Desabamento do Palace II

TJ-RJ manda Naya pagar R$ 180 mil a ex-moradora do Palace II

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23 de maio de 2001, 0h00

A construtora Sersan, do ex-deputado Sérgio Naya, foi condenada a pagar mil salários mínimos (R$ 180 mil) para uma professora por danos morais. Ela é ex-moradora do Palace II, que desabou no Rio de Janeiro. A decisão é da 10ª Câmara do Tribunal de Justiça, por unanimidade de votos.

A sentença anterior havia arbitrado o valor da indenização em cerca de 200 salários mínimos. Mas de acordo com o desembargador relator do processo, Sylvio Capanema de Souza, em casos como o do Palace II, o valor não deve ser arbitrado em menos de mil salários mínimos.

“A autora, como quase todos os demais moradores, deve ter assistido, perplexa, o desabamento, transmitido ao vivo, pela televisão. Na nuvem de poeira que restou, por vários minutos, após a queda, ficaram cobertos os seus sonhos. E o que dizer das memórias de toda uma vida? Presentes, fotos antigas, bilhetes de ternura do amado marido falecido, lembranças de uma vida, transformadas em pó…”, questiona o desembargador.

Veja a decisão do Tribunal de Justiça do Rio

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 19.976/00, em que são apelantes SERSAN SOCIEDADE DE TERRAPLANAGEM, CONSTRUÇÃO CIVIL E AGROPECUÁRIA e outra e MIRANILDES MIRAO HIGINO e apelados OS MESMOS.

ACORDAM os Desembargadores que compõem a Egrégia 10ª Câmara do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por UNANIMIDADE de votos, rejeitar a preliminar de nulidade, negar provimento ao 1º e 2º recursos e dar parcial provimento ao 3º recurso.

As apelações das rés, embora distintas, sustentam teses, idênticas, pelo que, em homenagem ao princípio da economia processual, serão examinadas em conjunto. A preliminar de nulidade da sentença não merece provimento, já que desprovida do menor fundamento jurídico.

Sustentam as apelantes-rés que o processo é nulo já que não teriam sido intimadas para ciência da decisão que concedeu a antecipação da tutela de mérito.

E isto não se deu, como se depreenda da leitura dos autos, pelo fato de se ter escondido o representante legal das rés, após o desabamento do prédio, fato notório.

Ressalte-se que, diante do fato de não ter o Oficial de Justiça encontrado o representante legal das rés, determinou o juiz que se procedesse a intimação por via postal.

Seja como for, as rés foram posteriormente citadas, e de forma regular, tendo acudido ao chamamento, e oferecido suas defesas, de maneira brilhante, graças à reconhecida competência de seus patronos.

Nenhum prejuízo para a defesa decorreu da alegada omissão, que deve ser imputada exclusivamente às próprias rés. É hoje mais do que sabido que não se decreta a nulidade, onde não tenha ocorrido prejuízo.

A palavra de ordem, na moderna ciência do processo, é a sua efetividade, o que repele sacrificar-se o fundo do direito, em holocausto a sua forma. Ainda que alguma irregularidade formal tivesse ocorrido, foi sanada pelo ingresso das rés no processo, com o oferecimento de suas respostas.

Não se acolhe, assim, a preliminar de nulidade da sentença. A seguir, a primeira apelante sustenta que não pode ser condenada a indenizar, como devedora solidária, já que não alienou o imóvel ao autor.

Alega que a solidariedade não se presume, só podendo resultar da lei ou do contrato, sendo, portanto, irrelevante, que as rés pertençam ao mesmo grupo econômico, já que dotadas de personalidades jurídicas distintas.

O argumento só pode impressionar à primeira vista, não resistindo a um exame mais cuidadoso dos autos. A solidariedade não emergiu do simples fato de pertencerem as rés ao mesmo grupo econômico, e sim da lei de proteção ao consumidor e de inúmeras outras circunstâncias.

Em se tratando de relação de consumo, e de fato do serviço, estabelece o Código de Defesa do Consumidor a solidariedade legal, que decorre de um princípio fundamental que inspira o Código de Defesa do Consumidor, o que se considera “cláusula aberta”, inserida em todos os contratos de consumo.

O conjunto probatório revela a profunda e umbelical ligação das empresas rés, cujo acionista majoritário e controlador é a mesma, pessoa natural, o Engenheiro Sérgio Naya. Aliás, o nome da 1ª apelante, Sersan, é composto pelas sílabas iniciais do prenome e do apelido do referido engenheiro. A propaganda de fls. 225 deixa claro que o empreendimento oferecido era de “construção e incorporação do Grupo Sersan”.

Em obediência aos princípios da transparência, da informação e da boa-fé objetiva, que hoje inspiram o direito do consumo, era lícito ao adquirente supor que todas as empresas do grupo se responsabilizavam pelo empreendimento, em que pese só uma delas ter figurado na escritura de venda.

Como se não bastasse, o art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, que é corajoso e inovador, permite a desconsideração da personalidade jurídica, em se tratando de grupos de empresas, para responsabilizar qualquer delas, ou a todas, quando isto se impuser, para assegurar a integral indenização da vítima.

