critério utilizado pela Câmara de Gestão, que elegeu os meses de maio, junho e julho do ano de 2000, estes para servirem de média de consumo para aplicação de sobretaxas e cortes de energias, não leva em conta as particularidades dos indivíduos que em determinadas situações especialíssimas, voluntárias ou involuntárias, previsíveis ou imprevisíveis, ou em momentos esperados ou inesperados, exigem maior ou menor consumo de energia.

Ainda, critério eleito foi mesmo imposto unilateralmente pelo Poder Público em verdadeira intervenção federal em contratos de natureza privada, sem amparo constitucional ou legal, em inaceitável ofensa ao direito individual acima referido. Existe, igualmente, agressão ao princípio do contraditório e da ampla defesa, na medida em que ninguém poderá ser privado da liberdade ou de seus bens (e neste termo acha-se incluído os valores monetários a serem cobrados a título de sobretaxa ou multa), sem o devido processo legal, ou seja, não se pode aplicar a sobretaxa ou cortar a energia elétrica, sem que antes se ofereça oportunidade para que o indivíduo se defenda, pois, a uma, o mesmo não deu causa a crise do setor elétrico, a duas porque não houve inadimplemento de sua parte, o que, também revela incompatibilidade material entre o código de defesa do consumidor e o disposto nos artigos da MP 2.148-1.

Por último, a natureza confiscatória das sobretaxas ou multas, que além de serem excessivas, configuram aumento abusivo do preço de energia, não amparado em lei, e, ainda, com a agravante de ser imposta cumulativamente com o corte do fornecimento, o que configura dupla punição, de natureza ditatorial.

A crise de energia elétrica foi anunciada e sustenta-se que a mesma não é uma declaração feita no escuro, todavia, a sociedade não pode arcar com o seu ônus, e o Judiciário estará pronto para, com a imparcialidade de sempre, recompor o patrimônio jurídico violado da sociedade, ainda que a decisão emanada contrarie plano governamental tendente a reconstruir um setor público que está à margem da falência.

Caberá a Administração Pública solicitar à sociedade a compreensão de um colapso, que segundo os especialistas no setor, é atribuído aos que deveriam ter agido e se omitiram, e não impor aos consumidores de forma arbitrária e sem respaldo constitucional, a obrigação de sofrer as conseqüências de uma dívida que não contraíram.

A par deste apelo, que disponibilize recursos financeiros de imediato para a superação da crise, sem impor mais este ônus à sociedade cumpridora de seus deveres, pois a constante e desenfreada transferência do ônus público importará, e não tardará, em destruir a própria sociedade.

Face ao inafastável fenômeno jurídico da co-inerência das normas jurídicas, é possível afirmar que o ato administrativo questionado, voluntária ou involuntariamente, potencializa seus efeitos, fazendo afluir seu vício sobre todo o sistema normativo. Evidente o periculum in mora alegado pelo autor, pois uma vez prestada a tutela jurisdicional do Estado, reconhecendo definitivamente a inconstitucionalidade do ato administrativo, restaria aos consumidores assistirem a precipitada vulneração aos seus direitos individuais, e o árduo caminho da repetição de indébito que ocasionará a aplicação das sobretaxas, o que lhe ocasionaria malefícios ainda maiores do que o de ter de suportar uma exigência administrativa indevida.

Face ao exposto, declaro, incidenter tantum, a inconstitucionalidade do artigo 14, incisos e parágrafos e artigo 25, todos da Medida Provisória n.º 2.148-1, bem como o contido na Resolução n.º 4, de 22 de maio de 2001 da GCE, e CONCEDO A ANTECIPAÇÃO DA TUTELA, determinando a imediata suspensão dos referidos preceitos, e que as rés não promovam ou determinem para as concessionárias o corte de energia elétrica e a cobrança de sobretaxas, em caso do consumidor desrespeitar o consumo médio imposto pelos critérios veiculados no ato administrativo.

Não se pode restringir o alcance desta decisão ao âmbito desta subseção judiciária, pois nas lides macrossociais de natureza benéfica, os seus efeitos atingem a todos os que se encontram na situação objetiva analisada, sob pena de agressão à própria Constituição Federal, notadamente ao princípio da isonomia que reclama solução igual aos que se encontram na mesma situação fática. Portanto estendo a aplicação da presente decisão a todo o território nacional, com eficácia erga omnes.

Notifique-se, com urgência, a ANEEL, na pessoa do seu presidente, para que se determine a comunicação da decisão proferida por esse Juízo, dirigindo-a a todas as empresas obrigadas a efetuar o corte de energia e a cobrar e a recolher as contas e sobretaxas dos consumidores.

Fica desde já cominada multa diária às rés no importe de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por dia, por cada corte de fornecimento de energia ou cobrança das aludidas sobretaxas realizadas, que caracterizem eventual descumprimento da presente decisão.

Citem-se.

Intime-se.

SALEM JORGE CURY

JUIZ FEDERAL SUBSTITUTO

Notas de rodapé

1-Celso Antonio Bandeira de MELLO, Curso de direito administrativo, p. 71.

2-Constituição de 1934: Art 113 … 2) Ninguem será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei”

Constituição de 1946: Art. 141 … § 2.º Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Constituição de 1967: Art. 150 … § 2.º Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”

Constituição de 1967 com a redação dada pela Emenda Constitucional n.º 1/1969: Art. 153 … § 2.º Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”

Constituição de 1988: Art. 5.º … II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

3 – Tópico elaborado com base no sustentado na Ação Civil Pública n.º 2000.71.00.009347-0, em curso na 36.ª Vara Federal de Porto Alegre (RS), proposta pelos Procuradores da República Drs. Paulo Gilberto Cogo Leivas e Marcelo Veiga Beckhausen.

4 – Decisão proferida pelo Juízo da 18ª Vara Federal de São Paulo confirmando amplitude nacional à liminar proferida contra a TELEBRAS na ACP nº 97.0047171-3 promovida pelo MPF em defesa dos consumidores do serviço público de telefonia. Veja, na continuação do texto, a decisão do TRF3ªR que manteve essa decisão.

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