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Morte poderia ser motivada por heranças, diz advogado.

17 de maio de 2001, 0h00

Por Luíz Flávio Borges D'Urso

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Eutanásia sempre gerou muita polêmica no Brasil, pois inflama paixões de ambos os lados, porquanto aqueles que a defendem, esgrimam com argumentos que são relevantes, todavia jamais decisivos, de forma a trazer segurança, inclusive jurídica para sua prática.

A palavra eutanásia traz sua construção semântica dividida em “Eu”, que significa boa e “thanatos”, que significa morte, de forma que a origem da palavra revelava o que se pensava ser boa morte, piedosa, altruísta, caridosa, etc.

Hoje, no Brasil a eutanásia é crime, podendo caracterizar o ilícito penal de várias formas, vejamos uma delas; caso um terceiro, médico ou familiar do doente terminal lhe dê a morte, estaremos diante do homicídio, que, eventualmente teria tratamento penal privilegiado, atenuando-se a pena, pelo relevante valor moral que motivou o agente, assim o juiz poderia reduzir a pena de um sexto a um terço.

Esse homicídio, mesmo privilegiado, não leva em conta, se houve ou não consentimento da vítima para descaracterizar o crime, aliás, mesmo em havendo tal consentimento, se haveria de desconfiar sobre sua lucidez e independência para decidir sobre a própria vida.

Neste particular fica fácil entender porque alguém doente, terminal ou não, mas que sofre dores atrozes, pede a morte, mesmo sem pretender morrer, objetivando somente aliviar aquele sofrimento. O parâmetro é quando uma leve enfermidade nos arrebata e embora não seja incurável, terminal ou extremamente dolorosa, basta alguma dor, para o desespero alucinar o raciocínio.

Outra forma de crime eutanásico é quando o terceiro auxilia o próprio doente para que este se lhe dê a própria morte. Trata-se da modalidade criminosa do auxílio ao suicídio, pois pune-se alguém que estimulando, induzindo ou auxiliando, colabora para que o doente se mate.

Neste exemplo, as formas de colaboração são as mais diversas, desde o fornecimento de uma arma, até a colocação de equipamentos vitais, ao alcance do doente, que ao desligá-lo vem a falecer. A instigação e o induzimento, embora de prova difícil, poderá ser determinante para que a eutanásia se consume.

Assim, a única forma que a legislação atual brasileira não pune, é quando o doente, absolutamente sozinho se mata, por iniciativa e vontade própria, neste caso, nem mesmo a tentativa pode ser punida, uma vez que se o agente quer se dar a pana máxima, de nada adiantaria lhe atribuir uma punição para que não reitere nessa conduta. Seria absurdo se pensar contrariamente.

No mundo todo existem gigantescas resistências à aprovação de lei que autorize a eutanásia, isto porque os interesses mundanos que poderiam estar revestidos de piedade, teriam um verdadeiro salvo conduto, para que o agente cometesse o crime e fosse perdoado, talvez até parabenizado por sua piedade extrema.

Tenho profunda desconfiança dessas motivações, pois embora algumas delas sejam norteadas pelo sentimento de amor, muitas outras, sob essa capa estariam a esconder disputas de heranças (uma vez que enquanto não se der a morte, não se abre sucessão), ou ainda interesses conjugais subterrâneos, a encalhar o cônjuge sadio, que se vê obrigado a assistir o cônjuge enfermo, sem falar num eventual amante que aguarda-o do outro lado da porta do cômodo onde se encontra o moribundo.

Portanto, sou radicalmente contra a legalização da eutanásia no Brasil e a Holanda que acaba de legalizar a eutanásia, mais uma vez nos dá exemplo do que não se deve legalizar – na Holanda as drogas são legalizadas, admite-se casamento entre pessoas do mesmo sexo, etc.

Dessa forma entendo que erra o legislador que pretende tal legalização. A comissão de reforma do Código Penal brasileiro enfrenta essa questão e traz uma alternativa que merece estudos, vejamos o que diz o projeto:

Eutanásia

Parágrafo 3º – Se o autor do crime é cônjuge, companheiro, ascendente, descendente, irmão ou pessoa ligada por estreitos laços de afeição à vítima, e agiu por compaixão, a pedido desta, imputável e maior de dezoito anos, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave e em estado terminal, devidamente diagnosticados:

Pena – reclusão, de dois a cinco anos.

Exclusão de ilicitude

Parágrafo 4º. Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade, de cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão.

Estes dispositivos revelam que a tendência da comissão é manter criminalizada a eutanásia, excetuando quando o agente deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, ou seja, ligado à aparelhos, desde que previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente ou, de parentes.

Questiono o critério de morte iminente e inevitável, questiono o critério da irreversibilidade do estado do paciente, bem como da doença incurável, pois o que é incurável hoje poderá ter cura amanhã, o que é irreversível hoje, poderá reverter amanhã e o momento da morte, por mais iminente e inevitável, pode ser adiado indefinidamente, inclusive com melhora do estado de saúde, por fatores que os médicos e a humanidade não tem condições de determinar.

Outra questão que precisa ser focada é a de que a vida tem necessariamente de ser útil, produtiva, eficaz, plena, viável, enfim, uma série de adjetivos criados por uma sociedade global que não tem tempo, nem paciência de cuidar e tratar de seus doentes inúteis ao mercado predatório do consumo.

Ora a vida é Dom de Deus e assim sendo, ela se basta, não precisando ter qualquer adjetivação, o que satisfaz a natureza humana é estar vivo, na condição de saúde que for, porquanto no plano religioso, jamais teremos condições de entender os desígnios do Criador, restando-nos, portanto, apenas viver, brindados que fomos com a dádiva maior que, insisto, é a própria vida.

O tráfico de órgãos humanos seria a última abordagem que me leva a reiterar o risco da legalização da eutanásia, pois qualquer pessoa enferma deve ser vista como alvo de tratamento, jamais como prateleira de órgãos humanos prontos a servir quem melhor oferta fizer, mesmo que tal custe a vida daquele miserável. O mundo vem conhecendo essas máfias e a legalização da eutanásia seria um belo serviço prestado a essa modalidade de crime. Digo não à legalização da eutanásia por tudo isso e mais, pela coerência de quem defende incondicionalmente a vida.