Crise energética

Artigo: Governo foi petulante e ousado ao editar MP da energia.

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18 de junho de 2001, 0h00

Como muitos sabem, o instituto normativo da Medida Provisória, inserido em nosso ordenamento jurídico no artigo 62 da Constituição Federal, tem sua matriz no Decreto-lei italiano. Tanto lá como aqui, o legislador constituinte objetivou permitir ao chefe do Poder Executivo que, em especiais circunstâncias, pudesse exercer, excepcionalmente, a função legiferante.

Diante da excepcionalidade da situação, como circunstância necessária e suficiente para a chancela da atuação legislativa anômala do Poder de Administração, o Tribunal Constitucional Italiano exarou a corajosa sentença nº 17, segundo a qual, findo prazo de sessenta dias previsto pelo artigo 77 da Constituição Italiana para a sua vigência, sem a apreciação pelo Parlamento, o Decreto-lei não pode ser reiterado, sendo tal medida inconstitucional, à luz do aludido artigo 77.

Ora! O artigo 62 da Constituição Federal de 1988 é praticamente idêntico à norma alienígena reportada, diferindo, apenas, quanto ao prazo de duração do ato normativo – lá é de sessenta dias e aqui de trinta – e quanto à nomenclatura conferida – decretto-legge e medida provisória – razão pela qual não há justificativa para que a sua interpretação seja distinta daquela procedida pelo Tribunal Superior da nação que instituiu a norma legal excepcionalmente originada do Poder Executivo.

A reedição da medida provisória não aprovada ou mesmo não apreciada dentro do prazo de trinta dias afronta violentamente a regra inserta no artigo 62 da Constituição Federal.

Contudo, o Supremo Tribunal Federal, talvez priorizando na apreciação da matéria aspectos meta-jurídicos a ela pertinente, como a alegada necessidade de se dar governabilidade ao Poder Executivo, diante de um legislativo omisso, optou por deferir ao Presidente da República a condição de se perpetuar no exercício da função legiferante, reeditando ao seu bel prazer e enquanto o Congresso Nacional (verdadeiro soberano função legislativa) não apreciasse a questão, as normas legais que deveriam ter vigência provisória. Pior.

Diante da necessidade de perenizar os efeitos jurídicos decorrentes da medida provisória não apreciada, o Poder Executivo passou a reeditá-la, convalidando-lhe expressamente os efeitos na MP que se seguiu, mais uma vez subvertendo a explícita ordem constitucional, que confere ao Congresso Nacional a atribuição de decidir acerca das

relações jurídicas advindas da MP não convertida em lei…

Todavia, mais este imbróglio legislativo foi chancelado pelo Supremo Tribunal Federal, com o argumento de que haveria um liame jurídico que uniria as MP reeditadas, de forma a perpetuar-lhes os parágrafos efeitos jurídicos. Tal decisão, data venia é flagrantemente contrária à ordem constitucional – pois o Texto Maior é claro ao dizer que os efeitos da MP não convertida serão apreciados pelo Congresso Nacional, inexistindo previsão quanto à possibilidade de convalidação dos efeitos, com a edição de outra MP – e somente a tendência da Alta Corte a dar sustentação jurídica aos atos praticados pelo Poder Executivo, à guisa de se permitir a governabilidade da nação, é que pode justificar esta “complacência” com atos que investem contra a Constituição Federal.

Esta tendência é mais uma vez observada em relação ao artigo 192, parágrafo 3º, que fixa os juros reais máximos anuais em 12%. Ora! A precisão da Norma Mater é cirúrgica quanto à questão, não se podendo falar em necessidade de legislação ordinária para regulamentar a matéria. Prevaleceu, contudo o entendimento de que a legislação ordinária seria imprescindível para a sua regulamentação, o que condenou de morte a regra constitucional em comento, uma vez aos que dão sustentação política e econômica ao Governo Federal não interessa essa limitação.

Esses dois exemplos trazidos à baila, evidenciam a tolerância com que o Poder Judiciário trata inúmeras posturas adotadas pelo Poder Executivo em questões constitucionais, o mesmo ocorrendo em outras tantas de hierarquia normativa inferior.

Diante desta “complacência”, outra não poderia ser a postura adotada pelo Poder de Administração, que não aproveitar ao máximo a possibilidade de legislar acerca de quaisquer matérias que entender pertinentes para, controlando desta ou daquela forma o Poder Legislativo, manietar a sua atuação e tornar-se um superpoder que acha que pode fazer o que bem entende.

O gigantismo do Poder Executivo deve-se, portanto, dentre outras razões de somenos importância, à deliberada inoperância do Poder Legislativo (deliberada porque este Órgão, no mais das vezes é premiado com a liberação de verbas, leilão de cargos políticos e outros agrados que “justificam” seu adestramento) e à injustificada condescendência do Poder Judiciário.

Não se diga que em questões de relevo o Poder de Aplicação das Leis mostrou-se contrário às pretensões do alcaide nacional, porque nas poucas vezes em que isto ocorreu, as decisões judiciais levadas a cabo mostraram-se em regra tardias (empréstimo compulsório, FGTS, inconstitucionalidade de alguns tributos) ou mesmo ineficazes, quando o lapso temporal transcorrido impediu, por exemplo, a repetição do indébito.

Ciente da demora da resposta judicial a muitos de seus despautérios legislativos, o Poder Executivo usa a torpe prática de prejudicar a toda uma categoria de administrados, sabendo que apenas parte dela buscará socorro judicial e que, dentro desta fração, nem todos terão recomposto o patrimônio jurídico vilipendiado.

Assim, a máxima que caracteriza o Poder Executivo é: vamos tirar de todos, porque apenas alguns tentarão recuperar o que foi tirado e bem poucos vão conseguí-lo.

Pois bem! Tamanha é arrogância do Poder Executivo, que agora resolveu, manu militari, proibir os consumidores de energia elétrica prejudicados com sua irresponsável política energética, de recorrerem ao Código de Defesa do Consumidor para defender os seus direitos, somente voltando atrás depois que toda a sociedade (inclusive o Poder Judiciário) antecipou sua irresignação contra a medida.

O fato que merece ser registrado diante do ocorrido, não é o recuo do Poder Executivo diante da resistência que se criou contra a extirpação do CDC, mas a petulância, a ousadia que teve de editar medida tão canhestra e ditatorial. Se tal ocorreu foi porque cogitou o Governo que mais uma vez poderia contar com o Poder Judiciário para sustentar sua pretensão. O erro de cálculo, contudo, talvez decorrente da resposta imediata de toda a sociedade e da própria animosidade que alguns setores do Poder Judiciário mantém contra si, diante da política submissão que vem tentando impor, fez com que recuasse de tal intento.

O que se vê, finalmente, é que se o Poder Judiciário pretende, de fato, manter-se em pé de igualdade em relação aos demais Poderes, não pode apresentar a postura agora adotada contra o autoritarismo do Poder Executivo como caso de exceção. A hora é esta. Se tiver de ser priorizada a guarda do ordenamento jurídico, pilar inarredável do Estado Democrático de Direito, em relação à sustentabilidade de um projeto de governo, é claro que a primeira hipótese deve prevalecer.

Prevalecendo a segunda, o caminho do Poder Judiciário não será diferente daquele que hoje vem seguindo o Poder Legislativo. Será o fim da democracia plena, com o Poder Executivo dando agrados ao Judiciário para que este empreste ares de legitimidade à sua sanha autoritária.

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