Demonstrou, ainda, a prova dos autos, que as duas rés agiram sempre em conjunto, no oferecimento do empreendimento, sendo uma das empresas controlada pela outra.

Assim sendo, correta a decisão que repeliu a pretensão da 1ª apelante, de ser excluída da relação processual, reconhecendo a solidariedade. No mérito, melhor sorte não aguarda as apelantes-rés.

Os defeitos de construção ficaram provados da maneira mais dolorosa possível, ou seja, pelo desabamento do prédio, como um castelo de cartas, causando a morte de tantas pessoas inocentes, além de prejuízos materiais evidentes.

Os fatos notórios, dispensam prova. Como, no Brasil, e, felizmente, Deus nos poupou de terremotos, furacões e erupções vulcânicas, o desabamento só pode ter uma explicação, até para os leigos: ou houve erro de cálculo e/ou utilização de materiais inadequados, para reduzir os custos.

Aliás, as apelantes reconhecem o fato, atribuindo o erro a um profissional, que teria elaborado os cálculos, e que não pertencia a seus quadros, atuando como autônomo. O argumento não as socorre.

Perante os infelizes adquirentes, respondem as apelantes, que, evidentemente, poderão regredir, contra aquele que consideram responsável pelo vício. Como se não bastasse, em se tratando de relação de consumo, não se pode perder um só minuto na discussão sobre a culpa.

É sabido e ressabido que o Código de Defesa do Consumidor adotou, no campo da responsabilidade civil, a moderna teoria do risco, abandonando, em boa hora, as ultrapassadas teorias da culpa provada (subjetiva) e da culpa presumida (objetiva).

O dever de indenizar deslocou-se, assim, da culpa, para se centrar no nexo causal. Logo, é pura perda de tempo discutir se as rés agiram com culpa, tendo em vista a dicção do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor.

À autora só cabia provar o dano e o nexo causal, e disto ela se desincumbiu, com perfeição. As rés só se alforriariam do dever de indenizar se lograssem provar algum fato capaz de romper o nexo de causalidade, o que nem sequer tentaram fazer.

Não há, portanto, como se acolher os recursos das rés, que parecem ter sido oferecidos apenas pelo dever de ofício, que recai sobre os ombros de seus competentes patronos.

Resta, agora, apreciar o recurso da autora, que merece acolhida, ainda que parcial, como se verá. A verba da indenização pelo dano moral, fixada na sentença em R$ 30.200,00, o que eqüivale a cerca de 200 salários mínimos, é, de fato, irrisória, diante da intensidade da culpa das rés, da repercussão do fato, do sofrimento causado à autora e da condição econômica das rés.

O dano moral, ou extra-patrimonial, como se sabe, resulta de uma lesão aos sentimentos íntimos da pessoa, um vergão em sua alma, a lhe causar angústia, saudade, vergonha, indignação ou constrangimento.

Pergunta-se: quanto custa a perda de um sonho, tão acalentado, como o da casa própria? A autora é viúva e professora. Deve ter investido todas as economias de uma vida inteira de trabalho para adquirir um apartamento, na Barra da Tijuca, onde pretendia viver o resto de sua vida, com um mínimo de conforto e dignidade.

Foi atraída pela maciça propaganda das rés, que lhe prometiam, como se vê de fls. 225 um “conceito de viver melhor na Barra”. Para a autora foi, apenas, uma perversa ironia. Para muitos, com menos sorte do que ela, a aquisição do apartamento representou o “mais eficiente meio de morrer na Barra”, sob toneladas de concreto esfarinhado, como areia.

A autora, como quase todos os demais moradores, deve ter assistido, perplexa, o desabamento, transmitido ao vivo, pela televisão. Na nuvem de poeira que restou, por vários minutos, após a queda, ficaram cobertos os seus sonhos. E o que dizer das memórias de toda uma vida? Presentes, fotos antigas, bilhetes de ternura do amado marido falecido, lembranças de uma vida, transformadas em pó.

E a incerteza do futuro? Onde morar agora? Onde encontrar recursos para alugar ou adquirir outro imóvel? E o trauma, o medo no futuro?

A indenização nem de longe compensa tantos sofrimentos, além de não se revestir do mínimo de reprovação ao comportamento das rés. É preciso que as rés sintam, na condenação, um efeito pedagógico, para que não sacrifiquem a vida de seus consumidores, no altar de seus interesses gananciosos de lucro.

A indenização por dano moral, em casos como o do Palace II, não pode, a meu sentir, ser inferior a 1.000 salários mínimos, o que ainda não representa um consolo para os que foram tão duramente feridos no âmago de seus sentimentos.

Quanto aos juros moratórios, a sentença está correta, ao fixar seu dies a quo na citação, já que não se trata de obrigação com termo final determinado.

Por estas razões, rejeita-se a preliminar de nulidade argüida pelas rés, nega-se provimento aos 1º e 2º apelos e se dá provimento parcial ao 3º apelo, para se elevar a verba da indenização por dano moral para 1.000 salários mínimos, mantida, no mais, a sentença apelada.

Rio de Janeiro,24 de abril de 2001.

DESEMBARGADOR SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA

PRESIDENTE E RELATOR

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