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Projeto comete erro para validade de documentos na Web

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14 de maio de 2001, 0h00

Recentemente, a Casa Civil da Presidência da República submeteu ao crivo da sociedade em geral, na forma de consulta pública (1), um projeto de lei sobre documentos eletrônicos (“dispõe sobre a autenticidade e o valor jurídico e probatório de documentos produzidos, emitidos ou recebidos por órgãos públicos federais, estaduais e municipais, por meio eletrônico, e dá outras providências”) (2).

Como temos dedicado um tempo razoável na pesquisa e estudo das várias relações entre o direito e as modernas tecnologias da informação, tendo inclusive produzido um singelo trabalho acerca dos meios eletrônicos e a tributação (3), realizamos uma análise, ainda que sumária, da proposta em questão.

Importa sublinhar que a matéria em foco (validade jurídica dos documentos eletrônicos) representa o principal tema em debate no campo do direito da informática. Afinal, o traço fundamental da sociedade da informação consiste justamente na desmaterialização de conceitos tradicionais, como o de documento. Por outro lado, avança de forma frenética a utilização de registros eletrônicos de atos jurídicos, onde são literalmente abandonadas as formas de armazenamento em papel (4).

O projeto de lei em questão apresenta um defeito grave. Com efeito, trata dos documentos eletrônicos produzidos, emitidos ou recebidos por órgãos públicos e pelas empresas públicas. Assim, os documentos utilizados nas relações que envolvem tão-somente particulares não se beneficiam do regramento ora discutido. Esta limitação ou restrição decididamente não é aceitável (5).

Esta errônea opção, esquecendo ou desconsiderando as relações entre particulares, afronta a necessidade de segurança jurídica nas relações comerciais por meios eletrônicos, já significativas na Internet brasileira. Na quadra histórica em que vivemos podemos afirmar, sem medo de errar, que um dos mais relevantes instrumentos para o progresso ou desenvolvimento das atividades econômicas consiste justamente na regulamentação dos documentos eletrônicos.

Curiosamente, o art. 5º do projeto de lei autoriza o arquivamento de documentos particulares por meio magnético ou similar. Impõe-se a indagação: se tratou do arquivamento por que não contemplou a produção e a circulação dos mesmos?

Deve ser ressaltado que as legislações alienígenas sobre a matéria não consagram a opção restritiva antes destacada. Pode ser apresentado, a título de exemplo, o Decreto-Lei nº 290-D, de 2 de agosto de 1999, de Portugal (6).

É certo que alguns países, notadamente na América Latina, iniciaram a normatização dos documentos eletrônicos por intermédio de diplomas legais restritos à Administração Pública. Nesta tendência se inclui o Brasil com a edição do Decreto nº 3.587, de 5 de setembro de 2000 (7). Portanto, o próximo passo a ser dado consiste justamente em regular o assunto para todas as relações jurídicas (públicas e privadas) ocorridas na sociedade. Aparentemente não tem sentido continuar a trilhar este caminho apenas nos domínios públicos.

Por outro lado, o projeto de lei, para garantir valor jurídico (e probatório) aos documentos eletrônicos, consagra os princípios anunciados pelos mais abalizados estudos da problemática em foco: autenticidade (identificação do autor) e integridade (não alteração do documento). Assumindo, como pensamos, o não-repúdio como decorrência da autenticidade.

O projeto adota uma das mais importantes e corretas diretrizes firmadas na seara do direito da informática: a não edição de norma com força de lei consagrando uma determinada tecnologia, mesmo que dominante ou única naquele momento. Considerando a constante, porque não dizer frenética, evolução tecnológica não convém que o diploma legal sobre a matéria faça uma opção por esta ou aquele técnica, que pode restar ultrapassada em curto lapso de tempo.

Entretanto, seria de todo conveniente que o dispositivo referido remetesse expressamente ao regulamento a técnica de assinatura digital a ser utilizada, não fazendo referência a uma designação momentânea, mutável e criada para a Administração Pública Federal como o ICP-Gov (Infra-Estrutura de Chaves Públicas Governamental). Afinal, o regramento do assunto será aplicável a todos os entes da Federação, dotados de autonomia administrativa e, justamente por esta razão, refratários ao comando do Chefe da Administração Pública Federal, mas não ao regulamento da lei nacional.

Existe, contudo, um aspecto do uso da assinatura digital que a nosso ver não poderia ser deixado ao regulamento: a definição do sistema de certificação e credenciamento, processos cruciais para garantia das pretendidas autenticidade e integridade. Entre outros razões, a polêmica doutrinária acerca da extensão da atividade notarial (art. 236 da Constituição Federal) (8) reclama tratamento legal. Afinal, a Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994 (9), estabelece que os serviços notariais destinam-se, entre outras finalidades, a garantir a autenticidade dos atos jurídicos (10).

Constatamos a ausência de definições precisas de original e cópia de documentos eletrônicos, como presente em legislações estrangeiras e, com muita propriedade, no Projeto de Lei n. 1.589/1999, oriundo da OAB de São Paulo (11).

Verificamos, outrossim, uma preocupação excessiva com o arquivamento de documentos em meios eletrônicos ou similares e, por outro lado, a ausência de importantes definições relacionadas com a comunicação de documentos eletrônicos.

Por fim, deve ser ressaltado que atualmente, antes da edição de qualquer lei sobre a matéria, a validade jurídica dos documentos eletrônicos não pode ser recusada, em função do disposto nos arts. 82, 129, 136 e 1.079 do Código Civil e dos arts. 131, 154, 244, 332 e 383 do Código de Processo Civil (12). O projeto, tal como posto, terminaria por subtrair a validade dos atuais documentos eletrônicos.

Afinal, somente seria reconhecido valor jurídico e probatório aos documentos eletrônicos onde fossem assegurados a autenticidade e a integridade (art. 1º do Projeto). Estes condicionamentos não condizem com a tradição de liberdade de forma dos atos jurídicos no direito brasileiro, onde se admite até o contrato verbal ou por manifestação tácita de vontade.

Podemos concluir, a partir desta rápida análise, que a proposta possui três marcas negativas bem nítidas: a) comete um erro inaceitável na definição da abrangência de seus efeitos; b) deixa de regular inúmeros aspectos cruciais relacionados com os documentos eletrônicos e c) afasta a validade jurídica, hoje presente, dos documentos eletrônicos quando não asseguradas, por meio hábil, a autenticidade e a integridade.

Notas de Rodapé:

(1) Site da Presidência da República: http://www.planalto.gov.br.

(2) “Dispõe sobre a autenticidade e o valor jurídico e probatório de documentos produzidos, emitidos ou recebidos por órgãos públicos federais, estaduais e municipais, por meio eletrônico, e dá outras providências.

CONGRESSO NACIONAL decreta:

Art. 1º. Os documentos produzidos, emitidos ou recebidos por órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, bem como pelas empresas públicas, por meio eletrônico ou similar, têm o mesmo valor jurídico e probatório, para todos os fins de direito, que os produzidos em papel ou em outro meio físico reconhecido legalmente, desde que assegurada a sua autenticidade e integridade.

Parágrafo único. A autenticidade e integridade serão garantidas pela execução de procedimentos lógicos, regras e práticas operacionais estabelecidas na Infra-Estrutura de Chaves Públicas Governamental – ICP-Gov.

Art. 2º. A cópia, traslado ou transposição de documento em papel ou em outro meio físico para o meio eletrônico somente terá validade se observados os requisitos estabelecidos nesta Lei e em seu regulamento.

Art. 3º. A reprodução em papel ou em outro meio físico de documento eletrônico somente terá validade jurídica se autenticada na forma do regulamento.

Art. 4º. O documento eletrônico a que se refere esta Lei deverá ser acessível, legível e interpretável segundo os padrões correntes em tecnologia da informação.

Art. 5º. Fica autorizado o arquivamento por meio magnético, óptico, eletrônico ou similar, de documentos públicos ou particulares.

Art. 6º. Atendido o disposto nesta Lei, os documentos arquivados na forma do artigo anterior, assim como suas certidões, traslados e cópias obtidas diretamente dos respectivos arquivos em meio magnético, óptico, eletrônico ou similar, produzirão, para todos os fins de direito, os mesmos efeitos legais dos documentos originais.

Art. 7º. O arquivamento deverá garantir a integridade e autenticidade dos documentos, assegurando, ainda, que:

I – sejam acessíveis e que os respectivos dados e informações possam ser lidos e interpretados no contexto em que devam ser utilizados;

II – permaneçam disponíveis para consultas posteriores;

III – sejam preservados no formato em que foram originalmente produzidos.

Art. 8º. O sistema de arquivamento na forma autorizada por esta Lei deverá ainda:

I – manter equipamentos de computação necessários para a recuperação e a exibição dos dados arquivados, durante o prazo em que as respectivas informações permanecerem úteis;

II – dispor de métodos e processos racionais de busca e trilhas de auditoria;

III – conter dispositivos de segurança contra acidentes e emergências, capazes de evitar a destruição ou qualquer dano que impossibilite o acesso aos dados arquivados ou em processo de arquivamento.

Art. 9º. Os documentos em papel ou em outro meio físico e que tenham sido arquivados em meio magnético, óptico, eletrônico ou similar poderão, a critério da autoridade competente, ser eliminados por incineração, destruição mecânica ou outro processo adequado para este fim.

Parágrafo 1º. A eliminação a que se refere o caput far-se-á mediante lavratura de termo circunstanciado, por autoridade competente.

Parágrafo 2º. Os documentos de valor histórico não serão eliminados, e poderão ser arquivados em local diverso da repartição que os detenha, para sua melhor conservação.

Art. 10. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”

(3) O texto pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico: http://www.aldemario.adv.br/meios.htm.

(4) Informações da FEBRABAN revelam que em 1999 no Brasil, 9,3 trilhões de operações foram realizadas sem a intervenção de funcionários, representando 67% do total de transações. E mais: 2,6 bilhões de cheques compensados, contra 4,6 bilhões de transações eletrônicas. De 1998 para 1999, o número de transações pela Internet saltou de 38,7 milhões para 126,3 milhões. Fonte: http://www.modulo.com.br/noticia/a-insegur.htm.

(5) “A matéria (regulamentação de documentos eletrônicos) deveria ser examinada e deliberada no foro apropriado, que me parece ser o Parlamento, e não ser implantada unilateralmente por um órgão da Administração Pública na sua esfera de atuação (Secretaria da Receita Federal), quando se trata de matéria que deve receber tratamento uniforme em relação a todos os tipos de relações jurídicas.” GRECO, Leonardo. A Revolução Tecnológica e o Processo. Revista Crítica. Publicação do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira. Faculdade Nacional de Direito. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Outubro/Novembro de 2000. Págs. 13 e 14.

(6) O diploma legal pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico: http://www.giea.net/legislacao.net/internet/assinatura_digital.htm.

(7) O diploma legal pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3587.htm.

(8) “Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

Parágrafo 1º. Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.”

(9) O diploma legal pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8935.htm.

(10) “A segunda perspectiva é de que se transfira, para o momento e para o opaco foro da regulamentação da lei, o embate relativo à atribuição da prerrogativa de registro de certificados eletrônicos – se aos cartórios ou, como ocorre hoje, a empresas especializadas e escolhidas pelas partes para reconhecer e garantir veracidade a documentos transmitidos pela rede.” ORSI, Ricardo. O comércio eletrônico e um novo direito da prova: questões jurídicas e o projeto em tramitação no Senado Federal. Revista Direito em Ação. Universidade Católica de Brasília. Volume 1. N. 1. Dezembro de 2000. Pág. 146.

“(…) Não obstante, continuamos a sustentar nossa discordância em relação à solução apresentada pelos arts. 33 e 34 (Projeto da OAB/SP) no sentido de que somente a assinatura digital do Tabelião lançada em cópia eletrônica de documento físico original, teria o valor de autenticação.” LUCCA, Newton de. Títulos e contratos eletrônicos: o advento da informática e seu impacto no mundo jurídico. Direito e Internet. 1ª Edição. 2000. EDIPRO. Pág. 68.

“Nesse aspecto, o Projeto (da OAB/SP) distancia-se da tendência internacional de deixar à iniciativa privada a condução do comércio eletrônico em geral, e da atividade de certificação em especial, como instrumento de formação de um mercado aberto e competitivo.” QUEIRÓZ, Regis Magalhães Soares de. Assinatura digital e o tabelião virtual. Direito e Internet. 1ª Edição. 2000. EDIPRO. Pág. 408.

Neste particular, entendemos que a legislação brasileira deve seguir as tendências internacionais. Juridicamente, a lei, conforme prevê o art. 236, parágrafo 1º da Constituição, fixará as iniciativas compreendidas, ou não, entre as atividades dos oficiais de registro. Assim, o legislador não está vinculado a atribuir tais ações tão-somente aos notários, restringindo o desenvolvimento das atividades sociais dependentes das assinaturas digitais.

(11) O Projeto de Lei da OAB/SP pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico: http://www.informaticajur.hpg.com.br/ploab.htm.

(12) Código Civil:

“Art. 82. A validade do ato jurídico requer agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei.”

“Art. 129. A validade das declarações de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.”

“Art. 136. Os atos jurídicos, a que se não impõe forma especial, poderão provar-se mediante:

I – Confissão;

II – Atos processados em juízo;

III – Documentos públicos ou privados;

IV – Testemunhas;

V – Presunção;

VI – Exames e vistorias;

VII – Arbitramento.”

“Art. 1.079. A manifestação de vontade, nos contratos, pode ser tácita, quando a lei não exigir que seja expressa.”

Código de Processo Civil:

“Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convecimento.”

“Art. 154. Os atos e termos processuais não dependem de forma determinada senão quando a lei expressamente a exigir, reputando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial.”

“Art. 244. Quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade.”

“Art. 332. Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa.”

“Art. 383. Qualquer reprodução mecânica, como a fotográfica, cinematográfica, fonográfica ou de outra espécie, faz prova dos fatos ou das coisas representadas, se aquele contra quem foi produzida lhe admitir a conformidade.

Parágrafo único. Impugnada a autenticidade da reprodução mecânica, o juiz ordenará a realização de exame pericial.”

“Há quem sustente, no entanto, como o gaúcho CÉSAR VITERBO MATOS SANTOLIM (9), que o Código de Processo Civil, na seção destinada a regular a prova documental, abarca, também, os documentos eletrônicos, desde que o critério de interpretação não seja o literal”. NETO, José Henrique Barbosa Moreira Lima. Aspectos jurídicos do documento eletrônico. Revista eletrônica Jus Navigandi. Disponível em: http://www.jus.com.br/doutrina/docuelet.html. Acesso em: 2 mar. 2001.

“Entendemos, também, que a validade do documento eletrônico em si não deve ser questionada. Ora, se um contrato verbal é admitido como válido desde 1916, o contrato realizado em meio eletrônico por maior razão deverá ser considerado como válido, afinal qual pode o mais pode o menos.” NETO, José Henrique Barbosa Moreira Lima. Aspectos jurídicos do documento eletrônico.

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